Proposta para mudança de nome de ancestral humano racha comunidade científica

Antropólogos argumenta que 'grupo' de classificação humana é muito amplo e que há fósseis com características 'únicas'

Contar a crônica da evolução humana é uma tarefa complicada, muitas vezes o resultando se mostra com contradições e inconsistências. Um grupo de cientistas está tentando entender melhor essa bagunça antropológica, propondo uma nova espécie de ancestral que exige a reatribuição de certos fósseis. A pesquisa foi publicada na Evolutionary Anthropology Issues News and Reviews. 

Os antropólogos chamam isso de “confusão no meio” – aquele período da história da evolução humana que está repleto de pontos de interrogação. Na verdade, o Pleistoceno Médio, também conhecido como Chibaniano (774 mil a 129 mil anos atrás), representa um estágio de transição chave para o gênero humano, ou Homo, mas este período continua mal compreendido. Foi durante a Chibânia que nossa espécie, o Homo sapiens, surgiu há cerca de 300 mil anos.

Grande parte da confusão tem a ver com a falta de registro fóssil. Nossos ancestrais não se deixaram muito para trás, e os poucos fósseis que deixaram contam uma história incompleta. Convenções científicas desatualizadas, terminologia fraca e falta de vontade de responder a novos dados científicos também contribuíram para a confusão, ao menos é o que aponta esta nova pesquisa dos cientistas de Universidade de Winnipeg, Canadá

A nova pesquisa procura esclarecer grande parte dessas dúvidas, declarando um novo táxon (unidade taxonómica associada à classificação cientifica de seres vivos), ou espécie, de ancestral humano: Homo bodoensis. Este grupo não é baseado em nenhuma nova descoberta de fóssil, mas sim em um retrabalho em fósseis pré-existentes encontrados na África e na Eurásia, todos datam de cerca de 700 mil a 500 mil anos atrás. O novo nome foi adicionado ao Zoobank da Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica (ICZN), tornando-o “oficial”, como disse a antropóloga Mirjana Roksandic, da Universidade de Winnipeg.

“Se ele vai viver ou cair no esquecimento, é uma questão com as pessoas que trabalham no campo acharem que é uma ferramenta útil para comunicação, construção de cenários ou teste de hipóteses”, explicou por e-mail Roksandic, que liderou o estudo. “Acreditamos firmemente que isso vai durar”.

Todos os fósseis atribuídos a H. bodoensis são tradicionalmente conferidos a uma das duas espécies humanas ancestrais: Homo heidelbergensis ou Homo rhodesiensis. O problema é que essas duas espécies, como classificações taxonômicas, são atualmente muito confusas, pois carregam definições múltiplas e contraditórias e não são totalmente definidas por um conjunto estrito de critérios, argumentam os cientistas.

“Desenvolvimentos recentes no campo da paleoantropologia requerem a supressão de duas espécies de hominíneos e a introdução de uma nova para ajudar a resolver o atual estado nebuloso da taxonomia de hominíneos do Pleistoceno Médio (Chibânia)”, escrevem os autores em seu estudo. “Em particular, os taxa hominíneos mal definidos e de compreensão variável Homo heidelbergensis e Homo rhodesiensis precisam ser abandonados, não refletem toda a gama de variabilidade hominínica no Pleistoceno Médio.”

Os cientistas levantam algumas questões importantes. Antropólogos juntaram fósseis africanos de H. heidelbergensis e H. rhodesiensis, o que obviamente não é legal e é um sinal de que algo está errado. 

Como adendo, muitos antropólogos não gostam do termo “rhodesiensis”,  já que é (parcialmente) ligado a Cecil Rhodes – um polêmico político imperialista que presidiu a morte de milhares de africanos no final do século 19. Roksandic e seus colegas transferiram quase todos os fósseis de H. rhodesiensis para H. bodoensis, com alguns adicionados ao Homo sapiens.

Heidelbergensis também é problemático, disse Roksandic, porque é um “tamanho único para todas as espécies” e “muitos fósseis diferentes foram incluídos”. Todos os fósseis chibanianos foram incluídos em um momento ou outro no H. heidelbergensis lato sensu (latim), que significa literalmente sentido amplo, disse ela.

Em outras palavras, “a maioria dos fósseis de H. heidelbergensis da Europa são neandertais primitivos”, que foi “atribuído com base na morfologia por muito tempo” e recentemente confirmado por um estudo de DNA dos fósseis espanhóis Sima de los Huesos, explicou ela.

Segundo a pesquisadora, “outros fósseis de H. heidelbergensi, especialmente aqueles na classe ‘lato sensu’, podem ser parte de H. bodoensis ”, como por exemplo os fósseis encontrados no leste do Mediterrâneo. 

Quanto aos restos encontrados no leste da Ásia, esses são um problema diferente e ainda não resolvido, disse Roksandic. Consequentemente, os fósseis do leste asiático atribuídos ao H. heidelbergensis devem ser removidos desta categoria, pois eles “ podem representar uma linhagem completamente diferente”, como os autores escrevem no artigo.

