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Qual tecnologia matou acidentalmente mais pessoas?

Vários historiadores opinaram sobre qual inovação tecnológica acidentalmente matou acidentalmente mais pessoas.

Ilustração com sinais de trânsito e símbolos de caveira. Crédito: Angelica Alzona/Gizmodo

Crédito: Angelica Alzona/Gizmodo

Mostre-me um museu de importantes inventores históricos e eu mostrarei uma galeria de assassinos em massa. Não estou falando de fabricantes de metralhadoras ou cientistas nucleares – essas pessoas, pelo menos, têm uma noção do que estão fazendo.

Estou falando das pessoas por trás da imprensa, do automóvel, de vários tipos de tecnologia de barcos. Essas pessoas tentaram melhorar o mundo e conseguiram, mas também mataram indiretamente milhões de pessoas. Essa é, pelo menos, a lição do Giz Pergunta desta semana, na qual vários historiadores abordam a questão de qual inovação tecnológica acidentalmente matou acidentalmente mais pessoas.

Peter Norton

Professor Associado de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade da Virgínia

Em 1963, Tiny Helwig, da Winchester Repeating Arms Company, disse: “As armas não matam pessoas. Pessoas matam pessoas”. Mas com a ajuda de armas e outras tecnologias, as pessoas matam em números muito maiores do que poderiam.

Se medirmos a letalidade pela fração da população mundial morta, a tecnologia mais mortal foi a embarcação oceânica, possibilitada por inovações no design de navios e por instrumentos de navegação, como a bússola e o astrolábio. Como as armas, os navios não mataram sozinhos; foram necessárias ambições irracionais, como acúmulo extravagante de riqueza, para lhes dar um efeito mortal. No século após 1492, a população indígena da América diminuiu em cerca de 50 milhões, quando os europeus trouxeram doenças como varíola e sarampo para as Américas.

Mas, para o número total de mortos, o motor de combustão – qualquer tecnologia que transforma fogo em trabalho – supera até esse terrível recorde da embarcação oceânica. Brinquedos que transformavam o calor em ação datam dos tempos antigos, mas o momento transformador ocorreu em 1712, quando Thomas Newcomen, da Inglaterra, projetou um motor que usava fogo para criar um vácuo, que por sua vez movia um pistão em um cilindro grande o suficiente para uma pessoa adulta subir em cima. A máquina inteira ocupava uma construção própria e queimava enormes quantidades de carvão em troca de um pouco de trabalho. Mas, estando em cima de uma mina de carvão, o combustível era barato e, ao drenar a água que inundava a mina de carvão, pagava suas contas.

Como o aprendiz de feiticeiro, Newcomen liberou poderes maiores do que ele poderia imaginar. O descendente dificilmente reconhecível de sua máquina é o motor a gasolina de um carro. O primeiro é um motor a vapor de combustão externa que queima carvão; o outro é um motor de combustão interna que queima gasolina. Mas essencialmente elas são a mesma tecnologia: ambas aplicam a combustão para acionar um pistão e, assim, convertem a energia química armazenada em um combustível fóssil em trabalho útil.

Até o século 18, todo o trabalho vinha de músculos (de humanos ou de outros animais), vento ou água em queda. Desde a invenção de Newcomen, em 1712, do primeiro motor prático de queima de combustível, uma parcela crescente vem da combustão de combustíveis fósseis. Essa máquina aliviou os humanos de trabalho físico e salvou inúmeras vidas, por exemplo, através de uma melhor distribuição de alimentos e água, melhor sistema de esgoto e melhor acesso a assistência médica – todos prodigiosos salva-vidas. Mas em combinação com a ganância humana, o motor de combustão também causou morte em massa. Aplicado às fábricas têxteis inglesas, gerou demandas insaciáveis ​​por fibras, colônias para fornecer fibras sob a forma de algodão e mão de obra escrava para produzir o algodão. O comércio de escravos no Atlântico precedeu o motor de combustão, mas o motor tornou a escravidão muito mais lucrativa.

