Primeiras membranas podem ter definido as bases da vida na Terra

Estudo simula estruturas de células primitivas e avança na compreensão da origem da vida

Uma das grandes dúvidas sobre a origem da vida na Terra pode estar mais próxima de uma resposta: se as moléculas importantes para o organismo existem em versões espelhadas – ou especulares, como se fossem a mão direita e a esquerda –, por que as células selecionam apenas uma dessas versões? Mais impressionante, a mesma escolha vale para todos os organismos, que usam a versão de “mão direita” dos açúcares (como a D-ribose, presente no DNA e no RNA) e a esquerda dos aminoácidos, que ficam marcados com um L. Um estudo publicado em maio na revista científica PLOS Biology aponta que a seletividade de membranas primitivas teria sido o fator decisivo nessa escolha entre formas de moléculas, moldando as bases da vida como a conhecemos.

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A metáfora das mãos descreve um fenômeno fundamental da química: a lateralidade molecular ou quiralidade. Embora idênticas na composição, as versões especulares não se alinham perfeitamente uma com a outra. Na prática, isso significa que uma versão da molécula se encaixa com precisão nos processos biológicos, enquanto a outra não.

“A vida na Terra tem preferência por açúcares na configuração da ‘mão direita’ [D] e por aminoácidos na ‘mão esquerda’ [L], com algumas pequenas exceções”, explica o biólogo brasileiro Juliano Morimoto, da Universidade de Aberdeen, na Escócia, e do Programa de Pós-graduação em Ecologia e Conservação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Quando esses compostos são produzidos quimicamente em situações que simulam a origem da vida, aparecem em proporções iguais, tanto na configuração de mão direita quanto na de esquerda. Mas, como só uma delas é utilizada nos sistemas biológicos, precisou existir algum mecanismo seletor”, detalha o pesquisador, que é um dos autores do estudo.

A explicação remonta a bilhões de anos atrás, quando o planeta era um ambiente repleto de reações químicas capazes de formar moléculas simples, como açúcares e aminoácidos – cenário demonstrado na década de 1950 pelos experimentos do químico norte-americano Stanley Miller (1930-2007) e também observado em meteoritos. A vida teria surgido a partir da forma como elas passaram a se organizar e formar estruturas membranosas primitivas, que mais tarde deram origem às células.

Em laboratório, Morimoto e colaboradores recriaram modelos semelhantes às membranas de bactérias e arqueias, os dois principais grupos de organismos unicelulares considerados nas teorias sobre a origem da vida, e constataram que essas barreiras eram capazes de selecionar quais moléculas podiam atravessá-las. Esse processo seria resultado de uma permeabilidade determinada pelas propriedades físico-químicas das membranas, cujas moléculas em si também têm características de quiralidade em sua composição: L nas arqueias e D nas bactérias e eucariotos.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Além disso, a equipe desenvolveu uma versão híbrida, combinando características bacterianas e arqueanas para investigar se alguma das três apresentava propriedades compatíveis com o que se observa na biologia atual. “O que verificamos é que a membrana híbrida tem a capacidade de selecionar certos açúcares da ‘mão direita’ e aminoácidos da ‘mão esquerda’, exatamente a seletividade que esperaríamos na origem da vida pelo que sabemos hoje da biologia”, detalha.

A partir das membranas recriadas, os pesquisadores utilizaram uma técnica que permite controlar com precisão a passagem de fluidos contendo diferentes açúcares e aminoácidos em torno das vesículas formadas. Eles adicionaram um marcador fluorescente ao interior das membranas e monitoraram a intensidade do brilho emitido ao longo do tempo. Quando as moléculas externas conseguiam atravessá-las e interagir com o marcador, a fluorescência se alterava, indicando a entrada da substância. Esse método permitiu comparar diretamente a permeabilidade entre moléculas de “mão direita” e de “mão esquerda”.

“Talvez a solução para o mistério da quiralidade da vida esteja, de fato, na permeabilidade seletiva das membranas das protocélulas”, analisa o físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser, do Dartmouth College, nos Estados Unidos, que não participou da pesquisa. Ele é autor de um artigo publicado na revista científica Origins of Life and Evolution of Biospheres, em 2022, sobre as possíveis origens da homoquiralidade (a preferência por L-aminoácidos e D-açúcares) na vida terrestre.

Na publicação, Gleiser propõe que essa definição pode ter se originado a partir de três mecanismos distintos: flutuações ambientais locais que atuaram de forma aleatória, a influência de radiação ultravioleta circularmente polarizada em regiões de formação estelar, ou ainda efeitos sutis de violação de paridade em nível subatômico. Cada uma dessas hipóteses, segundo afirma, implica diferentes consequências observacionais, tanto no Sistema Solar quanto em exoplanetas, o que sugere que a busca por vida fora da Terra pode ser essencial para desvendar a origem dessa assimetria fundamental nos sistemas biológicos que conhecemos até agora.

Sobre a hipótese testada por Morimoto e colaboradores, Gleiser afirma que é válida e apresenta resultados interessantes, mesmo que não seja possível conhecer com total precisão o conjunto de fatores físicos, químicos e ambientais da Terra naquela época. “A dificuldade maior aqui é saber se esse foi o processo exato que ocorreu há 4 bilhões de anos, uma vez que não temos acesso às condições planetárias dessa época primordial”, pondera.

Ciente dos desafios de reconstruir eventos do passado remoto, o grupo de Morimoto avança em duas frentes para aprofundar a compreensão da quiralidade. Com financiamento de £ 1,4 milhão da Gordon and Betty Moore Foundation – organização norte-americana que apoia a pesquisa –, os pesquisadores buscam investigar em detalhe como a composição química das membranas das protocélulas influencia a origem da permeabilidade seletiva. Paralelamente, desenvolvem um modelo matemático para entender a dinâmica desse fenômeno e identificar as condições mínimas necessárias para que ocorra um processo de seleção natural.

Artigos científicos
GOODE, O. et alPermeability selection of biologically relevant membranes matches the stereochemistry of life on EarthPLOS Biology. On-line. 20 maio 2025.
GLEISER, M. Biological homochirality and the search for extraterrestrial biosignaturesOrigins of Life and Evolution of Biospheres. v. 52, p. 93-104. 15 ago. 2022.

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