Na véspera do dia em que eu deveria ser um figurante em jOBS, o primeiro filme biográfico sobre Steve Jobs após sua morte, eu fiquei acordado até 2 da manhã. Quando eu pedi uma garrafa de cidra espanhola à 1h15 da manhã, faltavam cinco horas para o meu despertador tocar, e cinco horas e quarenta e cinco minutos para eu comparecer ao set. Eu justifiquei a atitude lembrando como Jobs muitas vezes falou abertamente sobre suas “importantes” experiências com drogas recreacionais. “O Steve ia querer que fosse assim”, pensei, servindo-me de outro copo de cidra.
Na manhã seguinte, quando o alarme do meu celular finalmente começou a tocar, eu me arrastei da cama até o closet, onde encontrei meu celular ainda no bolso das calças que eu usei na noite anterior. Eu senti na boca um gosto de maçã podre, do papardelle ao pesto que comi na noite anterior, e de chulé. Estava faminto, tonto e exausto, e não ajudava muito lembrar que eu teria que dirigir até Pasadena para passar o dia inteiro com Ashton Kutcher. Sem tempo para tomar café, eu corri até a porta e saí de casa em uma manhã quente de Los Angeles.
Se a bebedeira da noite anterior foi uma prova da apreciação de Jobs pela manipulação da mente, dirigir até o Centro de Convenções de Pasadena algumas horas depois foi um tapa na cara do perfeccionismo do querido CEO. Eis algo sobre mim que é relevante em um artigo sobre o filme do Steve Jobs: diferente dos quase 20% de adultos americanos que têm celulares, eu não tenho um iPhone. Eu nem mesmo tenho qualquer outro aparelho que me dê acesso imediato ao Google Maps. Então, quando eu me perdi no caminho para o set do filme, eu não podia abrir um app de GPS e pedir ajuda. Depois, quando tentei ligar para alguém pedindo ajuda para me guiar no caminho, a bateria do meu celular acabou. Steve Jobs disse uma vez: “algumas pessoas não estão acostumadas com ambientes onde se espera excelência”. Conforme eu desacelerava na rodovia, que estava engarrafada por causa da hora do rush, eu não fazia ideia para onde estava indo, mas continuei em frente, dirigindo cegamente. Era o oposto da excelência, mas pelo menos eu estava tentando.
Quando finalmente cheguei ao centro de convenções, depois de implorar por ajuda a algumas pessoas gentis que estavam se exercitando, eu já estava 15 minutos atrasado. Um monte de cartazes amarelos onde se lia “figurantes” me levou a uma enorme sala cinza que não era muito diferente de um ginásio escolar. Para complementar a sensação de voltar para a escola, enormes fileiras de mesas dobráveis e cadeiras eram ocupadas por cerca de 300 pessoas de todas as idades, etnias, pesos e hábitos de higiene. Algumas pessoas comiam bananas e barras de cereais oferecidas na frente da sala. Outros roncavam com a cabeça nas mesas. A única coisa que todo mundo tinha em comum era que a melancólica luz fluorescente dava a todos um ar de cansaço. Enquanto andava até uma das cadeiras para me acomodar, um homem idoso passou por mim resmungando, “Ah, foda-se!”.
O casting foi feito de uma forma meio aberta demais. Os anúncios que procuravam figurantes para o filme foram postados no Craigslist, um serviço gratuito de classificados. Isso lembra a maneira descompromissada que alguém iria oferecer uma vaga num apê, não um emprego num filme. Por isso os anúncios foram motivo de piada no Gizmodo americano, especialmente porque faziam parecer que qualquer um poderia passear nos sets do filme: bastava uma conexão à internet e uma obsessão por Ashton Kutcher. Mas acontece que responder ao anúncio do Craiglist era apenas o primeiro obstáculo para conseguir um papel como cenário humano no filme jOBS. O segundo obstáculo era a Mulher de Short.
A Mulher de Short parecia ter seus quarenta e tantos anos e andava com um firme propósito. Ela se aproximou de mim e da massa cada vez maior de figurantes esperançosos e, sem dizer nada, começou a andar de um lado para o outro nas fileiras de mesas e cadeiras, observando a multidão como se estivesse olhando para uma plantação. Após alguns instantes em silêncio, ela apontou para um homem mais velho vestindo uma camisa cinza. “Você pode ir”, ela disse, então homem levantou e caminhou lentamente até o encarregado. “Você também”, ela disse para uma loirinha bonita. Eu consegui ouvir a loira sussurrando “Yessssss!” para si mesma enquanto levantava e caminhava até um homem corpulento, mas a Mulher de Short já não estava mais por perto, e nem percebeu a alegria que acabava de trazer àquela jovem.
Você deve achar que Hollywood só quer gente bonita, mas a Mulher de Short não estava escolhendo apenas pessoas atraentes. Para a sorte da multidão heterogênea que estava reunida ali, as cenas se passavam na conferência de tecnologia no Havaí, onde Jobs fez seu famoso discurso “1984” contra a IBM, ou seja: todo mundo tinha chance. Desde a latina obesa até frágeis idosos, ou sósias do Larry Bird com cabelo comprido – bastava ter um visual meio nerd dos anos 80. Quem não parecia se encaixar, aparentemente, era eu.