O mecanismo também enriqueceu uma nova aristocracia industrial. Sem títulos hereditários, eles provaram seu status através de demonstrações de riqueza. Uma maneira era servir chá adoçado com açúcar – vindo do trabalho escravo. O tráfico de escravos matou muitos milhões e o trabalho escravo matou muitos milhões mais. As plantações de açúcar eram os campos de trabalho forçado mais mortais das Américas. Em combinação com a ganância, o racismo e a indiferença, uma máquina criada para poupar trabalho levou milhões de pessoas à morte.

As pandemias precedem o motor de combustão, mas os navios a vapor ajudaram a propagar a primeira pandemia global. A cólera, antes confinada ao sul da Ásia, se espalhou pelo mundo nas décadas de 1820 e 1830. Os navios a vapor aceleraram a propagação da doença e estenderam seu alcance. Muitas das cidades que a cólera alcançou eram muito mais densas do que poderiam ter sido sem os motores de combustão. Os motores concentravam o trabalho, alimentando grandes fábricas; com as locomotivas os motores estendiam as cadeias de alimentos o bastante para suportar cidades de milhões. Motores de combustão deixavam as cidades lotadas; nas cidades lotadas, a doença se espalhou rapidamente. Acima de tudo, doenças transmitidas pela água, especialmente cólera e febre tifóide, devastaram cidades densas porque o esgoto contaminou o suprimento de água potável. Os motores de combustão eram responsáveis ​​pela cura e também pela doença: seu poder tornava possível o esgoto e a distribuição de água.

Os acidentes de veículos a motor mataram cerca de 70 a 90 milhões de pessoas no último século; a cada ano, mais 1,3 milhões de pessoas morrem desta maneira. As pessoas que moram perto de vias movimentadas do trânsito são expostas a emissões suficientes de veículos para diminuir sua vida. Em áreas dependentes de carro, principalmente nos EUA, a vida sedentária entre pessoas que não têm boas alternativas de transporte contribui substancialmente para doenças cardíacas (a principal causa de morte nos EUA), e também para a obesidade e a diabetes tipo 2 que encurtam a expectativa de vida.

Os piores estragos do motor de combustão ainda estão por vir. Inventado para fazer a água subir, o motor agora está realizando essa tarefa em escala global. Como o aprendiz de feiticeiro, não sabemos como detê-lo. Através de suas emissões de CO2, os motores de combustão estão aumentando o nível do mar. Eles estão mudando o clima de maneiras que ameaçam os meios de subsistência, o suprimento de comida e água e a habitabilidade de áreas agora lotadas de milhões de pessoas. Nós nos encontramos dependentes de uma máquina que ameaça nos matar.

Para gerenciar essa ameaça, será necessária toda a criatividade que aplicamos para desenvolvê-la.

“Em combinação com a ganância humana, o motor de combustão também causou morte em massa. Aplicado às fábricas têxteis inglesas, gerou demandas insaciáveis ​​por fibras, colônias para fornecer fibras sob a forma de algodão e mão-de-obra escrava para produzir o algodão. O comércio de escravos no Atlântico precedeu o motor de combustão, mas o motor tornou a escravidão muito mais lucrativa”.

Jenny Leigh Smith

Professora Associada de História da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong, cuja pesquisa se concentra na história da alimentação e da tecnologia de alimentos, entre outras coisas.

Os três principais assassinos mundiais nos últimos 40 anos foram doenças cardíacas, câncer e doenças respiratórias. Algumas invenções tecnológicas aumentaram involuntariamente esses tipos de mortes? Dois culpados vêm à minha mente.

A grande variedade de máquinas e produtos químicos que transformam alimentos básicos em produtos processados ​​mais deliciosos, mas significativamente menos nutritivos, contribuíram para o aumento de doenças mortais, incluindo câncer, diabetes, hipertensão e doenças cardíacas.

Identificar uma causa de morte em pessoas com doenças crônicas não é tão clara quanto em um acidente de carro fatal, mas médicos e epidemiologistas são cada vez mais capazes de identificar as escolhas alimentares modernas como as principais contribuintes para problemas de saúde e aumento da mortandade.