A espécie recém-descrita, H. bodoensis, é baseada em um crânio chamado Bodo, encontrado em 1976 na Etiópia. Acredita-se que é um ancestral direto do H. sapiens. O fóssil está atualmente atribuído a H. heidelbergensis.

O H. bodoensis tinha um cérebro grande e caixa craniana aumentada, o que provavelmente permitiu a esses primeiros humanos viver em todos os tipos de ambientes desafiadores, incluindo aqueles alterados pelas mudanças no clima. A definição de novas espécies oferece algumas “vantagens claras”, como os cientistas escrevem em seu estudo:

Ele reconhece a variabilidade e distribuição geográfica dos hominíneos do Pleistoceno Médio; e descreve a morfologia única dos Pleistoceno Médio africano que se estendem pelo Mediterrâneo oriental, distinto dos H. neanderthalensis e antecede o aparecimento de Homo sapiens. Embora não seja uma espécie verdadeira no sentido biológico estrito (uma vez que há evidências fortes e crescentes de migrações, bem como de fluxo gênico entre esses grupos divergentes), este táxon recém-definido corta o uso ofuscante e inconsistente de hominíneos indevidamente nomeados e definidos do Pleistoceno Médio em Europa e África e devem facilitar discussões mais consistentes e significativas em torno dos vários tópicos aqui apresentados.

Como os autores observam, H. bodoensis ainda não é uma espécie verdadeira, dada a quantidade significativa de cruzamentos que aconteceu entre diferentes grupos humanos e a natureza altamente móvel. Como mostra uma pesquisa anterior, as populações humanas não evoluíram de uma única população ancestral.

Ilustração do recém-proposto táxon, Homo bodoensis. | Imagem: Ettore Mazza

Divisor de águas

Chris Stringer, um antropólogo do Museu de História Natural de Londres que não estava envolvido na nova pesquisa, expressou algumas preocupações com o novo artigo.

“Concordo que o heidelbergensis foi manipulado como um saco de pano e sou parcialmente culpado por originar seu uso mais amplo – mas nunca manejei para incluir os fósseis de Sima”, explicou ele por e-mail. “É preciso repensar como um termo mais amplo porque a mandíbula Mauer é tão característica, mas sob as regras do ICZN você não pode simplesmente cancelar o nome de uma espécie de que não gosta – deve haver boas razões – e provavelmente a distinção de Mauer garante manter esse nome para ele.”

A mandíbula Mauer foi descoberta em uma pedreira de areia alemã em 1907 e atualmente está atribuída a H. heidelbergensis. Roksandic e seus colegas querem que ele seja reatribuído ao Homo neanderthalensis, mas Stringer não está convencido de que a mudança seja justificada devido às suas características únicas.

Ao mesmo tempo, Stringer argumenta que  H. rhodesiensis é suficiente para o que os cientistas estão tentando alcançar agora, e ele não vê a necessidade de criar mais um nome. O nome rhodesiensis remonta ao crânio Broken Hill/Kabwe, descoberto em 1921, que recebeu o nome do país de origem, Rodésia do Norte, hoje Zâmbia.

“Mas mesmo que o nome rhodesiensis seja, de alguma forma, pequeno, o correto seria procurar dentro do grupo de espécies pelo próximo nome apropriado”, disse Stringer, recomendando tanto “heidelbergensis” (após o crânio de Elandsfontein encontrado em 1955) e “cepranensis ”(após o fóssil Ceprano de 2003). Independentemente disso, os nomes taxonômicos “aumentam e diminuem de acordo com sua utilidade e adequação na pesquisa, e a confusão se resolverá com o tempo”, acrescentou.

Um modelo simplificado para a evolução do gênero Homo nos últimos 2 milhões de anos. Imagem: M. Roksandic e equipe

Stringer diz que a espécie proposta, H. bodoensis, exibe características faciais consistentes com outro ser humano arcaico, o H. antecessor, então, novamente, ele não está totalmente certo de que uma nova espécie precisa ser declarada neste momento. Além do mais, já é “geralmente aceito”, disse ele, que muitos fósseis aparentes de H. heidelbergensis da Europa ocidental deveriam ser atribuídos aos neandertais. Quanto aos fósseis asiáticos que representam uma linhagem completamente diferente, Stringer disse que é “exatamente o que propusemos em nosso artigo sobre o crânio de Harbin, que infelizmente eles não citam”. O crânio de Harbin, também conhecido como Homem Dragão, foi descrito em uma pesquisa publicada no início deste ano.

Olhando para o futuro, Roksandic contou que sua equipe usará as espécies recém-definidas para construir novas hipóteses sobre sua distribuição e determinar quais fósseis existentes podem caber no táxon, além de “escavar e procurar humanos fósseis nas áreas menos pesquisadas do mundo.”

 

 

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Quanto à comunidade científica em geral se agarrando a essa ideia, ela pode ou não acontecer. Mas, como os comentários de Stringer deixam bastante claro, ainda há divergências consideráveis ​​sobre essas questões. A confusão no meio permanece… confusa.

 

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