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Passarela para animais sobre rodovia evita atropelamento de primata ameaçado de extinção

Pontes de madeira e corda estão ajudando a livrar o mico-leão-preto da extinção. Entenda por que essa rota alternativa é importante

Foto: Vlamir Rocha/UFSCar

Texto: Karina Ninni, da Agência FAPESP

A abertura de estradas afeta, muitas vezes, a fauna que vive nos ecossistemas adjacentes. Mas existem maneiras de minimizar esse impacto, como a construção de passagens para os animais: por cima, para os arborícolas, ou por baixo da estrada, para os terrestres. Os caminhos entre as copas das árvores são chamados de passagens de dossel.

Em uma estrada vicinal do município de Guareí (SP), a bióloga Francini de Oliveira Garcia, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), instalou dois tipos de passagem de dossel com o objetivo de verificar sua eficácia para evitar atropelamentos de micos-leão-pretos (Leontopithecus chrysopygus). O trabalho também comparou o uso das passagens de madeira e de corda pelos primatas.

A estrada GRI 253 corta a mata ciliar do rio Guareí, que conecta fragmentos de Mata Atlântica e abriga grupos de micos-leão-pretos. Parte da Estação Ecológica de Angatuba (cidade vizinha), que tem uma população de primatas estimada em 46 indivíduos, também está no território de Guareí. A espécie, endêmica da Mata Atlântica do Estado de São Paulo, é classificada como “em perigo” pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).

“O conselho consultivo da Unidade de Conservação e a própria comunidade perceberam que estavam perdendo indivíduos na estrada. Só em 2013 foram cinco atropelamentos de micos-leão-pretos. Eu estava fazendo o mestrado e consegui recursos para instalar as passagens, estabeleci parcerias, principalmente com a prefeitura e com o órgão gestor da Unidade de Conservação, o Instituto Florestal, da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo. Assim, durante o mestrado, monitorei por 13 meses”, conta Garcia.

Após a defesa de sua dissertação, ela ainda monitorou o uso das passagens por quase dois anos, por conta própria. “Do ponto de vista da ecologia de rodovias, que é uma área científica relativamente nova e interdisciplinar, 13 meses era pouco. Eu queria resultados mais robustos, então, prossegui com as parcerias, que foram muito importantes, e com o monitoramento.”

De acordo com a bióloga, dois dias após a instalação das passagens verificou-se o atropelamento de apenas um mico-leão-preto e, de lá para cá, não houve mais registros de acidentes. “Dois dias é um tempo muito curto para estabelecer padrões de comparação com o que ocorria antes da instalação. Mas o importante é que, fora essa ocorrência, não tivemos mais atropelamentos e verificamos que o número de indivíduos do grupo aumentou.”

Os resultados foram publicados recentemente por Garcia e colegas em artigo no European Journal of Wildlife Research. A pesquisa teve o apoio da FAPESP por meio do projeto “O efeito da fragmentação sobre as funções ecológicas dos primatas”, cuja responsável é Laurence Marianne Vincianne Culot, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro e coautora do artigo.

Pontes e câmeras

As passagens foram instaladas em 2017 no local em que ocorreram os atropelamentos em 2013. Ambas têm 13 metros (m) de comprimento e foram colocadas a 6 m de altura, afixadas em postes instalados dos lados da vicinal. A de madeira é um tronco de eucalipto (Eucalyptus umbra), não tratado, com cerca de 20 centímetros (cm) de diâmetro. A outra é uma espécie de escada de corda colocada na horizontal. Tem 50 cm de largura e “degraus” feitos de tubo de PVC (policloreto de vinila, um tipo de plástico) anti-inflamável, com espaço de 40 cm entre eles.

“Nosso estudo é inédito na América do Sul, pois é o primeiro que trabalha com duas passagens diferentes no mesmo local, avaliando a preferência das espécies por uma ou outra”, diz Garcia.

As estruturas foram monitoradas por duas câmeras colocadas nos postes de sustentação das pontes, que funcionavam 24 horas por dia. Garcia recolheu as imagens mensalmente durante dois anos. E a estagiária do projeto, Rafaela de Carvalho, também da Unesp e coautora do artigo, as recolheu por mais um ano.