O aumento da cintura e as prescrições de insulina são os efeitos colaterais visíveis de uma dieta rica em alimentos processados, mas, na verdade, o que as tecnologias de processamento de alimentos removem – fibras, micronutrientes, bactérias “saudáveis” – é igualmente prejudicial. O polimento, a fritura rápida e a exclusão das coisas boas dos alimentos aumentaram as taxas de câncer, aumentaram as respostas imunes e agravaram as doenças crônicas de uma maneira que agora estamos começando a entender.

Meu voto por uma segunda tecnologia acidentalmente letal é o ar condicionado. O controle climático torna possível nosso modo de vida moderno, mas quem está sendo controlado por quem? Sem o ar condicionado,  grandes partes dos EUA e do mundo não seriam habitadas, para não falar de centros financeiros globais como Hong Kong, Cingapura e Dubai. Os escritórios modernos são projetados em torno de um clima interno de temperatura constante controlada, assim como os shopping centers. E aqui é onde estar confortável parece que também pode ser um pouco fatal. Da mesma forma que o processamento de alimentos remove vitaminas, texturas e amargos, deixando apenas aproximações pouco nutritivas dos alimentos, o ar-condicionado elimina a necessidade e o desejo de estar do lado de fora, de mudar de local, de descansar à sombra ou de se exercitar ao ar livre. Os cientistas descobriram muito recentemente que sentar está nos matando. Vale a pena interrogar as tecnologias que nos mantêm amarrados às nossas mesas. O ar condicionado é um concorrente justo para o principal culpado. Ao incentivar certos estilos de vida – trabalho em ambientes fechados, economia da informação, compras como uma forma de lazer e uma dependência de dispositivos em rede que funcionam melhor em ambientes frescos e secos – nós, humanos, ficamos condicionados a trabalhar o ano todo e a qualquer hora.

Sentamos, olhamos para as telas, produzimos conhecimento e agregamos valor, parando apenas momentaneamente para vestir uma blusa para nos proteger do eterno frio do termostato do escritório.

“Os três principais assassinos globais nos últimos 40 anos foram doenças cardíacas, câncer e doenças respiratórias … A grande variedade de máquinas e produtos químicos que transformam alimentos básicos em produtos processados ​​mais deliciosos, mas significativamente menos nutritivos, contribuíram para o aumento de doenças mortais da riqueza, incluindo câncer, diabetes, hipertensão e doenças cardíacas”.

Blair Stein

Professora Assistente de História, Clarkson University

Embora exista a tentação de dizer algo como “a roda” ou “ferro”, muito de como eu responderia a essa pergunta depende do que você quer dizer com “tecnologia” e o que você quer dizer com “acidente”.

Aqui está um experimento mental: se um pedestre “acidentalmente” é atropelado por um ônibus, qual foi a “tecnologia” que o matou? O pára-brisa de vidro que causou o golpe fatal? Os freios que não foram ativados com rapidez suficiente? Os fones de ouvido que impediam o pedestre de ouvir o ônibus? Ou adotamos uma abordagem de “armas não matam pessoas, pessoas com armas matam pessoas”, que pressupõe que as tecnologias não são capazes de matar ninguém sem a intervenção humana? Ou seja, foi o motorista, não o ônibus, que matou o pedestre? Existem historiadores que ganham a vida estudando essas questões sobre risco, culpabilidade e as consequências de acidentes tecnológicos.

E assim que começamos a abordar as tecnologias históricas, enfrentamos a questão espinhosa do que entendemos por “acidente”. O que é e o que não é um acidente pode depender de onde, quando e quem você é. Veja as ferrovias, por exemplo. Deixando de lado as pessoas realmente mortas em acidentes ferroviários e durante a construção das ferrovias, as mudanças de infraestrutura causadas pela intrusão de ferrovias em contextos coloniais causaram a morte de milhões de pessoas. Durante as fomes indianas nas últimas décadas do século 19, as ferrovias coloniais britânicas afastaram os grãos das áreas atingidas pela seca e os transformaram em grandes estoques, e o sistema global de ferrovias e telégrafos permitiu que os grãos indianos entrassem em mercados maiores em vez de suprir as necessidades locais.

