Não é certo culpar a criptografia pelos ataques terroristas em Paris
Não sabemos muito detalhes sobre como foram organizados os ataques terroristas de Paris na última sexta-feira (12). Isso não impediu a comunidade de agentes da lei de culparem a criptografia por ajudar terroristas, ou então de usarem o ataque como oportunidade para defesa da vigilância.
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Agentes de inteligência estão dizendo que a disponibilidade de ferramentas gratuitas de criptografia para proteger conversas privadas é uma das causas dos ataques de Paris, e que se eles conseguissem monitorar tudo o que os terroristas diziam para os outros, conseguiriam evitar. Mas temos um histórico de como reagimos a uma ameaça de terror que foi descoberta por agentes de vigilância: Mumbai. Estávamos assistindo. E ainda assim não evitamos.
Os ataques de 2008 em Mumbai são um bom exemplo do que acontece quando uma organização terrorista elabora um bom plano. Afinal de contas, os passos dados pela comunidade de inteligência antes e durante os ataques não serviram para nada, e alguns dos documentos vazados por Edward Snowden deixam claro o que aconteceu. A comunidade de inteligência sabia sobre alguns dos envolvidos nos ataques, conseguiu monitorá-los, mas só identificou o plano deles quando já era tarde demais. Esse fracasso não teve relação alguma com a criptografia.
Alguns dos terroristas de Mumbai eram conhecidos das agências de inteligência dos EUA, Reino Unido e Índia. Mas essas agências não compartilharam informações entre si para descobrir o plano antes dele ser executado. Foi só depois dos ataques começarem que eles trocaram informações e viram quanta coisa tinham deixado passar. Os terroristas de Mumbai estavam muito bem preparados: um deles usou o Google Earth para criar um mapa de onde eles deveriam ir. O problema não foi que os terroristas se aproveitaram de ferramentas de privacidade, nem que essas ferramentas prejudicaram as investigações. O problema foi que a comunidade de agentes de inteligência não analisou nem compartilhou as amplas informações que coletaram.
“Não me lembro de nenhum caso na minha carreira em que tenha impedido uma ação com base apenas em sinais de inteligência”, disse o ex-agente da CIA Charles Faddis ao New York Times na época. Essas acusações em cima da criptografia desconsideram o papel fundamental que os seres humanos desempenham nas agências de inteligência.
O mesmo problema no compartilhamento de informações entre agências de diferentes países é o que pode ter prejudicado a comunidade de inteligência no caso dos ataques de Paris. Uma autoridade turca disse que alertou a França duas vezes sobre um dos terroristas de sexta-feira, mas não obteve retorno. Autoridades de Israel, Iraque e Jordânia também dizem que alertaram a França do perigo.
Ainda assim agentes de segurança não perderam tempo e logo apontaram o dedo para a criptografia, classificando-a como uma ferramenta de terroristas em suas agendas. O comissário da polícia de Nova York, Bill Bratton, disse que a capacidade do Estado Islâmico de ficar no “escuro” vai ser “um fator significativo nesse evento” durante o This Week With George Stephanopoulos no domingo.
Bratton continuou sua cruzada contra a criptografia no Face the Nation: “Nós, em muitos aspectos, ficamos cegos como resultado da comercialização e venda desses dispositivos que não podem ser acessados nem pelo fabricante nem, mais importante, por agentes da lei, mesmo equipados com mandados de busca e autoridade judicial”, ele disse. “Isso é algo que vai ser necessário ser debatido rapidamente porque não podemos continuar operando cegos.”
O diretor da CIA John Brennan chamou o ataque de um “chamado para despertar” durante um debate sobre criptografia, dizendo que “divulgações não autorizadas sobre o papel do governo” dificultaram para a comunidade de inteligência artificial evitar os ataques. As “divulgações não autorizadas” as quais ele se refere são, obviamente, os vazamentos de Edward Snowden, como se os terroristas tivessem percebido que estavam sendo monitorados só em 2013.
Não sabemos exatamente como as agências de inteligência não conseguiram evitar o que aconteceu em Paris. Um artigo com um erro na Forbes dizia que o ministro do interior da Bélgica, Jan Jambon, afirmou que terroristas usaram o PlayStation 4 para comunicação. Mas Jambon fez a declaração antes dos ataques.
Qualquer que seja a plataforma usada por terroristas para comunicação, a ideia de que a criptografia prejudicou os esforços de segurança para impedi-los ainda é hipotética. Mesmo que fiquemos sabendo que essas pessoas de fato usaram ferramentas de criptografia sofisticadas, o argumento de que a solução é acabar com essas ferramentas dando mais poder a governos é absurda.
Sabemos que terroristas usam criptografia ao menos desde 2001, como Glenn Greenwald destacou. Isso acontece há quase duas décadas. A retórica contra ferramentas de privacidade é de um oportunismo cínico, e acusar a criptografia de permitir os ataques é uma mudança bizarra de responsabilidade. Acusar a criptografia como fator importante nos ataques não é apenas tomar conclusões sem provas, como também ignorar o principal motivo de tantos ataques terroristas ocorrerem sem que ninguém impeça: uma falha no compartilhamento de informações.
Uma trava em uma bomba dificulta a desativação dela, mas não vamos proibir as travas por causa disso. A criptografia oferece serviços privados que tornam a internet mais segura para a maior parte das pessoas. Em vez de usá-la como bode expiatório para assustar pessoas e fazer elas apoiarem aparatos de segurança que se provaram ineficientes na hora de impedir ataques, a comunidade de inteligência devia reconhecer suas próprias falhas.
Imagem: AP