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Quais números mudam após a legalização do aborto?

Para entender o que muda com a legalização do aborto, o Gizmodo Brasil analisou os dados de diferentes países e conversou com especialistas.

Mapa da legalização do aborto. Em vermelho escuro, onde é sempre proibido; em vermelho, apenas onde é para preservar a vida da mulher; em amarelo, onde pode preservar a saúde da mulher; em azul claro, quando leva em conta o contexto socioeconômico da mulher; e em azul onde é legalizado. Crédito: Reprodcutive Rights

No final do ano passado, as argentinas foram às ruas celebrar a legalização do aborto no país. Com a nova legislação, a prática deixou de ser crime e a Argentina se tornou a 67ª nação do mundo a permitir a interrupção da gravidez a pedido da mulher. A mudança foi aprovada no Senado argentino após 38 votos a favor e 29 contra, o que indica que, apesar do resultado favorável, o tema ainda enfrenta forte resistência. Grande parte dessa oposição é motivada por questões religiosas, e o debate certamente não é de agora e muito menos limitado à região.

Sendo a favor ou contra, o fato é que a criminalização do aborto é responsável pela morte de milhares de mulheres ao redor do mundo anualmente. Ao mesmo tempo, países que descriminalizaram a prática observaram mudanças nos mais diversos números relacionados direta e indiretamente ao tema. Para entender o que muda na prática com a legalização, o Gizmodo Brasil analisou os dados de diferentes países e conversou com três especialistas para discutir o cenário em nosso país.

Cenário global

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), um total de 73,3 milhões de abortos seguros e inseguros ocorreram no mundo anualmente entre 2015 e 2019. Na África e na América Latina, três em cada quatro abortos são feitos de forma insegura, revelando que o problema é ainda mais grave no Sul Global (países em desenvolvimento e subdesenvolvidos).

Ainda de acordo com a OMS, a criminalização do aborto custa caro, tanto em termos financeiros como em relação à vida das mulheres. Anualmente, cerca de 7 milhões de mulheres são recebidas em hospitais devido a complicações causadas pelo aborto inseguro nos países em desenvolvimento. O custo desses tratamentos aos sistemas de saúde é de cerca de US$ 553 milhões por ano, sendo que entre 4,7% e 13,2% das mortes maternas são atribuídas aos procedimentos inseguros de interrupção da gravidez.

Diante desses números alarmantes, a questão é: existe uma saída? A OMS afirma que “quase todas as mortes e incapacidades por aborto poderiam ser evitadas por meio de educação sexual, uso de anticoncepcionais eficazes, fornecimento de aborto induzido seguro e legal e atendimento oportuno a complicações”.

Felizmente, o cenário vem mudando nos últimos anos, com cada vez mais países flexibilizando suas leis ou legalizando totalmente o aborto. A organização Center for Reproductive Rights acompanha desde 1998 as legislações em diferentes países relacionadas ao tema. O vídeo abaixo, por exemplo, mostra a evolução dos últimos 25 anos em 50 países:

Mas o que acontece depois que o aborto é legalizado? Tudo vai depender das particularidades de cada país e da forma que o processo de legalização ocorreu. No geral, os números mostram que a tendência é que as taxas de aborto caiam com o tempo, graças a políticas públicas e outros investimentos em planejamento familiar e saúde reprodutiva que são implementados como parte do processo de legalização. Para entender o que pode impactar os números, selecionamos abaixo alguns países em que a prática já é permitida há algum tempo.

Estados Unidos

O aborto nos EUA foi legalizado em 1973 com o famoso caso “Roe v Wade”, quando a jovem Norma McCorvey, sob o pseudônimo “Jane Roe”, contestou a criminalização da prática, que, por sua vez, era defendida pelo procurador-geral do Texas Henry Wade. McCorvey saiu vitoriosa após a Suprema Corte decidir, com sete votos a favor e dois contra, que a justiça não teria mais poder para proibir a interrupção da gravidez.

Dados do Guttmacher Institute mostram que nos primeiros anos após a legalização, o número de abortos realizados por jovens entre 15 e 17 anos aumentou, mas foi seguido de estabilidade. A partir do final da década de 1980, observou-se um declínio constante e acentuado. Segundo o levantamento do instituto, a taxa de aborto nessa faixa etária era de 17,1 a cada 1.000 mulheres em 1973. Em 2016, essa mesma taxa caiu para 4.0.

Gráfico: Guttmacher Institute

Paralelamente, a taxa de gestação entre jovens com menos de 20 anos apresentou uma queda constante desde o fim da década de 1980, enquanto que houve um aumento entre os grupos etários acima de 30 anos. Ou seja, a gravidez na adolescência foi reduzida e as mulheres passaram a engravidar mais tardiamente. Os números mostram uma tendência observada em quase todos os países que legalizam o aborto e revelam que as medidas direcionadas ao planejamento familiar e saúde reprodutiva são essenciais para os resultados positivos observados a longo prazo.