No Canadá, o sistema de “tratados numerados” da década de 1870 extinguiu as reivindicações indígenas da terra para que o estado pudesse construir a Canadian Pacific Railway, preparando as bases para 150 anos de fatais desigualdades estruturais.

Para alguns atores históricos da época, essas mortes podem ter sido “acidentes”, vítimas inadvertidas em nome do progresso tecnológico e da construção da nação. Eles também podem não ter sido vistos como causados ​​diretamente pelos trilhos do trem, mas por uma consequência oblíqua deles. Mas as ferrovias faziam parte da máquina do império em ambos os casos, uma manifestação tecnológica do impulso de remover pessoas e modos de vida que não se encaixavam no sonho imperial e colonial dos colonos.

Não estou necessariamente dizendo que as ferrovias mataram mais pessoas do que qualquer outra tecnologia por acidente. Estou dizendo que a história das ferrovias nos mostra que quanto mais pensamos em culpa, risco e causalidade, mais difícil é responder a essa pergunta.

“O que é e o que não é um acidente pode depender de onde, quando e quem você é. Veja as ferrovias, por exemplo. Deixando de lado as pessoas realmente mortas em acidentes ferroviários e durante a construção das ferrovias, as mudanças de infra-estrutura causadas pela intrusão de ferrovias em contextos coloniais causaram a morte de milhões de pessoas”.

Jonathan Coopersmith

Professor de História na Texas A&M University, cuja pesquisa se concentra na história da tecnologia

O automóvel tem sido um grande assassino há mais de um século. Todos os dias, na América, acidentes de carro matam 100 pessoas e ferem milhares mais. Se acidentes de avião ou terroristas matassem 100 pessoas por dia, você veria um barulho muito maior. Em vez disso, tomamos a morte de automóvel como normal. O que vimos em todo o mundo é que, à medida que os automóveis são introduzidos em uma escala maior, as mortes aumentam significativamente.

Havia tensão no início do século 20 sobre quem é o dono das ruas. Para que servem as ruas? Quem deve ser permitido nelas? Na década de 1930, os pedestres foram retirados das ruas – e quando os carros ficaram mais rápidos, as estradas foram construídas para serem menos acessíveis aos pedestres. Um dos poucos aspectos positivos desse coronavírus foi a falta de tráfego de automóveis nas cidades, muitas das quais restringiram as ruas ao tráfego somente de bicicleta e pedestres.

Dito isto, se as pessoas estivessem morrendo por quilômetro rodado na mesma proporção que em 1970, dado o quanto mais carros temos agora, teríamos cerca de 150.000 mortes por ano em vez de “apenas” cerca de 35.000. Portanto, a tecnologia certamente está ficando mais segura. E é impressionante como os Estados Unidos e, especialmente, a Europa, são mais seguros do que outras partes do mundo.

“O automóvel é um grande assassino há mais de um século. Todos os dias nos EUA, acidentes de carro matam 100 pessoas e ferem milhares mais”.

Raja Adal

Professor Assistente de História da Universidade de Pittsburgh, cuja pesquisa se concentra na história da tecnologia, entre outras coisas.

Que tal a prensa móvel? Este é o raciocínio. Observou-se frequentemente que o nacionalismo é responsável pela maioria das guerras modernas. Pense na primeira e na segunda guerra mundial, no Vietnã, etc. O nacionalismo também está muito ligado aos genocídios do Holocausto ao genocídio de Ruanda à recente expulsão do povo rohingya do Butão.

Em todos esses casos, um grupo de pessoas que se consideram vinculadas por algum elo imaginário – como idioma, raça, religião ou história – matou um grande número de pessoas que, em suas mentes, pertenciam a outro grupo.