A bióloga assistia às gravações, separando aquelas em que havia animais usando as estruturas por espécie e por modelo de ponte utilizada. Foi feita uma parceria com a prefeitura de Guareí para a colocação da escada e a cessão de um funcionário capacitado para acessar as câmeras no alto da rodovia.

“Registramos nove espécies de mamíferos e uma de lagarto cruzando as pontes de dossel, além de 13 espécies de aves que as utilizavam como poleiros”, resume. O mico-leão-preto, o esquilo brasileiro, um roedor não identificado, mais uma espécie de roedor da família Cricetidae e uma espécie de lagarto da família Scincidae usaram apenas a ponte de madeira. Duas espécies de mamíferos (outro roedor da família Cricetidae e a cuíca-lanosa) utilizaram apenas a ponte de corda. E três espécies de mamíferos usaram ambas: o ouriço-cacheiro, o gambá-de-orelha-preta e uma outra espécie de roedor da família Cricetidae.

Dos 702 eventos de travessia registrados pelas câmeras, 527 ocorreram na ponte de madeira e 175 na ponte de corda. Considerou-se um “evento” cada vez que o animal ou grupo utilizou as passagens. Do total de eventos, 500 ocorreram na estação seca e 202 na estação chuvosa.

“Sugerimos que o movimento dos micos-leão-pretos de um lado para o outro é impulsionado por exigências biológicas dentro da sua área de vida original, cortada pela estrada. As travessias ocorreram em ambas as direções e a maioria dos eventos de travessia ocorreu nos meses secos, quando a disponibilidade de frutos é reduzida e o consumo de presas é maior, aumentando o esforço para obtenção de alimentos, em comparação à temporada chuvosa.”

De acordo com Garcia, na estação chuvosa esses primatas se alimentam de frutos carnosos e doces, enquanto na estação seca a dieta inclui invertebrados, folhas, brotos e seivas de árvores.

“Uma pergunta que tínhamos era se as espécies iriam usar as estruturas simultaneamente à passagem de veículos na rodovia. E concluímos que isso não interferiu no uso, não foi um fator limitante. Nem o ruído do automóvel, nem as luzes. Mesmo com o veículo lá embaixo, as espécies se sentiam seguras para usar as passagens.”

No caso do mico-leão, a utilização da passagem de madeira aconteceu aos poucos. “No primeiro ano, ela foi pouco usada, apenas um indivíduo do grupo; no segundo ano aumentou a frequência de uso e o número de indivíduos que utilizava a estrutura; e, no último ano, os nove indivíduos do grupo usaram simultaneamente a passagem e com maior frequência.”

Garcia ressalta que, entre os primatas estudados, cada indivíduo tem uma personalidade. “Cada um tem um ritmo para confiar na estrutura. Por isso, é preciso tempo para avaliar o uso das passagens. Há sempre os que vão na frente. Os outros os veem e vão também. E os filhotes aprendem com os pais.”

Políticas públicas

Os resultados da pesquisa mostram que ambos os desenhos de pontes de dossel funcionam para espécies arborícolas, mas a de madeira foi utilizada por um maior número de espécies, incluindo o mico-leão-preto ameaçado de extinção. Vale lembrar que desde 2014 o primata é considerado Patrimônio Ambiental e símbolo de conservação da vida selvagem do Estado de São Paulo.

Segundo Garcia, o estudo pode contribuir para o desenvolvimento de ações e trabalhos futuros relacionados a medidas de mitigação de ameaças rodoviárias à fauna local. “A pesquisa permite conclusões preliminares sobre a funcionalidade das pontes de dossel, especialmente para micos-leão-pretos. No caso específico da GRI 253, sugerimos também a colocação de lombadas, pois podem ajudar a mitigar possíveis eventos de atropelamento.”

Para ela, o trabalho não seria viável sem a parceria entre pesquisadores vinculados a instituições públicas de ensino, prefeitura, órgãos ambientais governamentais, empresa privada e sociedade civil. “Ela é essencial para o desenvolvimento desta e de outras ações em ecologia rodoviária que podem beneficiar a conservação e gestão da vida selvagem.”

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