A nível global, por exemplo, um estudo de 2020 do Guttmacher Institute revela que investir US$ 10,60 per capita anualmente em países de renda média e baixa pode resultar na redução de 76 milhões de gestações indesejadas, 26 milhões de abortos inseguros evitados, além de prevenir a morte de 186 mil mulheres e de 1,7 milhão de recém-nascidos.

França

Na França, a Lei Veil foi aprovada em 17 de janeiro de 1975, autorizando o aborto a pedido da mulher até a 12ª semana de gestação. Dados do Instituto Francês de Estudos Demográficos (INED) mostram que também houve uma queda na taxa de abortos realizados a cada 1.000 mulheres entre 15 e 49 anos. Em 1976, o índice era de 19,6, atingindo 15,7 em 2019.

O uso de métodos contraceptivos também apresenta grande disparidade em relação ao período pré-legalização do aborto e os dados mais recentes. Segundo o INED, cerca de 20,1% das francesas entre 18 e 44 anos não utilizavam nenhum tipo de contraceptivo em 1973. Já em 1978, três anos após a nova lei, essa taxa já caiu para 7,1%, chegando a 2,3% em 2013.

Tânia Lago, médica sanitarista e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, afirma que a queda nas taxas de aborto podem ser explicadas principalmente por medidas que visam oferecer método contraceptivos.

As recomendações europeias são para que quando você atende alguém que faz a interrupção da gestação, que essa mulher já saia daquela consulta em que se iniciou o procedimento, ou na última consulta em que será feita a revisão do procedimento, com um método contraceptivo. Ela pode sair com um DIU colocado, com uma cartela de pílula na mão, ter tomado uma injeção ou colocado um implante se ela preferir. Ela recebe um atendimento e pode conversar com um profissional sobre as dificuldades da prática contraceptiva que a levaram a ter uma gravidez indesejada, e receber sugestões de como lidar com essas dificuldades.

Uruguai

A legalização do aborto no Uruguai é relativamente recente e, portanto, os dados ainda refletem um período de transição. A lei uruguaia permite interromper a gravidez até a 12ª semana de gestação ou até a 14ª em caso de estupro. Desde 2013, o país vem apresentando um aumento no número de abortos, mas com sinais de estabilidade nos últimos anos. Em 2014, por exemplo, houve um aumento de 20% nos procedimentos realizados, enquanto que em 2017, a taxa foi de 1,1%.

Já em relação à mortalidade materna, um estudo mostra que cerca de 40% das mortes estavam relacionadas a abortos inseguros no início dos anos 2000. Na última década, a taxa caiu para 8%. Além disso, também houve um declínio de 11% no número de gestações não planejadas entre mulheres de 20 a 34 anos de idade.

‘Lago ressalta que a questão dos números é interpretativa. Afinal, “quando se legaliza o aborto, o país sai de uma situação em que há apenas estimativas de ocorrência do evento, já que não é legal, portanto não há um registro dos procedimentos. Quando vem a legalização e você começa a registrar, os números legais podem representar uma elevação”. Ela cita o caso da Inglaterra, que legalizou o aborto antes da França, em 1967.

Se a gente olhar pra história, a gente verá que a Inglaterra, por exemplo, apresentou uma elevação significativa dos abortos legais na metade da primeira década, e logo se identificou que um dos fatores que contribuíram para isso foi que as francesas estavam viajando até lá para fazer o aborto. Assim que a França legaliza aborto, esses números caem na Inglaterra e permanecem mais os menos estáveis dali pra frente.

Portugal

Em Portugal, o aborto é permitido até a décima semana de gravidez desde 2007. Seguindo a tendência observada nos EUA e em outros países europeus, houve um aumento nos números após a legalização, seguido de estabilidade e um declínio gradual. Em 2008, o total de abortos realizados por opção da mulher era de 18.014, enquanto que em 2017 essa taxa passou para 14.899.

Já em relação à mortalidade materna, o país havia registrado 14 mortes relacionadas a complicações decorrentes de aborto entre 2001 e 2007. Após a legalização, foram registradas duas mortes maternas no país, sendo que uma delas ocorreu devido a um procedimento realizado de forma ilegal em 2008.

Em 2018, uma estatística que chamou a atenção é que, apesar do total de abortos no país cair 3,8%, houve um aumento de 27,7% no número de brasileiras que realizaram o procedimento em Portugal. Nesse período, foram registradas 571 interrupções da gravidez por esse grupo de mulheres, tornando as brasileiras a nacionalidade estrangeira que mais aborta no país europeu.