No mundo moderno, esse tipo de identidade de grupo costuma ser nacionalismo. E… de acordo com Benedict Anderson e outros, a prensa móvel foi fundamental para a disseminação do nacionalismo no mundo moderno. Isso possibilitou a impressão de jornais, romances e outras formas de literatura que faziam as pessoas que não se conheciam e viviam distantes imaginarem que todas pertenciam à mesma comunidade. Portanto, pode-se argumentar que a prensa móvel, que por si só é uma máquina completamente inócua, pode ser pensada como ligada ao genocídio, acidentalmente, é claro. Essa é a parte crítica. A tecnologia não tem agência.

“A tecnologia não tem agência”.

Peter Shulman

Professor Associado de História da Case Western Reserve University

Se estivermos analisando apenas números e não porcentagens populacionais, o crescimento exponencial da população mundial desde o século 18 significará que o número de mortes recentes excederá em muito as anteriores. A população global hoje é de quase 8 bilhões; em 1900, era pouco mais de 1,5 bilhão. Um século antes disso, nem um bilhão. Então, de certa forma, isso se torna uma questão sobre mortes acidentais na era da industrialização. (Se analisarmos as porcentagens do total de mortes, na medida em que possamos estimar essas coisas ao longo da história, poderemos chegar a respostas um pouco diferentes).

Com essa ressalva, quero propor que a tecnologia que levou ao maior número de mortes acidentais foi a invenção de James Bonsack em 1881: o enrolador mecânico de cigarros.

A máquina de Bonsack pesava uma tonelada, mas produzia tantos cigarros em um minuto quanto um enrolador manual experiente em uma hora; em cinco anos, o aspirante a industrial de tabaco James Buchanan Duke tinha dez máquinas em operação.

Como Duke garantiu secretamente o uso preferencial dos rolos Bonsack em termos muito melhores do que qualquer outro concorrente, ele iniciou a mecanização de uma indústria. Adicione ao rolo mecanizado a introdução da cura do fumo em meados do século 19, que produziu um tabaco mais suave e seco que encorajava a inalação profunda em vez de segurar a fumaça na boca, e a crescente indústria de cigarros tinha as ferramentas para produzir em massa um desastre de saúde global.

Obviamente, o tabaco era consumido nas Américas pré-colombianas e, no século 17, era uma grande cultura comercializada para exportação nas colônias inglesas.

Quando seu uso começou a se espalhar por toda a Europa, os críticos atacaram a sua segurança, no entanto sua popularidade cresceu. No final do século 19, a maior parte desse tabaco era fumada em cachimbos, charutos ou mastigados (este último um hábito particularmente americano). Mas o preço baixo, a facilidade de consumo, a publicidade agressiva, os novos mercados globais, a alegada limpeza e a simples onipresença do cigarro o colocaram em muito mais mãos do que nunca, assim como a população global disparou cada vez mais no século 20. Todas essas características dependiam da capacidade de produzir cigarros em massa, um feito duvidoso que podemos atribuir a James Bonsack e seu cliente mais importante, James Duke.

Ainda hoje, quando o consumo de tabaco nos Estados Unidos despencou mais de 40% dos adultos para menos de 15% nos último meio século, o país ainda registra quase meio milhão de mortes por ano atribuídas ao fumo, de doenças cardíacas a pulmonares e cânceres. Globalmente, mais de 7 milhões de pessoas por ano morrem devido a causas relacionadas ao tabaco; como estima a Organização Mundial da Saúde, é cerca de uma em cada dez mortes.

No entanto, depois de mais de meio século de avisos de saúde pública e as evidências incontestáveis ​​de que as empresas de tabaco sabiam privadamente dos riscos à saúde de seus produtos, enquanto insistiam publicamente em sua segurança – o tempo todo trabalhando para ofuscar a compreensão do público – essas mortes ainda deveriam ser consideradas “acidentais”?

“No entanto, depois de mais de meio século de avisos de saúde pública e a evidência incontestável de que as empresas de tabaco sabiam privadamente dos riscos à saúde de seus produtos, enquanto insistiam publicamente em sua segurança – o tempo todo trabalhando para ofuscar a compreensão do público – essas mortes ainda deveriam ser consideradas ‘acidentais’?”

