Se voltássemos no tempo cem vezes, não haveria pandemia em dois terços delas
Antes de ganhar o nome que vemos diariamente nas manchetes, a Covid-19 era apenas conhecida como o “novo coronavírus” quando foi descoberta em dezembro de 2019 em Wuhan, na China. Para descobrir quando o vírus surgiu exatamente, pesquisadores realizaram simulações e descobriram que, além de ele já circular quase dois meses antes do primeiro caso ser relatado, a chance de ele causar uma pandemia era, na verdade, de menos de 30%.
Publicado na revista Science, o artigo foi escrito por pesquisadores da Universidade da Califórnia, em San Diego, da Universidade do Arizona e da Illumina, Inc. Por meio de ferramentas de datação molecular e simulações epidemiológicas, eles descobriram que o vírus morreria naturalmente mais de três quartos das vezes sem causar sequer uma epidemia.
O objetivo do estudo era descobrir por quanto tempo o SARS-CoV-2 estava circulando na China antes de ser descoberto. Para isso, os pesquisadores combinaram três tipos de informação, conforme eles explicam em um comunicado da Universidade da Califórnia. A primeira delas refere-se a uma compreensão detalhada de como o vírus se espalhou em Wuhan antes do lockdown. A segunda é a diversidade genética do vírus na China. Por fim, a terceira corresponde aos relatos dos primeiros casos de Covid-19 no país asiático.
A partir da combinação desses dados, eles determinaram que o SARS-CoV-2 começou a circular na província de Hubei por volta de outubro de 2019. Quando os primeiros casos foram relatados em dezembro, as autoridades chinesas isolaram a região e implementaram medidas de restrição em todo o país. Em abril de 2020, a transmissão local da doença já estava sob controle; o problema é que, nessa época, a Covid-19 já havia atingido mais de 100 países.
Para entender a origem do vírus, os pesquisadores do novo estudo adotaram uma técnica chamada “relógio molecular”, que se baseia na taxa de mutação de genes para deduzir quando duas ou mais formas de vida divergiram. No caso do coronavírus, a análise estima que o ancestral comum de todas as variantes do SARS-CoV-2 já existia em novembro de 2019.
De acordo com o artigo, os dados sugerem que o número médio de pessoas infectadas na China era menos de um até o dia 4 de novembro de 2019. Após treze dias, essa taxa teria aumentado para quatro e, em 1º de dezembro de 2019, para nove. O primeiro caso de internação em Wuhan ocorreu apenas em meados de dezembro.
Se considerarmos a proporção da pandemia atualmente, esse ritmo de contaminação em 2019 era extremamente baixo. Por isso, para entender o comportamento do vírus no estágio inicial do surto, os pesquisadores utilizaram uma série de ferramentas de análise, incluindo simulações epidêmicas com base na biologia conhecida do vírus.
O resultado foi que em apenas 29,7% das simulações o vírus foi capaz de criar epidemias. Em todas as outras 70,3% das vezes, ele infectou poucas pessoas antes de morrer naturalmente. Nesses casos em que a doença não prosperou, o vírus foi extinto em apenas oito dias desde a primeira infecção.
Para deixar ainda mais claro, o autor do estudo Joel O. Wertheim, professor associado da Universidade da Califórnia, em San Diego, explica o significado desses números da seguinte forma: “Vimos que mais de dois terços das epidemias que tentamos simular foram extintas. Isso significa que se pudéssemos voltar no tempo e repetir 2019 cem vezes, duas em três delas, a Covid-19 teria fracassado por conta própria sem criar uma pandemia”.
Ele ainda acrescenta que a descoberta é mais uma evidência de que “os humanos são constantemente bombardeados com patógenos zoonóticos”. Outra questão importante levantada no artigo é que essa taxa de transmissão extremamente baixa na China em 2019 sugere que é pouco provável que o vírus já estivesse circulando na Europa e nos EUA nessa mesma época.
Mas se, biologicamente, o SARS-CoV-2 não apresenta uma alta capacidade de causar uma pandemia como aconteceu, por que estamos vendo esses números de casos e mortes assustadores? De acordo com os pesquisadores, a doença acabou se tornando uma epidemia por estar amplamente dispersa e por ter prosperado em regiões urbanas, onde a transmissão é mais fácil. Nas simulações envolvendo comunidades rurais menos densas, o vírus foi extinto em 94,5% a 99,6% das vezes.
Conforme apontado por Wertheim no comunicado da universidade, não estávamos preparados para um vírus como o SARS-CoV-2. “Estávamos procurando o próximo SARS ou MERS, algo que matasse pessoas em uma taxa alta, mas só agora percebemos que um vírus altamente transmissível com uma taxa de mortalidade modesta também pode causar um grande estrago no mundo.”