Por dentro da máquina fonográfica: como os hits são fabricados

Quem cria os hits? Quem são esses homens que, mesmo sendo importantes movimentadores culturais, insistem em se manter no anonimato?

Quem cria os hits? Quem são esses homens que, mesmo sendo importantes movimentadores culturais — os Spielbergs e George Lucas do mundo fonográfico — insistem em se manter no anonimato?

Diretores de cinema são figuras públicas, mas as mentes por trás da indústria pop vivem nas sombras, adotando pseudônimos — por necessidade ou por escolha — para preservar a ilusão de que o cantor é o autor das músicas. Eu sabia muito mais sobre os compositores do Brill Building, ativos no começo dos anos 60, do que sobre os nomes por trás dos grandes hits.

Todos eles têm pseudônimos — nomes artísticos. Um dos produtores mais bem-sucedidos do grupo atende pela alcunha de Dr. Luke. Ele e seu parceiro, um sueco chamado Max Martin (outro pseudônimo), colocaram mais de 30 músicas no Top 10 desde 2004. A presença de Max Martin no Top 10 começou, na verdade, uma década antes disso; atualmente, ele se tornou o queridinho da Taylor Swift.

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Seja em número de hits ou longevidade, Max Martin ganha de todos seus precursores, incluindo os Beatles, Phil Spector e Michael Jackson.

É de se imaginar que, numa época em que qualquer um com habilidades básicas de computação pode criar uma música — sem nenhum treinamento musical ou aptidão em algum instrumento — as listas estariam tomadas por hits escritos por novatos. Afinal, existem poucas barreiras entre o anonimato e a fama. Mesmo assim, a mesma meia dúzia de compositores e produtores — uma misteriosa seita de magos musicais —  lança hit após hit.

LOS ANGELES, CA - FEBRUARY 08:  Music producer Max Martin speaks onstage during The 57th Annual GRAMMY Awards premiere ceremony at STAPLES Center on February 8, 2015 in Los Angeles, California.  (Photo by Michael Tran/FilmMagic)

O sueco Max Martin já compôs para a maioria das estrelas pop

Eles mesclam o talento de arranjadores experientes como Quincy Jones e George Martin com a técnica dançante de compositores-produtores como Holand-Dozier-Holland, a arma secreta da Motown. No canto pop, temos Ryan Tedder, Jeff Bhasker e Benny Blanco; no lado urbano, temos Pharrell Williams, Dr. Dre e Timbaland. Na junção entre os dois gêneros estão über-produtores como Stargate, Ester Dean, Dr. Luke e Max Martin.

Quanto mais eu ouvia as músicas, mais eu gostava delas.

Como isso é possível?  Se você não curte uma música de primeira, o lógico seria odiar a música ainda mais na décima ouvida. Mas aparentemente não é assim que funciona. Quanto mais familiar uma música se torna, mais nos conectamos a ela, mesmo que ela não nos agrade.

Isso ocorre gradualmente. O começo irritante da música da Britney Spears

If I said I want your body now (“se eu disser que quero seu corpo agora”)
Would you hold it against me (“você usaria isso contra mim?”)

vira sua parte favorita da música. Você canta versos como “No lead in our zeppelin!” como se eles fossem juramentos honrosos. Quando estou dirigindo, me preparo para a experiência sofrível de ouvir a mesma música mais uma vez, mas quando ela começa, me sinto estranhamente satisfeito. A melodia e o ritmo se entrelaçam deliciosamente; nas músicas do Brill Building, a melodia e o ritmo dormiam em lados opostos da cama. As batidas produzem uma vibração gostosa no meu esterno. E os ganchos oferecem o equivalente astral do que a indústria de comida processada chama de “nirvana” — quando o ritmo, o som, a melodia e a harmonia convergem na criação de um momento de êxtase, uma sensação mais física que racional.