Asif Siddiqi

Professor de História na Fordham University

O NAVIO NEGREIRO: Embora o comércio de escravos no Atlântico tenha começado bastante cedo, mais ou menos no início do século 16, o uso de navios projetados especificamente para o transporte de escravos atingiu o pico entre os séculos 17 e 19.

Como Markus Rideker descreveu em seu livro The Slave Ship, esses navios eram essencialmente prisões móveis. O navio negreiro também era uma espécie de fábrica, no sentido de ser um sistema mecanizado em que os capitalistas mercantes reuniam um grande número de trabalhadores que transformavam homens e mulheres livres da costa oeste da África em uma mercadoria, um “escravo”.

Finalmente e mais obviamente, o navio negreiro era um sistema tecnológico complexo, projetado para transportar seres humanos por longas distâncias, com o mínimo de cuidado com o bem-estar dessas pessoas.

Por não ter sido projetado especificamente para matar a ‘carga’ durante a Passagem do Meio (embora, sem dúvida, isso tenha sido visto por muitos como uma parte necessária do processo), incluo as fatalidades como mortes acidentais.

As estimativas variam de quantas pessoas morreram durante a Passagem do Meio, mas em um estudo recente, David Ellis e David Richardson sugerem que 15% dos 10 milhões que deixaram a costa africana morreram no caminho. Isso nos daria pelo menos 1,5 milhão de mortes. O número verdadeiro é provavelmente muito maior.

Barragens! Embora não sejam necessariamente conhecidas por grandes desastres e normalmente não envolvam um grande número de mortes, acidentes envolvendo barragens não são incomuns e, de fato, seus efeitos se tornam ainda mais evidentes quando se considera os frequentes efeitos prejudiciais a longo prazo ao ambiente próximo.

A outra razão pela qual eu as incluiria é que, como o uso de barragens remonta à antiguidade, é um exemplo de uma tecnologia que causou acidentalmente grandes fatalidades por vários milênios.

Na era moderna, as principais falhas de barragens incluem uma em Johnstown, Pensilvânia, em 1889, quando mais de 2.000 pessoas morreram, uma em Madhya Pradesh, na Índia Britânica, em 1917, que matou vários milhares, uma na Itália em 1963, que matou vários milhares, e uma em Gujarat, Índia, em 1979, que pode ter matado 5.000 pessoas. Mas o desastre mais horrível ocorreu em 1975 na China, quando quase 200.000 pessoas morreram depois que chuvas muito intensas levaram ao colapso de uma rede de barragens na província de Henan. Pelo que entendi, mais de 10 milhões de pessoas ficaram desabrigadas pelo desastre.

Meu palpite é que, com os contínuos efeitos adversos das mudanças climáticas, migrações humanas em larga escala e falta de manutenção de infraestrutura, poderemos ver mais falhas de barragens no futuro próximo e, portanto, mais fatalidades.

“O navio negreiro era um sistema tecnológico complexo, projetado para transportar seres humanos por longas distâncias, com um cuidado mínimo ao bem-estar dessas pessoas. Por não ter sido projetado especificamente para matar a ‘carga’ durante a Passagem do Meio (embora, sem dúvida, isso tenha sido visto por muitos como uma parte necessária do processo), incluo as fatalidades como mortes acidentais. As estimativas variam de quantas pessoas morreram durante a Passagem do Meio, mas em um estudo recente, David Ellis e David Richardson sugerem que 15% dos 10 milhões que deixaram a costa africana morreram no caminho. Isso nos daria pelo menos 1,5 milhão de mortes. O número verdadeiro é provavelmente muito maior”.

Alan Marcus

Professor e chefe de história da Universidade Estadual do Mississippi, cuja pesquisa se concentra na história da tecnologia, entre outras coisas.

Eu diria que a tecnologia da exploração – entrar em navios e ir até o novo mundo. Estimativas sugerem que 80-95% da população nativa americana pereceu. As doenças mais letais transmitidas foram sarampo e varíola, mas o tifo também foi um fator.