A Mulher de Short me ignorou não apenas uma, mas três vezes, olhando meu rosto como se eu estivesse implorando por esmola. A cada nova rejeição eu sentia a vergonha nas minhas entranhas, e comecei a sentir vergonha por estar com vergonha. “Por que eu me importo de não ter sido escolhido?”, pensei comigo mesmo. “Foda-se esse pessoal.” Mas eu me importava, eu me importava com o que esses estranhos pensavam de mim. E notei que todo mundo à minha volta também se importava.
Um rapaz à minha esquerda, com seus 20 e poucos anos, estufava o peito cada vez que a Mulher de Short passava perto dele, e cada vez que ela ignorava, ele esvaziava o peito como um balão furado. Eu percebi que duas garotas algumas mesas à frente só paravam de rir nervosamente e de puxar suas roupas quando a Mulher de Short passava por elas. Assim que elas não eram escolhidas, começavam a rir novamente. Mas era o tipo de risada que as pessoas soltam quando elas estão tão envergonhadas e ansiosas que não sabem mais o que fazer. É o tipo de risada mais triste do mundo.
Felizmente, eu estava ali por ter sido convidado, e quando eu disse isso a um homem que parecia ser um funcionário e estava perto da minha mesa, ele disse, “Ah, eu estava procurando você. Venha comigo.” Eu vesti uma camisa polo azul aprovada pelo departamento de figurinos, e me sentei na mesa de uma sala feita para parecer com um salão de banquete em Honolulu por volta de 1983. Enfeitando o salão, estavam torres de sete metros de altura com tecido cinza, estampadas com o famoso logotipo arco-íris da Apple. Pensei em beber um drinque na minha frente, até perceber que era só água tingida de azul e com um “gelo” gelatinoso que não derretia.
É para esse lugar que iam os figurantes sortudos depois de serem escolhidos pela Mulher de Short, e observando todos – assim como fez o verdadeiro Steve Jobs na conferência que estávamos tentando encenar – estava Ashton Kutcher. Ele vestia uma camiseta polo verde oliva que parecia idêntica à que Jobs vestiu na conferência em Honolulu quase 30 anos atrás, e ele estava em pé atrás de um pódio enrolado com papel branco, um logo da Apple e dois microfones. De acordo com um figurante na minha mesa, o pódio antes era de madeira e tinha apenas um microfone nele, um pequeno erro que Kutcher quis corrigir. “O pódio de verdade não era assim”, disse Kutcher. Então eles mudaram.
Depois que o pódio estava pronto, a gravação começou. A cena que estávamos filmando era a declaração que Jobs deu antes de mostrar o famoso comercial “1984”, uma criação de Ridley Scott que ganhou um monte de prêmios. As falas de Ashton eram “Agora estamos em 1984. Parece que a IBM quer dominar tudo. A Apple aparenta ser a única esperança capaz de enfrentar a IBM. A IBM quer dominar tudo, e está apontando as armas para o último obstáculo em controlar a indústria: a Apple. O gigante azul irá dominar toda a indústria de computadores? Toda a era da informação? George Orwell estava certo sobre 1984?”
Eu vou me lembrar dessas frases pelo resto da minha vida. Não porque eu as ache particularmente profundas, mas porque eu escutei Kutcher repeti-las, segundo meus cálculos, 26 vezes ao longo de três horas. Se você achava que o trabalho na indústria cinematográfica era glamuroso ou empolgante, tire isso da sua cabeça agora. Depois de ouvir um ator falar um discurso velho, que nem era tão bom assim, pela nona, décima ou vigésima vez, você começa a perceber que não ser um astro do cinema nem é tão ruim assim.
Para aumentar mais ainda a monotonia dessas repetições, eu e o resto dos extras precisávamos participar, gritando “Não!” em resposta às três perguntas do discurso. Nós também tínhamos que aplaudir de pé toda vez que o comercial era exibido após a fala. Para deixar as coisas um pouco mais interessantes para mim, durante umas duas tomadas, nas quais a câmera passou lentamente por cima da plateia, eu tentei lançar um olhar fulminante para Kutcher enquanto aplaudia bem devagar, como um psicopata ameaçador.
Mais tarde, durante um breve intervalo na filmagem, me disseram que “alguém” queria conversar comigo. Eu fiquei achando que seria repreendido por causa das caretas, mas ao invés disso, Ashton apareceu para dizer oi e pedir que o Gizmodo americano “pare de falar mal” do filme – ele mal terminou de gravar! O Ashton na verdade é bem legal.
