Por que a Amazon é hoje a empresa mais revolucionária do mercado de tecnologia?
Desde pelo menos a introdução do primeiro iPad, talvez um pouco antes, não se via um lançamento tão incrível como o que aconteceu agora há pouco no mundo da tecnologia. Com a nova família de Kindles, a Amazon mostra que está focada não simplesmente em produtos, mas – mais do que qualquer outra empresa do ramo – em entender o papel dos gadgets na nossa vida; não simplesmente em tablets, mas em o que as pessoas querem fazer com tablets. O Kindle Fire HD é incrível e o paperwhite também, e ambos estão a preços inacreditáveis (para quem mora nos EUA, é claro). Mas são os pequenos detalhes de distribuição, interface e hardware que, juntos, estão conquistando não só novos consumidores, mas redesenhando alguns mercados.
Os posts detalhando os Kindles você pode ler aqui e aqui. As primeiras impressões são divididas, e não necessariamente as mais empolgantes do mundo: em termos de pura performance, ele parece ficar atrás do iPad ou o Nexus 7. Coisas perceptíveis aos leitores do Gizmodo, provavelmente, mas nada que deixe o negócio impraticável. De todo modo, não queria me concentrar nisso, não estou fazendo uma pura comparação de dispositivos. a ideia neste post é tentar explicar por que acho que a Amazon tem sido tão consistentemente revolucionária para o mercado da tecnologia nos últimos anos.
Em janeiro de 2010, logo que o iPad foi anunciado uma quantidade enorme de pessoas dizia que aquilo era uma tábua estúpida, escrevi que ele era sim, revolucionário, mas fazia pouco sentido no Brasil. Ele era (e é) apenas um iPod gigante. Mas o fato de ser um iPod gigante permitiu apps incríveis para compor músicas ou fotos, uma maneira mais cômoda de navegar na internet e de ler muita coisa – do Instapaper a gibis. As novas possibilidades de uso apareceram com os apps, e como a Apple sempre foi melhor servida de desenvolvedores, conseguiu se manter na frente. De lá pra cá foram basicamente pequenos avanços de especificações (alguns incríveis, como a tela do novo iPad), mas o ecossistema+tela grande foram decisivos.
A Amazon não fez algo tão disruptivo como a Apple fez outrora com os seus Kindles hoje e, assim como o primeiro iPad, seus grandes atrativos fazem pouco sentido no Brasil. Aliás, boa parte do que falo daqui pra frente vale mais para os EUA: a não ser que seu inglês seja impecável e você saiba as gambiarras para se passar por um americano (de cartões ao VPN), as inovações da Amazon fazem pouco sentido. Mas elas dão uma ideia de como é um mundo ideal de distribuição e circulação de conteúdo de qualidade, relativamente barato e rápido.
REVOLUCIONANDO A LEITURA
O Kindle melhorou a experiência de leitura em diversas maneiras. Eu vou descrever o que fiz hoje e faço basicamente todos os dias.
Estava de manhã no cabeleireiro, lendo um livro lançado semana passada nos EUA e que paguei 10 dólares para ler no meu Kindle (a versão que agora custa incríveis 70 dólares). Selecionei uma palavra que não sabia o significado, e ele apareceu sem eu precisar sair da página. Marquei algumas passagens para a minha pesquisa posterior, rapidamente. Coloquei o negócio ridiculamente leve na mochila, e quando cheguei no escritório, ele “percebeu” o Wi-Fi e sincronizou minhas marcações com a nuvem. Em um momento mais tranquilo, abri o editor de textos ao lado de uma janela no navegador com o read.amazon.com, e ele estava na página que parei. Avancei mais um pouquinho a leitura, vi todas as minhas marcações, e consolidei minhas anotações para o trabalho. Isso parece corriqueiro hoje, mas pare e pense em quão diferente isso é de apenas 5 anos atrás. Para quem faz muita pesquisa e lê em inglês, é um adianto de vida muito significativo.
