Biólogo vencedor do Nobel sabia sobre os bebês geneticamente modificados há meses, mas ficou quieto
A Associated Press informa que o ganhador do Prêmio Nobel e biólogo Craig Mello estava ciente de uma gravidez na China envolvendo bebês geneticamente modificados durante meses antes que a notícia se tornasse pública. O fato de que um cientista de renome conhecia esse trabalho altamente antiético e optou por permanecer em silêncio é um sério motivo de preocupação e um sinal de que a cultura em torno de pesquisas questionáveis precisa mudar.
Conforme noticiam Candice Choi e Marilynn Marchione na AP, Mello serviu no conselho consultivo científico da Direct Genomics, uma empresa de propriedade do geneticista He Jiankui, o pesquisador por trás do controverso e possivelmente criminoso trabalho de edição de genes. Ele, um cientista da Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul, de Shenzhen, enviou um e-mail para Mello em abril de 2018 lhe contando sobre a gravidez. Mello respondeu condenando o trabalho, mas permaneceu como conselheiro científico da empresa de He, que não esteve envolvida no experimento, durante os oito meses seguintes, renunciando apenas depois que a notícia de que os bebês modificados geneticamente se tornou pública, de acordo com a AP. Mello ainda não respondeu a um pedido de comentários do Gizmodo.
Durante uma conferência de edição do genoma humano em Hong Kong, em novembro de 2018, He admitiu ter modificado o DNA de embriões com a ferramenta de edição de genes CRISPR, em seguida os implantando no útero da mãe. As gêmeas nasceram no início de novembro com uma aparente imunidade ao HIV/AIDS, uma consequência da remoção do gene CCR5.
Uma segunda gravidez também foi revelada por He na conferência. A pesquisa, embora ainda não confirmada, foi fortemente criticada devido ao atual estado prematuro da tecnologia de edição de genes, porque ela não foi considerada clinicamente necessária e porque os efeitos a longo prazo da modificação são desconhecidos, entre muitas outras preocupações.
Tal como está, a maioria dos países, incluindo a China e os Estados Unidos, permite que pesquisadores modifiquem o DNA de embriões humanos, mas a indução de uma gravidez com embriões modificados é estritamente proibida. Uma investigação recentemente concluída pelas autoridades chinesas descobriu que He, além de violar essa proibição, infringiu leis em busca de “fama e ganho pessoais”, forjando certificados de ética e falsificando trabalho laboratorial. He Jiankui foi detido pelas autoridades de segurança e será “severamente tratado”, de acordo com a mídia estatal chinesa.
A AP obteve e-mails entre Mello e He por meio de um pedido de registos públicos, espécie de Lei de Acesso à Informação dos EUA. Como a correspondência entre os dois mostra, Mello, que ganhou o Prêmio Nobel em 2006 por pesquisa genética, foi crítico do seu trabalho. Em abril de 2018, em um e-mail intitulado “Sucesso!”, He escreveu a Mello:
Caro Craig,
Boas notícias! A mulher está grávida, o sucesso da edição do genoma! O embrião com o gene CCR5 editado foi transplantado na mulher há 12 dias, e hoje a gravidez está confirmada!
Ao que Mello respondeu:
Fico feliz por você, mas prefiro não ser informado sobre isso. Eu acho que essa não é uma verdadeira necessidade médica não atendida e, por isso, não apoio o uso do CRISPR para essa indicação. Você está arriscando a saúde da criança que está editando e, segundo meu conhecimento, não há risco significativo de transmissão [HIV/AIDS] para embrião com FIV. Na verdade, o tratamento em si está alimentando o medo sobre o HIV e um estigma que não é baseado em nenhum fato médico. Eu simplesmente não entendo por que você está fazendo isso.
Desejo à sua paciente a melhor das sortes para uma gravidez saudável.
Apesar de suas reservas, Mello permaneceu com a Direct Genomics — e aparentemente se manteve em silêncio sobre a pesquisa duvidosa de He. Mello recusou o pedido da AP para uma entrevista, mas sua universidade, a Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts, forneceu uma declaração à agência de notícias na qual Mello disse que suas conversas com He eram “hipotéticas e amplas” e que ele não sabia que He era capaz de editar genes humanos. De acordo com a reportagem da AP:
Segundo uma declaração fornecida pela universidade de Mello, He abordou Mello durante um intervalo em uma reunião da empresa em novembro de 2017 para falar sobre a possibilidade de usar a poderosa ferramenta de edição de genes CRISPR para prevenir a infecção pelo HIV de pais para filhos. A declaração dizia que Mello afirmara que não tinha ideia da intenção de He de testar isso ele mesmo.
Dito tudo isso, Mello encaminhou He a um colega para aconselhamento sobre “riscos de transmissão do HIV em pediatria para uma terapia que ele está contemplando”, e o biólog participou de uma reunião da Direct Genomics na China cerca de uma semana antes da conferência de Hong Kong, informa a AP.
Este episódio, obviamente, não é bom e destaca as obrigações dos cientistas de se manifestarem quando surgem evidências de trabalho antiético. No artigo da AP, a bioeticista Alta Charo, da Universidade do Wisconsin, que codirigiu a conferência de Hong Kong, é citada dizendo que “não está claro” como alguém como Mello “poderia ter expressado preocupações” sobre o projeto de He. Essa é uma afirmação absurda, já que um simples tuíte, por exemplo, poderia ter alertado o mundo inteiro, dada a posição proeminente de Mello na comunidade científica. Mas canais mais formais e discretos de denúncias também existem.
“Quando você ouve falar sobre algo assim, você tem o dever de denunciar uma conduta antiética”, disse Arthur Caplan, bioeticista da Escola de Medicina da Universidade de Nova York, em entrevista ao Gizmodo. “No mínimo, você deve ir à instituição de origem do pesquisador, encontrar o reitor ou seu supervisor imediato e expressar suas preocupações. Pergunte-lhes se eles estão cientes dessa pesquisa e se aprovaram.”
Outra opção, afirmou Caplan, é que o cientista em questão alerte seu grupo de colegas, perguntando-lhes se já ouviram falar dessa pesquisa. Juntos, disse ele, o grupo poderia emitir uma carta pública, detalhando o que descobriram, explicando a natureza problemática do trabalho e condenando a pesquisa. Além disso, “a carta deve recomendar contra qualquer apresentação do trabalho e a publicação de detalhes em revistas científicas”, acrescentou Caplan. “Em última análise, você não quer dar a eles (pesquisadores antiéticos) uma plataforma.”
Kerry Bowman, bioeticista da Universidade de Toronto, disse que a ação de Mello mostra o quão problemática pode ser uma moratória sobre a edição genética de embriões, visto que cientistas renomados não estão dispostos a agir sobre um ato tão imprudente e uma clara violação ética.
“A falta de ação e o silêncio sugerem uma cultura de preocupação ética limitada”, disse Bowman ao Gizmodo. “A verdadeira ética na pesquisa não é apenas sobre o que os indivíduos fazem na busca pela pesquisa, mas também sobre de que eles fazem parte e o que testemunham.”
É obviamente importante jogar luz sobre indivíduos que erraram e que deveriam ter sabido o que estavam fazendo. Porém, mais importante é que a comunidade científica precisa aprender desse incidente e desenvolver uma cultura na qual ficar em silêncio não é aceitável.