O almoço foi servido: uma mistura de macarrão, salada, salada de macarrão e uns pedaços de carne, mas tudo acabou rápido demais. Antes que eu percebesse, voltei à sala escura no “Havaí”, só que dessa vez era a cena em que Jobs discute com a equipe de vendas da Apple – Mike Markkula (Dermot Mulroney), John Sculley (Matthew Modine), e Arthur Rock (JK Simmons) – na mesa deles no andar da sala de banquetes. Pelo que consegui entender ao ficar observando, Jobs estava irritado com o preço que Sculley determinou para o computador da Apple. “Eu estou priorizando os interesses da empresa”, diz Sculley. “Mas o nosso maior interesse não é o consumidor?” responde Ashton Jobs. Apesar de a frase não fazer muito sentido, Kutcher falou isso com paixão, o que eu admiro.
É claro que ficar espiando os atores não é o meu trabalho como figurante. Meu trabalho dessa vez é falar “de mentira”. Pois é: abrir e fechar a boca como se eu estivesse falando com outras pessoas na mesa – mas sem dizer nada. Eu também tinha que gesticular como se estivesse me divertindo e fingir que estava bebendo meu drinque, permitindo que a água fétida tocasse meus lábios antes de voltar para o copo. Isso é tão degradante e entediante quanto parece, até pior do que quando nós fomos forçados a pular e bater palmas toda vez que o comercial “1984” passava, como um cão de Pavlov em forma de geek. O pior é que, assim como a cena anterior do discurso, nós fizemos essa cena de 90 segundos várias vezes. Às 5 da tarde, eu percebi que levou mais de 10 horas para gravar cinco minutos de cenas.
Figurantes que são sindicalizados pelo Screen Actors Guild recebem US$145 por oito horas de trabalho, mais US$27 por hora pelas primeiras quatro horas depois disso, e US$36 por hora para cada hora que ultrapassar 12 horas. Figurantes não-sindicalizados recebem o salário mínimo da Califórnia: US$8 por hora pelas oito primeiras horas, US$12 por hora pelas duas horas seguintes, e US$16 por hora se eles trabalharem mais de 10 horas.
Como trabalho extra é considerado tabu para atores “de verdade”, a vasta maioria dos figurantes não é sindicalizada, e a maioria das pessoas com quem eu falei consideram isso um trabalho bem fácil em um período de crise. Você vai e fica por lá por um dia, recebe comida grátis, e sai com US$80 a US$100 no bolso. Não é muito dinheiro, mas é alguma coisa, e você recebe isso enquanto olha o Ashton Kutcher entre um take e outro. “Você tem que fazer vários castings”, diz uma mulher por volta de 20 anos que pediu para que eu não usasse seu nome real, “mas se eles escolherem você, é uma maneira bem fácil de conseguir o dinheiro do aluguel.” No set do filme sobre um dos principais inovadores dos EUA, os figurantes só estão tentando sobreviver.
Por volta da décima primeira hora, o abatimento do set começava a se espalhar por praticamente todos os figurantes. Enquanto não estavam gravando, um jovem casal a algumas mesas de distância dava as mãos enquanto descansava a cabeça um no ombro do outro. Eles tiveram que ser acordados por uma assistente de produção, que perguntou se eles estavam bem. Uma mulher na minha mesa disse que ela ainda teria que dirigir bastante. “Mas eu não vou nem me importar com o trânsito,” ela disse. “Eu vou ficar aliviada de estar indo para casa”. “Essa merda azul tem gosto de limpa-vidro”, diz outra mulher à minha direita, mexendo o coquetel azul no colo. “Eu até beberia limpa-vidro agora”, responde o cara do lado dela.
Quando fizemos mais uma pausa, às 6 da tarde, eu decidi que era o bastante para mim. Os figurantes que haviam sido pagos para estar ali foram orientados a ficar para mais uma cena, então muitos deles iriam voltar para casa com um pagamento inflado pelo excesso de hora extra. E ainda assim notei que alguns ficam radiantes com a ideia de estar ali por boa parte da noite. “Talvez eles deem mais comida pra gente,” eu ouvi uma mulher esperançosa falar para a outra. A outra não respondeu.
Na volta para casa, eu não conseguia entender que raios eu achava que iria aprender passando um dia como figurante no set de jOBS. O filme vai ser ruim? Eu não sei. Mas eu sei que, na conversa de quatro minutos que eu tive com Kutcher, ele está tentando levar muito a sério este projeto, fazendo uma pesquisa meticulosa sobre a vida de Jobs e a história da Apple. Mas eu também sei que o orçamento para jOBS é relativamente baixo, e que ele está em competição direta com outro filme sobre Steve Jobs, que será escrito pelo peso pesado de Hollywood, Aaron Sorkin. Isso, somado ao fato de que muitos não acreditam que Kutcher possa ser um ator “sério”, não é um bom sinal para o sucesso de jOBS. Bem, houve um tempo em que muitos também acreditavam que a Apple iria fracassar.
***
Cord Jefferson é um escritor em Los Angeles. Seu trabalho já apareceu na National Geographic, GOOD, The Awl, The Root, NPR, Gawker e outros.