Desde que introduziu o Kindle, a Amazon praticamente criou o mercado de eBooks. Hoje, ela vende mais lançamentos neste formato do que em árvores mortas. A lógica de que “tecnologia é um meio e não um fim” é seguida à risca pela Amazon: a empresa vende o seu leitor baratíssimo para faturar em mais livros, a sua especialidade. Com isso ela não só revolucionou a venda, distribuição e consumo de livros nos mercados maduros (no Brasil a coisa ainda engatinha, mas já somos 9,5 milhões de leitores e ebooks), mas agora atacou o próprio mercado de publicação. Jeff Bezos, o CEO da marca, fez questão de mencionar hoje como a plataforma de autopublicação (o Kindle Direct Publishing) de autores está fazendo sucesso. A ideia é relativamente simples, mas só é possível graças ao tamanho e alcance da Amazon. Pelo KDP, basta mandar o arquivo e de repente você tem acesso à maior base de consumidores do mundo, com 70% sobre o faturamento de vendas. Hoje, dos 100 livros mais vendidos da Amazon, 27 são autopublicados. Durante a coletiva, Bezos mostrou a história de gente como Theresa Ragan, que vendeu 300 mil livros pelo KDP e foi rejeitada antes por editoras convencionais. Criar um ecossistema que liga autores ao público de maneira mais eficiente para ambas as partes é algo mais revolucionário que qualquer grid de quadrados arredondados.
E a coisa muda não só para os independentes. Ler um bestseller de uma grande editora no Kindle também é uma experiência potencialmente mais rica: a tecnologia x-ray permite ver conteúdo extra, como a complicada árvore genealógica de alguns livros ou em que páginas aquele personagem obscuro de Game of Thrones é mencionado.
Juntando tudo, o Kindle básico é hoje o melhor dispositivo que existe para a leitura, e algumas pesquisas validam a tese, simplesmente porque ele não tem distrações. Uso ele um monte, mas levo o iPad para ler na cama porque não tenho luminária na cabeceira, e a tela é iluminada. O Paperwhite resolve o problema, e traz inúmeras pequenas inovações de hardware, da resolução melhor à absurda bateria de 8 semanas. Isso tudo é impressionante e aumenta o monopólio da Amazon sobre o mercado de e-readers – tanto do lado de publicação quanto de leitura – mas ainda há muitos outros pequenos toques que fazem diferença: baseado no seu ritmo de leitura, os livros no Kindle agora mostram quanto falta (em minutos) para o próximo capítulo ou fim do livro. A nova fonte é mais agradável aos olhos em leituras longas. Agora há um modo em que você pode ouvir o livro ao mesmo tempo que lê, reforçando a compreensão (e ouvindo vozes de figurões como Anne Hathaway e Samuel L. Jackson).
A minha inovação favorita mostrada hoje foi o “whispersync de voz”. Eu redescobri o valor do audiobook recentemente com o Audible (empresa comprada pela Amazon, aliás). Eu compro o livro, ouço no iPhone e o app é bem esperto para fazer anotações e colocar marcadores. Como eu ando a pé pelo menos uma hora por dia (aumentei minha caminhada até o ponto de ônibus para poder ouvir livros), a leitura rende, mas acho chato ter de escolher ler ou ouvir um livro. Com o mecanismo apresentado hoje, a nuvem da Amazon sincroniza onde você está em um audiobook com o progresso no ebook. Então você pode ler um pouco em algum lugar e ouvir de onde parou. Isso não é só mais conveniente, mas melhora a compreensão de acordo com algumas pesquisas. Poder ler livros em mais lugares, mais barato, de maneira que melhora a compreensão. É esse tipo de revolução tecnológica que devemos perseguir.
FILMES E SÉRIES
Para os americanos, a Amazon tem 120 mil títulos disponíveis para compra ou aluguel, no sistema à la carte, como o iTunes. Mas há também um serviço chamado “Amazon Prime”, que tem vantagens como frete grátis em compras “físicas” ilimitadas a 80 dólares por ano e um livro de graça no Kindle por mês. Para quem é assinante do Prime e compra um Kindle Fire, o serviço é ainda melhor: estão disponíveis 25 mil séries e filmes, incluindo muitos lançamentos (compare com os 1.940 do Netflix Brasil), sem custo adicional. E esse serviço de assinatura está cada vez melhor: 3 dias depois de o Netflix perder os direitos de estúdios como Sony e Disney, a Amazon conseguiu levar para os assinantes do Prime esses catálogos, que duplicou de tamanho em um ano.