Crédito: Direção-Geral da Saúde (Portugal)

Essa taxa é apenas um dos indicativos que representam as dificuldades enfrentadas pelas mulheres aqui no Brasil, em que a prática ainda é criminalizada, resultando em uma série de violações de direitos humanos.

E como está o Brasil?

No Brasil, os dados ainda assustam. Segundo relatório da Anis – Instituto de Bioética, a Pesquisa Nacional de Aborto, que cobre o período entre 2010 e 2016, estima que são realizados cerca de 500 mil abortos por ano. Considerando que a prática ainda é criminalizada no país, o Ministério da Saúde contabiliza apenas cerca de mil procedimentos feitos de forma legal. Ou seja, quase todas as interrupções ocorrem na ilegalidade e, na maioria das vezes, de forma insegura. O custo disso é extremamente elevado: cerca de 250 mil mulheres ocupam leitos do SUS anualmente devido a complicações relacionadas ao aborto inseguro. Entre 2008 e 2017, foram gastos R$ 486 milhões com as internações.

Para piorar, as perdas não são apenas financeiras. Embora seja difícil contabilizar o número exato de mortes e sequelas deixadas pelos abortos inseguros devido à subnotificação, o SUS registrou pelo menos 203 mortes por aborto apenas em 2016. “Quando a gente fala que a criminalização do aborto mata não é porque o aborto é uma prática insegura, é porque o clandestino é uma prática insegura”, afirma Luciana Brito, psicóloga e codiretora do Instituto Anis. “A OMS considera que até determinado período gestacional o aborto é mais seguro do que um parto. Não é por acaso que até a 10ª semana as mulheres podem fazer na sua residência; elas levam o medicamento e fazem o aborto autogerido. O problema é que quando você torna o procedimento que deveria ser simples e seguro um crime, ele vai pra ilegalidade.”

Para tentar mudar esses números, o PSOL e o Instituto Anis apresentaram um pedido em 2017 para descriminalizar a interrupção voluntária da gestação até a 12ª semana, mas o caso ainda está parado no Supremo Tribunal Federal (STF). Enquanto não recebem um apoio do Estado, as mulheres recorrem aos mais diversos recursos para interromper a gravidez, colocando, inclusive, a sua própria vida em risco.

A médica sanitarista Tânia Lago afirma que “limitar as alternativas de interrupção da gestação é uma tragédia solitária para as mulheres, com custos financeiros, psíquicos” e que causa mortes.

Mesmo aquelas mulheres que conseguem fazer um aborto inseguro e sobreviver passam por um enorme sofrimento. Por ser ilegal, é muito difícil falar com alguém sobre isso; elas têm medo de serem julgadas como criminosas. É uma solidão imensa e na ausência de oferta legal, elas ficam sujeitas a encontrar na internet alguém que venda comprimidos para interromper a gestação. […] Elas pagam o dinheiro para alguém que não entrega nunca nada, desaparece, e as que recebem um pacotinho de comprimidos, nem se sabe o que elas estão tomando. Elas supõem que estão tomando o misoprostol, mas ninguém sabe se de fato é. Muitas vezes, o que ela ingeriu nem interrompe a gravidez e a mulher segue com a gestação. E aí a gente não sabe a que tipo de substância o feto foi submetido.

Além de medicamentos, o uso de instrumentos para forçar o aborto causam uma série de complicações de saúde graves, como infecção generalizada, perfuração do útero, hemorragia, entre outros. Uma alternativa mais segura é buscar apoio na legislação de outros países em que o aborto é legalizado. Obviamente, essa não é uma opção viável, principalmente em termos financeiros, para uma grande parcela da população. Pensando nisso, a diretora e roteirista Juliana Reis criou o Milhas pela Vida das Mulheres como uma rede para ajudar mulheres a viajarem a outros países para realizarem um aborto seguro.

Segundo Reis, no dia 5 de janeiro de 2021, ela já havia recebido mais de 50 pedidos. Como a iniciativa sobrevive exclusivamente de doações, a quantidade de mulheres que conseguem viajar com os recursos oferecidos pelo Milhas é extremamente limitada. Ainda assim, Reis ressalta que as mulheres sempre recebem algum tipo de apoio, seja com ajudas financeiras para complementar o valor que elas já dispõem necessário para a viagem ou com informações que possam ajudá-la a realizar o procedimento em território estrangeiro.

