O turismo canábico, uma vertente do turismo de drogas, refere-se aos deslocamentos motivados pelo interesse em consumir ou vivenciar experiências relacionadas ao uso da cannabis, independentemente da legalidade da substância no destino visitado. Ainda cercado de preconceitos e tabus, o tema ganha relevância devido às mudanças nas políticas de drogas em vários países e à emergência de novos mercados turísticos.
A Organização Mundial do Turismo define cinco grandes segmentos turísticos: sol e praia, ecoturismo, esportes, cultural e negócios, eventos e incentivos. Esses podem abranger subcategorias como turismo religioso, rural ou de experiência, permitindo atender diferentes perfis de turistas. Com essa lógica, o turismo de drogas se encaixa como um fenômeno dessas subcategorias, uma vez que as drogas psicoativas, aquelas que alteram comportamento e percepção, podem ser a motivação para viagens, ou estarem associadas às atividades desenvolvidas pelos turistas.
Historicamente, o turismo de drogas surgiu com os movimentos de contracultura dos anos 1960, como o movimento hippie, e evoluiu conforme o fornecimento de substâncias se expandia, novos destinos surgiram e os interesses dos turistas mudaram. Esse tipo de turismo envolve destinos que oferecem substâncias legalmente ou que são mais tolerantes com o consumo, como os coffee shops da Holanda ou as cerimônias com Ayahuasca na Amazônia. Apesar da proibição legal em muitos locais, a diferença entre leis escritas e sua aplicação na prática cria ambientes permissivos, nos quais o turismo de drogas se desenvolve.
Cerca de 220 milhões de usuários
Segundo o Escritório de Drogas e Crimes da Organização das Nações Unidas, a cannabis é a substância mais consumida globalmente: em 2021, havia 219 milhões de usuários. Com sua legalização em diversos países, surgiram oportunidades para o turismo canábico, que já é explorado por agências e empreendimentos especializados.
Na Europa, a Holanda é o destino mais tradicional. Sua política de redução de danos permitiu a criação dos coffee shops, smart shops e eventos, mesmo sem legalizar completamente a cannabis. Portugal, ao descriminalizar o consumo de todas as drogas em 2001, e Barcelona, com seus clubes canábicos, também se destacam. Já nos Estados Unidos, estados como Colorado, Califórnia e Nova York legalizaram o uso adulto, o que fomentou um mercado turístico vibrante. Nova York, por exemplo, permite o uso em locais onde o tabaco também é permitido, transformando espaços urbanos em vitrines do consumo legal da erva.
Na América do Sul, estudo mostra que o Uruguai se tornou referência ao legalizar a cannabis em 2013. Embora a lei proíba a venda legal da substância para turistas, muitos estrangeiros visitam o país em busca de um ambiente mais permissivo. Outros destinos internacionais notáveis incluem a região do Rif no Marrocos, Malana na Índia, Christiania na Dinamarca, o Canadá, a Jamaica, sendo que este último autoriza o uso por turistas que se declarem usuários medicinais, e a Tailândia, que legalizou o uso medicinal e adulto em 2022.
Turismo canábico nacional
No Brasil, embora o uso adulto da maconha seja ilegal, o país já participa do turismo canábico de duas formas: como emissor de turistas para destinos no exterior e como local de eventos e experiências. Como exportador de turistas, durante a ExpoCannabis do Uruguai, em 2022, 40% dos participantes eram brasileiros. Em pesquisa realizada com 883 entrevistados, pelo Núcleo de Estudos sobre Turismo de Drogas da UERJ (NETUD/UERJ), durante a ExpoCannabis Brasil 2023, os destinos dos sonhos dos brasileiros para consumo da erva eram: Holanda (35%), Uruguai (25%), EUA (10,5%) e Jamaica (7,5%).
O Brasil também apresenta manifestações internas de turismo canábico, mesmo com a ilegalidade da substância. O turismo de experiência e consumo ocorre em locais onde há maior tolerância social, como Canoa Quebrada (CE), Ilha de Boipeba (BA), Ilha do Mel (PR), Trindade (RJ), São Tomé das Letras (MG), Lumiar e Sana (RJ). Esses destinos possuem histórico de acolhimento em ambientes mais permissivos ao consumo.