Esse tipo de “venda casada” benéfica é revolucionária. Imagine se pelo benefício de frete rápido gratuito eterno no Submarino você pudesse assistir a um monte de séries na sua TV, ou com uma assinatura de uma Net da vida você tivesse direito a assinaturas de revistas e entrega grátis em um supermercado?
O Prime é uma grande sacada (só disponível para os americanos, bom que se diga), mas assim como o Kindle, a Amazon também trouxe ótimas inovações para o consumo desse tipo de conteúdo. Como assistir a vídeos é uma das principais funções de um tablet – mas, ainda bem, não a única – o Kindle HD trouxe novas tecnologias de conectividade Wi-Fi para diminuir o tempo de carregamento de um vídeo. A imagem de um tablet concorrente parado no buffering é emblemática. O “whispersync de vídeo” também foi uma adição bem-vinda: como o serviço de aluguel de filmes da Amazon funciona não só no Kindle Fire mas em videogames, computadores e até tablets concorrentes, você pode começar a assistir a um vídeo no iPad e continuar em um Kindle Fire HD ligado em HDMI na TV (ele tem a saída).
Todo mundo fala dos tablets e smartphones como “segundas telas”, e de fato quando eu vejo algum filme na TV ou uma série, é comum puxar o imdb para saber o “de onde eu conheço aquela atriz”. É um app que está na primeira tela. Uma tecnologia apresentada hoje foi o “X-Ray for movies”: toque numa atriz e descubra mais informações sobre ela, diretamente do imdb. Sem sair do filme, aparece uma lista lateral com vídeos relacionados, que você pode colocar na fila do aluguel. A demonstração dessa funcionalidade hoje provocou reações do tipo “é bruxaria”.
Imagino que você não deva gostar de monopólios, aprecia a liberdade e tudo isso. Mas a verdade é que toda essa mágica só é possível porque a Amazon 1) Comprou o imdb, 2) é grande o suficiente para negociar acordos de distribuição com os estúdios e 3) Tem um software e DRMs (proteção de cópia) totalmente proprietários por cima que permitem a sincronização e armazenamento de licenças na nuvem. Não espere algo parecido baixando um .mkv por aí e jogando em um outro tablet.
CONTEÚDO E CONTROLE
É cada vez mais comum ver pais usando o tablet/smartphone como babá, mas a criança acaba vendo todo tipo de porcaria ou jogando sem parar. Com um controle firme, o tablet pode ser um instrumento não só de domar uma pequena fera, como de educação. O “Kindle Free Time”, apresentado hoje, permite estabelecer o limite de uso em cada tipo de app. O pai pode configurar que o tempo gasto “lendo livros” pela criança seja ilimitado enquanto assistir a vídeos ou jogar seja restrito a meia hora. O detalhe genial: quando acaba o tempo, o jogo/vídeo é colocado em pause e a tela fica toda azul, tornando possível, nas palavras de Jeff Bezos, que “o pai veja de longe, mesmo em outro quarto”, a situação.
Por falar em joguinhos que consomem tempo, a Amazon achou uma boa solução para aumentar a rentabilidade para os desenvolvedores e facilitar os “in-app purchases”, que são responsáveis cada vez mais pelo lucro dos jogos, especialmente os gratuitos. Agora é possível comprar um item “físico” de dentro do aplicativo. A ideia é mais ou menos assim: quer desbloquear um personagem diferentão, todo customizado? Pague 10 dólares e além de novas funcionalidades e itens dentro do app, você ganha uma réplica de pelúcia em casa. Foi exatamente este exemplo demonstrado hoje, e ele tem tudo para fazer a cabeça de desenvolvedores, preocupados com a pirataria e com margens baixas.
Outro detalhe interessante de usabilidade introduzido hoje: na tela inicial e em vários aplicativos, além do ícone de Home e voltar, há uma estrelinha reservada aos favoritos. Tocar nele traz atalhos para músicas, livros, revistas, capítulos de livros, apps ou vídeos específicos. Como a Amazon entende o tablet como uma janela para consumo de conteúdo, nada mais justo que o acesso a ele seja fácil e rápido.