Na formatura do meu filho, no verão passado, havia um DJ tocando Kesha, Pink, Rihanna — toda a trupe de estrelas pops. Como eu conhecia todas as músicas, me diverti muito na pista de dança. Dei um show dançando “Forever”, do Chris Brown, com uma das mães mais jovens, enquanto meu filho me olhava, aterrorizado.

O que eu posso dizer? A vida cotidiana exige um pouquinho de nirvana, esses momentos de transcedência espalhados ao longo do dia — a sensação trepidante de que o corredor do supermercado pode, a qualquer momento, explodir-se em luzes caleidoscópicas. Os ganchos dão essa sensação. Mas o êxtase é fugaz, e, assim como a comida processada, te deixa insatisfeito, querendo sempre um pouquinho mais.

***

Clive Davis tem uma forma própria de pronunciar a palavra “hits”. Quando a palavra surge no meio de uma conversa, o que sempre acontece, o produtor ruge a palavra como um leão.

“Eu estou falando de HITS!”, ele grita em seu curioso sotaque do Brooklyn. O ano é 2014, e Davis, diretor criativo da Sony Music, fala sobre hits há cinquenta anos, época na qual ele trabalhava como advogado na CBS Records. Para produtores como Davis, os hits são essenciais. Um pop star não é nada sem um hit, e uma carreira na música pop depende de uma “continuidade de hits”, uma das expressões favoritas de Davis.

É claro que Davis presenciou várias mudanças no gosto popular no decorrer desses 50 anos. O pop, seu estilo favorito, foi invadido por estilos novos e mais ousados, que, por sua vez, acabam sendo apropriados e diluídos pela indústria, normalmente em ciclos de 10 anos. O público adolescente, foco histórico da música pop, é o mais volátil de todos. Mas mesmo com todas essas mudanças, os hits continuaram a surgir. Eles são os portões pelos quais todo o dinheiro, fama e a popularidade atravessam para chegar ao céu do estrelato. Noventa por cento dos ganhos da indústria fonográfica vêm de dez por cento das músicas.

Toda música gravada profissionalmente possui dois tipos de direitos autorais: os que cobrem a publicação e os que cobrem a “master tape“. Os direitos de publicação cobrem os direitos autorais da composição, e o direito da master tape garante a propriedade das gravações originais. A master tape é um terreno; os direitos de publicação são o direito minerário e o direito aéreo. Além disso, existem os royalties mecânicos, calculados com base nas vendas, e os royalties de performance, cobrado quando uma música é tocada em público, incluindo na rádio.

Existem também os direitos de sincronização, que controla o uso de uma música em comerciais, jogos, programas de TV e filmes. Em alguns países (mas não nos Estados Unidos), existe algo conhecido como “direitos conexos”, dados a não-autores que possuem alguma relação íntima com a música, como por exemplo um intéprete. Como era de se esperar, o sistema é ridiculamente complicado. Só um advogado especializado em direito musical, como Davis, entende as complexidades do sistema de pagamento de royalties. Portanto, as gravadoras têm vários advogados especializados em direito musical.

Um grande hit não gera apenas toques no rádio; ele também populariza o álbum, o que beneficia a gravadora, e vende ingressos para a turnê mundial, o que beneficia os artistas. Um hit histórico pode valer centenas de milhares para aqueles em poder de seus direitos autorais, que, dependendo da data da composição da música, abrange a vida de seu compositor mais cinquenta ou sessenta anos. Só em 2008, “Stairway to Heaven” gerou mais de meio bilhão de lucro para seus detentores.

Com tanto dinheiro em jogo, não é de se surpreender que os hits sejam fonte de negócios suspeitos e histórias sombrias. Antigamente, os artistas eram incentivados a abrir mão dos direitos de publicação de seus hits, que acabavam valendo mais do que a música em si. Hoje em dia, um grande artista pode exigir uma parte desse direito, mesmo que ele não tenha criado a música (os compositores chamam essa prática de “Mude uma palavra e garante sua parte”).