Além disso, o Brasil desenvolve um turismo canábico legal focado em eventos. Feiras, congressos, workshops, marchas da maconha e espaços culturais como coffee shops e headshops formam o cenário atual. Exemplos incluem a Pot in Rio, ExpoCannabis Brasil e InterCannabis, entre outros.
Em 2011, o Superior Tribunal Federal (STF) declarou constitucional o direito à realização de manifestações pró-legalização das drogas, impulsionando a organização de eventos sobre o tema. Em 2023, o NETUD/UERJ mapeou 123 eventos canábicos no Brasil: 83% presenciais, 7% híbridos e 10% online. Os temas principais foram: cannabis medicinal (33%), cultura canábica (22%), uso adulto (19%) e legislação (14%). A maioria dos eventos ocorreu no Sudeste (58%), especialmente em São Paulo (34%) e Rio de Janeiro (20%).
Pontos de Interesse Canábico
Entre as perspectivas, uma nova frente de trabalho desenvolvida no NETUD/UERJ dedica-se à construção de um roteiro de turismo canábico histórico-cultural na cidade do Rio de Janeiro.
A proposta baseia-se em registros históricos e em manifestações contemporâneas da cultura canábica, com a identificação e georreferenciamento dos chamados “Pontos de Interesse Canábico” (PICs). Até o momento, foram mapeados 14 PICs, distribuídos pelas zonas central, sul, norte e oeste da cidade.
A iniciativa não promove o consumo da substância, mas busca resgatar, por meio da história e da cultura, a presença da cannabis na construção simbólica e social da cidade. Assim, o roteiro propõe uma experiência turística responsável, que valoriza o patrimônio cultural, fomenta o reconhecimento de identidades marginalizadas e contribui para a dinamização da economia local e diversificação da oferta turística.
O roteiro funciona como estudo de caso modelo, com a intenção de replicar a metodologia em outras capitais brasileiras. O objetivo final é, por meio de parcerias, desenvolver um aplicativo gratuito, reunindo roteiros de turismo canábico nas principais cidades do país, acessível a turistas interessados nesse segmento. O projeto inclui o desenvolvimento de uma plataforma interativa, na qual os usuários poderão inserir fotos e comentários, realizar check-ins, vivenciar experiências em realidade aumentada nos PICs e utilizar um “passaporte digital”, com recompensas à medida que completarem os pontos do trajeto.
Em um possível cenário de legalização da cannabis no Brasil, o aplicativo poderá ainda incorporar a localização de dispensários, smoke shops, head shops, lojas de insumos para cultivo, bem como novos roteiros que integrem o turismo canábico a outros segmentos, como o ecoturismo, o turismo de sol e praia e o turismo gastronômico.
Quanto ao futuro do turismo canábico no Brasil, há duas forças opostas em disputa. De um lado, há perspectivas otimistas com o julgamento do Recurso Extraordinário 635659-SP no STF, que descriminalizou o porte de pequenas quantidades de maconha para uso pessoal. De outro, há ameaças com a PEC 45/2023, aprovada no Senado, que visa criminalizar o porte e posse de qualquer quantidade de substâncias ilícitas, endurecendo as penas.
Diante desse cenário, é necessário refletir sobre os modelos de turismo canábico desejados para o país. As possibilidades incluem desde resorts de luxo até experiências de base comunitária em comunidades indígenas, quilombolas e nas favelas. O mais importante é que o turismo canábico beneficie os moradores locais, promova a reparação histórica e envolva políticas públicas de inclusão.
Por fim, é fundamental salientar que o turismo canábico já é uma realidade consolidada em diversos países e em crescimento no Brasil. Embora os desafios legais persistam, a relevância cultural, econômica e social do segmento demanda atenção do poder público e do setor turístico, com foco na inclusão, regulamentação e desenvolvimento sustentável.
A divulgação deste artigo tem o apoio da Capes.
Thiago Ferreira Pinheiro Dias Pereira, Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Turismo de Drogas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
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