Pensamos no sarampo como uma doença realmente moderada, mas poderia devastar uma população sem as devidas proteções. Imagine o que está acontecendo agora com o Covid-19, mas sem hospitais, sem respiradores, sem remédios. Você esta por sua conta.

Ninguém no mundo antigo antecipou ou esperava essas consequências, e demorou muito tempo – cerca de 150 anos – para perceber alguma causa e efeito. Em grande parte, a doença era encarada como um fenômeno local: era algo do qual seu corpo havia se desequilibrado ou baseado na idéia do que chamavam de ar ruim. Ares ruins faziam você ficar doente.

Quando os europeus voltaram para a Europa, eles carregavam novas doenças mundiais. Quando foram à África e inauguraram o comércio de escravos, trouxeram doenças do mundo novo e do mundo antigo. A carnificina foi na casa das dezenas ou centenas de milhões. Portanto, não é apenas o mundo novo / mundo antigo – é triangular.

“Eu diria a tecnologia da exploração – entrar em navios e ir até o novo mundo”.

Erik Loomis

Professor Associado de História da Universidade de Rhode Island, cuja pesquisa se concentra na história do trabalho e do meio ambiente dos Estados Unidos, entre outras coisas

Não sei se os trens de fato mataram mais pessoas por acidente do que automóveis, mas vale a pena notar o chocante nível de mortes causadas por trens no século 19.

Em outras palavras, trabalhadores e passageiros colocaram suas vidas em risco ao interagir com os trens.

Por muitas décadas, os trens americanos eram muito mais perigosos que os da Europa. O historiador ferroviário Mark Aldrich escreveu sobre isso em grandes e terríveis detalhes. Os trabalhadores das ferrovias morriam a taxas terríveis, muitas vezes esmagados entre os carros. Os descarrilamentos mataram passageiros e trabalhadores. Uma total indiferença a acidentes por empresas ferroviárias, tribunais e políticos contrastava fortemente com a Grã-Bretanha, onde apenas uma fração das pessoas morreu em comparação com os EUA. Dado que as ferrovias também se tornaram a primeira rede de transporte coordenada do país, as pessoas também morreram com frequência depois de levá-los a andar nos trilhos de um lugar para outro e de emprego em emprego.

Além disso, os trens matam rotineiramente os transeuntes nas cidades. Os trilhos percorriam centros urbanos densamente povoados e as empresas faziam muito pouca manutenção para garantir que as pessoas pudessem atravessá-las com segurança.

Os sulcos entre os trilhos e as estradas significavam que as pessoas com carroças frequentemente ficavam presas e os trens as atropelavam, por exemplo. Além disso, os trens adicionaram enormes quantidades de fumaça e ruído às cidades, reduzindo seriamente a qualidade de vida dos moradores.

A ganância insaciável da indústria ferroviária também levou seus principais capitalistas, como Jay Cooke e Jay Gould, a afundar a economia devido a suas especulações irresponsáveis.

O pânico de 1873 e o pânico de 1893 foram as principais depressões econômicas que também causaram danos colaterais nas vidas devido às condições de pobreza e desesperança.

Vale ressaltar que as principais ações trabalhistas contra ferrovias no final do século 19, como a Grande Greve das Ferrovias de 1877 e a Greve Pullman em 1894, foram rebeliões comunitárias contra as ferrovias, tanto quanto as greves trabalhistas tradicionais, onde a maioria dos manifestantes não eram trabalhadores em greve.

As ferrovias se tornaram mais seguras no século 20, mas a indiferença corporativa à vida dos americanos sempre levou a mortes desnecessárias, inclusive nos frigoríficos durante a crise do covid-19.

“As ferrovias se tornaram mais seguras no século 20, mas a indiferença corporativa à vida dos americanos sempre levou a mortes desnecessárias, inclusive nos frigoríficos durante a crise do covid-19”.