“A indústria musical é uma vala de dinheiro rasa e cruel, um longo corredor plástico onde bandidos e cafetões andam às soltas, e os homens bons morrem como cães”, escreveu Hunter S. Thompson sobre o local de nascimento dos hits. (Thompson acrescenta: “Mas também existe um lado ruim.”)

Mas será que isso faz sentido? Será que essa abordagem comercial extremista na qual uma música bomba e dez outras músicas igualmente boas são ignoradas, por motivos que ninguém compreende, é razoável? Como o ex-chefe de Clive Davis e presidente do Bertelsmann Music Group, Rolf Schmidt-Holtz, disse em 2003, “nós precisamos criar novos cálculos de retorno financeiro que não sejam baseados apenas em hits, porque a relação das pessoas com a música não se dá mais através dos hits. Nós precisamos nos livrar dessa mentalidade de loteria.”

Quando Jason Flom, um dos maiores produtores da Atlantic Records, ouviu a opinião de Schmidt-Holtz, ele ficou incrédulo.  “Isso não vai acontecer”, ele me disse na época. “Na verdade, os hits são mais importantes do que nunca, porque uma estrela pode nascer de um dia pro outro. Os hits só vão sumir quando as pessoas pararem de comprar álbuns.”

Esse dia chegou. A venda de álbuns, que sustentou a indústria por mais de meio século e deu muito dinheiro para uma meia dúzia de produtores, está chegando ao fim. David Geffen vendeu sua garvadora (Geffen) para o MCA por mais de $550 milhões em 1990, e Richard Branson vendeu a Virgin para a EMI por $960 milhões em 1992. Em 2001 Clive Calder vendeu a BMG-Zomba por US$2.7 bilhões — marcando assim o auge da capacidade lucrativa dos hits.

Mas desde que o Napster libertou a música de suas amarras, em 1998, o público pode ouvir qualquer hit sem precisar pagar. Isso é um problema para caras como Clive Davis e Jason Flom; criar um hit é, afinal, algo muito caro. “O que aconteceria se os consumidores pudessem conseguir comida ou móveis de graça?”pergunta Flom. “Essas indústrias teriam que se adaptar rapidamente, assim como nós tivemos.”

Mesmo nos serviços legais de streaming, como o Spotify, o consumo musical é “sem atrito” — termo muito utilizado pelos especialistas. Isso significa que esse consumo é, se não gratuito, desprovido de qualquer incoveniência relacionada à compra do produto. Um mundo de escassez se tornou um mundo de abundância. Nada está à venda; tudo está disponível. Comprar CDs está se tornando um ato obsoleto tanto entre os adeptos da pirataria quanto entre os assinantes de serviços de streaming. E ainda assim os hits sobrevivem.

Em The Long Tail, o texto tecno-utópico publicado em 2005 que previa o crescimento da cultura de nicho no mercado popular, o autor Chris Anderson argumenta que hits são um fenômeno causado pela escassez. Lojas de discos têm um espaço de armazenamento limitado, ele explica, e discos que vendem 10.000 unidades são mais vantajosos do que discos que vendem 10 unidades. Mas na internet, o espaço de armazenamento é infinito, e portanto as gravadoras não precisam mais se esforçar tanto para lançar hits. Elas podem se voltar para o filão da classe média artística — artistas com uma base de fãs pequena mas fiel. Juntos, esses fãs formam o que Anderson chama de “maioria invisível”, um “filão que compete com o mercado de hits.”

“Se a base da indústria de entretenimento do século 20 eram os hits, a base da indústria do século 21 serão os nichos”, afirma Anderson logo no começo do livro. Usando dados do Rhapsody, um dos primeiros serviços de streaming pagos da internet, Anderson prevê a era dos “micro-hits”. Ele escreve que “isso não é uma fantasia. Esse é o atual estado da música”. Entre outras coisas, isso significa que a música indie que intelectuais como Anderson e seus amigos curtem irá finalmente competir com boy bands “manufaturadas” que enloquecem as massas adolescentes.