Uma das clínicas parceiras do Milhas fica na Colômbia, e Reis explica por que as mulheres conseguem realizar um aborto no país vizinho mesmo a prática não sendo totalmente legalizada:

No caso da Colômbia, o aborto é criminalizado. Só que, como no Brasil, existem os excludentes de ilicitude que [no caso da Colômbia] levam em consideração o risco à saúde e ao bem-estar físico e psíquico da mulher. Então, ele continua sendo um crime, mas toda mulher pode acessar esse direito e fora de uma perseguição criminal. Isso aconteceu na Colômbia há muitos anos. […] No Brasil, se fala em risco de morte; na Colômbia, essa mesma categoria de excludente de ilicitude vai falar do risco para a saúde e bem-estar físico e psíquico da mulher. No caso da Colômbia cabem todas as mulheres porque ninguém vai abortar porque aquela gravidez não perturba o bem estar físico e psíquico dela, seja por questões financeiras, familiares, de fé, de trabalho, seja qual for a causa, existe a perturbação do bem-estar.

Reis conta que a ideia para criar o Milhas surgiu em 2017, quando ela fez um post nas redes sociais perguntando quem estaria disposto a doar milhas para ajuda mulheres que não pudessem pagar a viagem para realizarem um aborto seguro e legal na Colômbia. Ela lembra que na época a sua publicação teve apenas cinco curtidas. Em junho de 2019, ela decidiu refazer exatamente a mesma pergunta, com o mesmo post, mas dessa vez recebeu um total de 5 mil comentários, curtidas e compartilhamentos. “Foi uma coisa impressionante, em algumas horas isso virou um grande debate, e nesse momento eu soube que estava na hora.”

Ela acredita que essa diferença de engajamento entre 2017 e 2019 está relacionada à situação atual do Brasil. “Eu acho que é o acirramento do retrocesso, essa moralização artificial descabida que aconteceu no Brasil, que ninguém viu chegar. Ela se manifestou, surpreendeu a sociedade brasileira de várias maneiras. […] Fomos sacudidos por essa realidade.”

A médica sanitarista Tânia Lago concorda. “Eu acho que nos anos 80, 90, parecia que teríamos mais chance de aprovar a legalização do aborto do que países vizinhos, como a Argentina, que tem um peso enorme da igreja católica, maior do que aqui. E nós estamos vendo o contrário.” Segundo ela, para conquistarmos os mesmos direitos que as argentinas, a sociedade precisa de mobilizar e “as associações médicas, os conselhos de medicina precisam refletir sobre o seu papel nessa luta, assim como aconteceu no Uruguai na Argentina, e se tornarem parceiros das mulheres na luta pela legalização do aborto”.

Lago ainda afirma que caso ocorra uma legalização sem o apoio da área médica, as mulheres continuarão a enfrentar desafios. “Vamos ter um trabalho bastante grande com a categoria médica, porque é bem possível que mesmo que o aborto fosse legalizado hoje no Brasil, que uma boa parte dos obstetras reagissem com objeção de consciência. Então nós teríamos dificuldades em encontrar médicos que atendessem e fizessem o procedimento de interrupção da gestação.” De fato, cerca de 70% dos casos de mulheres indiciadas entre 2003 e 2016 no Estado de São Paulo foram denunciadas por um profissional de saúde, segundo relatório da Anis. Uma prática comum, inclusive, é algemar a paciente ao leito ou solicitar a escolta de um policial para que ela não fuja do hospital.

Luciana Brito, do Instituto Anis, diz que prefere se manter otimista. “Eu acho que a gente precisa ter esperança, a gente precisa acreditar que a população brasileira está começando a entender que o aborto é um tema de saúde pública. […] Eu acredito que alguns acontecimentos recentes fizeram com que essa pauta viesse à tona, como a DPF 442 e o caso da menininha de 10 anos que foi vítima de violência sexual. Então, eu diria que a gente precisa ter esperança pra acreditar que esse é um tema que precisa ser discutido, mas discutido com dados baseados em evidências; precisamos ouvir a ciência e entender que quando a gente trata um tema de saúde pública com a seriedade que ele merece, a gente inclusive reduz o aborto. Você descriminaliza para as mulheres não morrerem, mas também para reduzir as taxas de aborto.”

Mesmo com os excludentes de ilicitude, que permitem o aborto em casos de estupro, quando a vida da mulher está em risco e em casos de anencefalia, essa lei restrita no Brasil não é capaz de proteger as mulheres. Juliana Reis, fundadora do Milhas, pede uma reflexão. “Em 2019, 21 mil meninas entre 10 e 14 anos levaram a termo uma gestação fruto de estupro de vulnerável, o que acontece na maioria das vezes dentro da propria família. Então, o Brasil, que quer ser um país cosmopolita, emancipado, moderno, tecnológico, pode conviver com essa realidade? Podemos nos considerar uma nação moderna com essa realidade batendo na nossa cara?”

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