Mar Hicks

Professora Associada de História no Instituto de Tecnologia de Illinois e autora de “Programmed Inequality: How Britain Discarded Women Technologists and Lost Its Edge in Computing” (Desigualdade Programada: Como a Grã-Bretanha descartou as tecnólogas mulheres e perdeu sua vantagem na computação)

Quando pensamos em tecnologias que mataram muitas pessoas por acidente, precisamos pensar em tecnologias que existem há muito tempo e cuja utilidade tem sido tão grande para a expansão industrial que seus pontos negativos foram negligenciados – ou, pior ainda, intencionalmente escondidos.

O descaroçador de algodão, patenteado por Eli Whitney em 1794 e amplamente utilizado nos EUA durante o século 19, é uma dessas tecnologias. O descaroçador de algodão era uma máquina que tornava a limpeza e a preparação do algodão cru muito mais rápida e eficiente – e, portanto, tornava o cultivo do algodão muito mais lucrativo.

O que o descaroçador de algodão também fez foi tornar a escravidão muito mais arraigada, tornando a colheita de algodão feita por escravizados nos Estados Unidos muito mais lucrativa.

A escravidão não estava se expandindo tão rapidamente até que a invenção da máquina encorajou cada vez mais os produtores de algodão branco a expandir sua produção. Os sulistas brancos “importaram” mais de 80 mil africanos como escravos entre 1790 e a proibição de “importar” africanos escravizados em 1808.

Entre os anos de 1790 e 1850, o número de escravizados nos EUA subiu de 700.000 para mais de 3 milhões através da escravidão geracional (escravidão de bens móveis). No início da guerra civil, um terço de todos os sulistas eram pessoas escravizadas.

Tudo isso estava a serviço da indústria de algodão em expansão que o descaroçador de algodão criou: os EUA forneceram a grande maioria de todo o algodão do mundo em meados do século 19, e a produção de algodão dobrou a cada década após 1800. Quando as pessoas dizem que a economia dos EUA foi construída nas costas dos negros escravizados, estão falando de indústrias como o algodão e de toda a riqueza pessoal e nacional criada às custas das vidas dos negros escravizados.

Se não fosse a invenção do descaroçador de algodão, é provável que a escravidão tivesse sido abolida mais rapidamente, em vez de se expandir maciçamente da mesma maneira que ocorreu, em um período relativamente curto de tempo.

O cálculo das mortes que incluem negros escravizados que morreram no caminho para os EUA e negros escravizados que morreram ou foram mortos nos Estados Unidos já mais do que qualifica essa tecnologia para um ponto alto nesta lista – para não falar do miséria e dor generalizadas causadas às pessoas escravizadas, e as gerações de seus descendentes que foram privados de seus plenos direitos civis como resultado.

No momento, estamos vendo com muita clareza como os negros que vivem hoje nos EUA perdem suas vidas como resultado dessa história econômica e tecnológica – como os empresários brancos do sul nos séculos 18 e 19 usaram a tecnologia para amplificar e estender o racismo, miséria e morte, da mesma maneira que vemos acontecendo hoje com certas tecnologias.

Então, acho que essa é uma história da tecnologia importante de ser lembrada. Porque mostra como as tecnologias são sempre construídas para e pelos contextos em que elas surgem. E se esse contexto é racista, é provável que eles defendam o racismo, se o que fazem é ajudar a tornar as estruturas econômicas e sociais existentes mais fortes e mais eficientes sem se preocupar com as desigualdades existentes. Quando os tecnólogos tentam “consertar” as coisas com soluções meramente técnicas, ignoram o contexto mais amplo e como essas tecnologias funcionam.

Essa é uma das razões pelas quais é tão importante para os profissionais de tecnologia aprenderem e conhecer a história, e por que os programas de aprendizado em tecnologia nas universidades fazem com que seus alunos e todos nós sejam um desserviço por não ter mais humanistas e historiadores. “Avanços” estreitamente técnicos que não entendem o contexto mais amplo podem levar a terríveis resultados não intencionais – mas não imprevistos. E isso não é um progresso real.

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