Uma economia fonográfica de cauda longa (cujo surgimento é defendido por Anderson) ameaça tudo que define um produtor. Por que se preocupar em criar hits, e ter que aguentar vários fracassos, quando as gravadoras podem simplesmente vender seu catálogo de hits já pagos, levando o dinheiro direto para os bolsos da gravadora? As gravadoras do futuro serão como uma central de telemarketing, diz Flom sarcasticamente. “Disque um para pop e dois para blues.”

Mas isso não aconteceu. Nem de perto. Nove anos depois da publicação de The Long Tail, os hits são maiores do que nunca. Das 13 milhões de músicas lançadas em 2008, 52.000 representam 80% do lucro da indústria. Dez milhões dessas músicas não foram vendidas nenhuma vez. Hoje, 77% dos lucros do rendimento da indústria musical vai para as mãos de apenas 1% dos artistas.

Até mesmo Eric Schmidt, diretor-executivo do Google e defensor da teoria da cauda longa, mudou de ideia recentemente. “Embora a teoria seja muito interessante, a maior parte do rendimento continua indo para um número muito pequeno de empresas”, disse ele em uma entrevista de 2008 para a McKinsey, uma empresa de consultoria. “Na verdade, é bem provável que a internet gere hits ainda maiores, que por sua vez aumentarão a concentração de capital dessas grandes marcas.”

Em seu livro Blockbusters, lançado em 2014, Anita Elberse, professora da Faculdade de Administração de Harvard, mostra como os mega hits se tornaram cada vez mais essenciais para a indústria de entretenimento. “Os executivos mais espertos investem com força em um número limitado de artistas. Eles são as galinhas de ouro”, ela escreve.

A ideia da cauda longa é incrível — mais prosperidade para um número maior de artistas — e ela faz sentido no mundo tecnológico, onde temos ideia de que a lógica inerente das redes digitais pode incentivar a meritocracia. Mas a indústria musical não segue nenhuma lógica, e o mérito nem sempre importa. Poder, medo e ganância são as leis que regem essa terra.

Como os hits sobreviveram à forças tão disruptivas quanto a música gratuita e o espaço de armazenamento infinito? Existem vários motivos, alguns dos quais são discutidos extensamente nas próxima páginas. Equipes especializadas de compositores e produtores usam um método de composição que eu chamo de track-and-hook para criar músicas que são quase irresistíveis. As gravadoras aprenderam a criar uma demanda para grandes artistas como Katy Perry e Rihanna — uma demanda que está ligada à longa relação dessas produtoras com o rádio comercial. E o público, mesmo tendo a opção de ouvir qualquer música do mundo, ainda quer ouvir o que todas as rádios estão tocando.

O fato de de tantos hits terem sido escritos por um sueco, Max Martin, e sua equipe de colaboradores treinados na Suécia, é significativo. A distinção entre o R&B e o pop, que nos Estados Unidos está tão relacionada à raça quanto à música, é menos perceptível na Suécia, um país de população mais homogênea. Começando com os Backstreet Boys e passando pelos maiores hits da Britney Spears, ‘N Sync, Kelly Clarkson, Katy Perry, Kesha e Taylor Swift, Max Martin e seu grupo de compositores e produtores suecos criaram um híbrido que vai além dos gêneros: músicas pop com uma batida R&B.

A distância entre a cultura sueca e a música americana e inglesa permite que eles manipulem, e em alguns casos misturem, diferentes gêneros — R&B, rock, hip-hop — transformando-os em música pop com a ajuda de métodos criados nos anos 90 em Estocolmo, num lugar chamado Cheiron Studios, local de nascimento da máquina fonográfica.

Trecho retirado do novo livro de John Seabrook, The Song Machine: Inside the Hit Factory, disponível na Amazon (apenas em inglês).

Imagem do topo: AP

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