A voz de Morgan Freeman faz com que qualquer coisa pareça verdade, seja ela cientificamente plausível ou não. No filme Lucy, que estreou nos EUA na semana passada, o personagem de Freeman cita o “fato” de que os humanos usam apenas 10% dos seus recursos cerebrais. E isso não poderia estar mais errado. Mas se está errado, por que esse mito continua sendo divulgado? E quanto da capacidade do nosso cérebro nós realmente usamos?
As origens do mito dos 10%
A ideia que os seres humanos operam com apenas um décimo de uma capacidade cerebral está por aí desde a Era Vitoriana, quando a medicina moderna ainda estava cambaleando entre ciências como a frenologia (o estudo dos crânios) ou a medicina manipulativa osteopática (holística). E como acontece com muitas das lendas urbanas, a raiz do mito dos 10% tem nada menos que meia dúzia de possíveis inventores.
A fonte em potencial mais antiga vem do trabalho de Jean Pierre Flourens, um dos pais fundadores da ciência cognitiva moderna, inventor da anestesia e o homem que provou que a consciência reside no cérebro, e não no coração. Seu trabalho pioneiro em demonstrar as funcionalidades regionais dos hemisférios do cérebro frequentemente chama uma grande parte da massa cinzenta de “córtex silencioso”, o que pode ter influenciado os pesquisadores que vieram depois a acreditar que essa região, agora conhecida como córtex associativo, não tinha função alguma.
Outra fonte do mito poderia ser o charlatanismo da Teoria da Reserva de Energia, apresentada pelos psicólogos de Harvard William James e Boris Sidis na década de 1890. A pesquisa deles, que consistiu em elevar a prodígio o filho de Sidis, William (a criança tinha um QI relatado entre 250 e 300, quase o dobro dos 160 pontos de Einstein) num ambiente de desenvolvimento acelerado. Os pesquisadores levaram o enorme intelecto da criança como prova de que todo ser humano deveria ter algumas reservas escondidas de energia mental e física. Em um ensaio chamado The Energies of Men, James afirma: “Nós só estamos fazendo uso de uma pequena parte dos nossos recursos mentais e físicos”. Essa ideia foi popularizada mais tarde por Lowell Thomas no prefácio do livro Como fazer amigos e influenciar pessoas: “O Professor William James de Harvard costumava dizer que o homem comum desenvolve apenas dez por cento de sua habilidade mental latente”.
O mito dos 10% acabou ganhando ainda mais credibilidade nas décadas de 1920 e 1930, por conta do trabalho psicólogo americano Karl Lashley. Através de suas tentativas de quantificar a relação entre massa e função no cérebro, Lashley descobriu que ratos poderiam reaprender tarefas específicas depois de terem sofrido danos no córtex cerebral. No entanto, nosso entendimento da função cerebral naquela época ainda era muito verde e as conexões que ele sugere entre a ação de massa (o aprendizado é governado pelo córtex cerebral como um todo, e não há regiões específicas para ele) e equipotencialidade (a percepção sensorial pode ser reaprendida por outras regiões do cérebro depois do dano) podem ter dado origem ao mito.
Como nós sabemos que usamos mais de 10% do nosso cérebro?
Felizmente, o campo da neurociência avançou aos trancos e barrancos desde a primeira metade do século passado e nós aprendemos que, assim como acontece com o esperma, cada célula cerebral é extremamente importante.
O cérebro humano constitui 1/40 da massa total de um ser humano, em média, mas consome um quinto das calorias que ingerimos. Do ponto de vista evolutivo, no qual todos os nossos órgãos foram criados e naturalmente selecionados ao longo de eras para a eficiência, ter um cérebro que suga 20% de nossas reservas energéticas diárias para ter uma eficiência de 10% simplesmente não faz nenhum sentido.
Pesquisas clínicas feitas nos últimos 80 anos têm trazido evidências similares. Mesmo um pequeno dano a qualquer região da sua massa cinzenta — causado por um AVC, por uma lesão ou doença — pode resultar em declínios neurológicos catastróficos. “Vários tipos de estudos de imagem cerebral mostram que nenhuma área do cérebro é completamente silenciosa ou inativa”, dizem a Dra. Rachel C. Vreeman e o Dr. Aaron E. Carrol em um estudo sobre os mitos médicos. “Uma sondagem detalhada do cérebro não foi capaz de identificar os 90% que não funcionam”.
Por outro lado, as terapias de estimulação elétrica ainda precisam descobrir quaisquer reservas de intelecto, embora a prática venha mostrando promessas para o tratamento de epilepsia e de um pequeno número de outras doenças neurológicas. Um estudo de 2008 publicado na Scientific American por Barry Gordon, um neurologista da Escola John Hopkins de Medicina, afirma inequivocamente que “virtualmente, nós usamos cada parte do nosso cérebro, e [a maior parte] do cérebro está ativa quase o tempo todo”. De fato, pesquisas com ressonância magnética e outras tecnologias de imagem têm mostrado que todo o cérebro está ativo quase o tempo todo — mesmo quando estamos fazendo tarefas de rotina.
“Vamos colocar dessa forma”, ele disse à Scientific American. “O cérebro representa 3% do peso do corpo humano e usa 20% da energia do corpo”.
Então o que aconteceria se nós realmente só usássemos 10% dos nossos cérebros?
Digamos que remover 90% do seu cérebro não fosse te matar de imediato. O que aconteceria? De acordo com a Universidade de Washington, os resultados não seriam nada legais:
Em média o cérebro humano pesa cerca de 1.400 gramas. Se 90% dele fosse removido, sobrariam cerca de 140 gramas de tecido cerebral, o que é mais ou menos do tamanho do cérebro de uma ovelha. É sabido que o dano causado a uma área relativamente pequena do cérebro — como o que acontece quando alguém tem um derrame –, pode causar deficiências devastadoras. Algumas doenças neurológicas, como o Parkinson, também afetam áreas específicas do cérebro. O dano causado por essas doenças é bem menor do que a remoção de 90% do cérebro, é óbvio.
Então é isso: elimine 90% do cérebro e você pode ser oficialmente reclassificado como uma ovelha.
Então quando você assistir a esse filme com a Scarlett Johansson ganhando poderes telecinéticos enquanto ela vai “destravando” mais e mais de seu potencial cerebral, saiba que isso é só mais uma lenda que um roteirista resolveu usar como parte de um roteiro.
[Britannica – Wiki 1, 2 – Scientific American – About – John Hopkins University – News.Au – University of Washington]