E A CONCORRÊNCIA?
Todas essas pequenas inovações mostram que a Amazon está concentrada, mais que ninguém, em fazer com que seus dispositivos sejam “as melhores janelas” para consumo de conteúdo de qualidade. Bezos disse hoje que a empresa não queria simplesmente ganhar quando um cliente comprava um de seus produtos, mas quando o cliente usava. É claro que no processo de aperfeiçoamento ela vende milhões de livros e filmes, mas a impressão que eu tenho é que ela entendeu melhor que qualquer um a ideia de que seus produtos são simplesmente um meio, e observar os hábitos de uso (o tablet-babá, por exemplo) pode criar oportunidades interessantes para o desenvolvimento da interface.
É claro que a Amazon não está sozinha nessa cruzada. A Samsung parece estar querendo andar nessa direção, também. No lançamento do SIII e no recente Note 2, houve um foco completo no aspecto “humano” do smartphone. Há uma questão de marketing aí, dos coreanos precisando se dissociar da ideia de “puro hardware complicado”, mas apareceram detalhes legais: o Smart Stay evita a chateação de fazer a tela “dormir” quando você está olhando para ela; ou o “Direct Call”, que quando você está escrevendo um SMS para uma pessoa e resolve ligar para ela, basta levar o telefone ao ouvido. São coisas aparentemente bobas se você pegar isoladamente, mas é exatamente isso que os novos Kindles mostram: as empresas deveriam se preocupar mais em atender as vontades do consumidor do que simplesmente criar uma vontade por um bem de consumo. A publicidade tem que ser mais “com isso você terá acesso a mais filmes, mais barato, e você poderá ler melhor” e menos “essa resolução é incrível, essa bateria é infinita”. No lado de Cupertino, essa ideia era central durante a Era Steve Jobs, mas recentemente as inovações de função e usabilidade estão mais a cargo de desenvolvedores. Nós consumidores ganharíamos bem mais se as fabricantes colocassem a facilidade do consumo de conteúdo, por exemplo, como uma diretriz de design.
E NÓS NO BRASIL?
Como eu falei lá no início, uma enorme parte dessas inovações está indisponível pra gente, especialmente por causa dos arcaicos acordos com os detentores de conteúdo. E 99% das vantagens do Kindle Fire requerem que seu sistema opere com a última versão do inglês, estável. Então só temos a torcer para que a Amazon chegue logo por aqui, consiga firmar acordos importantes e comece a oferecer essas opções pra gente. Independente disso, temos que esperar que pelo menos algumas das inovações de interface sejam copiadas por outros. E que a Amazon não processe todo mundo que tente copiá-la em coisas que são só boas ideias, como ela fez quando outras empresas copiaram a “compra em 1 clique“.
UM RÁPIDO CONSELHO DE COMPRA
Imaginando que você tem acesso a alguém que possa trazer de fora, a pergunta: Kindle Fire HD, iPad 3 ou Nexus 7? Preciso colocar as mãos no aparelho ainda, mas eu, que pulei uma geração do iPad, estou bem tentado a experimentar o novo Fire. Se você tiver disposição e já cultivar o salutar hábito de pagar por conteúdo digital, não é tão difícil assinar o Amazon Prime, colocar o unblock-us e se fingir gringo. Aí ele parece a melhor opção. Se você está pensando especificamente em hardware, ou “quero instalar um CM10” e brincar, ou usa conteúdo de fontes diversas e nem sempre confiáveis, o Nexus 7 ainda parece a melhor opção custo/benefício/liberdade, apesar de o espaço limitado diminuir a possibilidade de usar muito vídeo, por exemplo. Se dinheiro não for um problema, o iPad 3 é o melhor pelo conjunto hardware e ecossistema. Mas você perde bastante em portabilidade, por exemplo. Acho que meu conselho sobre tablets agora seria: espere.
Sim, esperar é quase sempre o melhor, mas agora especificamente: há um possível iPad Mini a caminho, o Fire HD precisa ser devidamente testado e há um monte de híbridos de tablet com notebook da Microsoft e parceiros, mais direcionados para a produtividade, vindo por aí. Serão meses interessantes, os próximos.