_Tecnologia

A história bizarra dos discos de raio X e o começo da pirataria de música

Na época da URSS, os jovens russos pirateavam música usando chapas de raio x para produzir discos.

Graças à imensa capacidade de auto-reciclagem da internet, artigos sobre a pirataria soviética em discos feitos com material de radiografias aparecem com frequência nos meus feeds. Esses posts populares e muito compartilhados explicam como, nos anos de 1950 e 60, fãs de música na União Soviética fabricavam discos piratas de música ocidental banida pelo governo, e usavam velhos raios X para isso. Na verdade, a história desses discos é muito mais antiga que a URSS.

Discos piratas de música ocidental, feitos de raios X

A história ja foi contada várias vezes: há pouco tempo pelo The Verge, pela NPR e pelo Junkculture, e o Der Spiegel e a BBC também escreveram sobre isso alguns anos antes. Um elemento comum entre esses artigos, incluindo o da NPR e o da BBC, são as imagens do fotógrafo húngaro József Hajdú, a despeito das imagens de Hajdú não terem muito a ver com os discos piratas soviéticos.

Eu já tinha visto as fotos de Hajdú antes, e algumas delas podem ser encontradas no antigo site da Bolt Photo Gallery  com uma breve descrição da origem e das circunstâncias do trabalho de Hajdú. Para ter uma ideia melhor do que há por trás dessa história, eu fui até a fonte e pedi ao próprio Hajdú que me contasse o que sabia sobre esses estranhos discos, que carregam as marcas da invisível radiação eletromagnética de ondas curtas.

József Hajdú, museólogo do Hungarian Postal Museum (Foto: Attila Nagy/Gizmodo)

Nós sentamos no Museu Postal para conversar. Foi lá que, em 1993, aconteceu uma exposição chamada Alô, este é o telefone de Tivadar Puskás, mostrando a relação entre Puskás e Thomas Edison, examinando suas conquistas através de objetos e documentos de transmissão e gravação de som. Nessa exposição, visitantes podiam admirar algumas chapas de raios X especiais, que tinham sido impressos com diferentes tipos de gravação, graças a cortadores de discos.

József Hajdú, que também é museólogo do Museu Postal, reparou nesses discos bizarros e flexíveis que mostravam partes de corpos. E ele encontrou beleza nesses antigos objetos de multimídia originários da coleção da Hungarian Radio Corporation.

Discurso político de 1941 (Foto: Attila Nagy/Gizmodo)

Descobrimos que a mais antiga dessas chapas foi criada nos anos 40, na oficina de corte de discos da Rádio Húngara. Ricos amantes da música e entusiastas do rádio preparados e receptivos à nova tecnologia também faziam os discos em casa, após comprarem suas próprias máquinas de corte.

Na época, a maior parte das apresentações e programas de rádio era gravada em goma-laca, mas durante a Segunda Guerra Mundial era quase impossível importar goma-laca do Sudeste Asiático, especialmente da Índia. A falta de matéria prima fez nascer uma solução forçada: profissionais do rádio e entusiastas amadores procuravam por um material que fosse barato, disponível em grandes quantidades e, é claro, pudesse tocar gravações em uma qualidade aceitável. E foi nos hospitais que eles encontraram esse material.

Esse disco de música foi criado no dia 31 de dezembro de 1940 (Foto: Attila Nagy/Gizmodo)

Expostas, utilizadas e então descartadas, as chapas de raio X eram o que os radialistas precisavam. As placas de celuloide banhadas numa emulsão sensível à luz são grossas e duráveis o suficiente para receber os riscos da dance music, músicas populares, discursos de políticos, e quase qualquer coisa que venha de caixas acústicas. Então, as grossas radiografias eram cortadas em discos de 23 a 25 centímetros de diâmetro, às vezes com bordas irregulares, marcadas com etiquetas de identificação e com buracos no meio. Esses 78 rpm, discos com sulcos normais (ou seja, não-LP), contêm cerca de dois ou três minutos de gravação de voz ou de música, diz Hajdú.

Assim nasceram os primeiros discos de raio X nos estúdios da Rádio Húngara e, como enfatiza Hajdú, hoje nós os vemos como obras de arte interessantes, que podem ser vistas como trabalhos pioneiros de reciclagem e de multimídia. Essas gravações podem, definitivamente, ser estudadas como arte. Autores anônimos deram sua contribuição estética às obras: muitos discos em raio X são aparentemente bem montados e criados de forma deliberada, com as imagens originais — por exemplo, um crânio ou uma caixa toráxica — mostradas em uma forma que agrada aos olhos. Algumas dessas chapas mesmo hoje honrariam qualquer banda obscura de black metal.

Um pouco de piano bar (Foto: Attila Nagy/Gizmodo)

A visão artística capturou a atenção de Hajdú e, nos anos 90, ele baseou muitos projetos fotográficos nesses discos de raio X. Primeiro, ele usou as chapas que coletou como negativos e fez cópias contato 1 pra 1 em papel fotográfico (14 peças no total), então as experimentou com mesas de luz e por fim fez ampliações em Polaroid de 4×5 polegadas, também, como pode ser visto abaixo:



(Fotos: József Hajdú)

A série de fotos em edição limitada foi exibida em muitas exposições; poucos anos atrás elas apareceram em uma exposição em Budapeste que teve raios X como tema, chamada X-Ray Men: Invisible World.  Hoje, a maioria está em coleções públicas e privadas, espalhadas pelo mundo. E, é claro, você pode encontrar algumas delas na internet, ilustrando artigos sobre discos piratas soviéticos.

No entanto, a história das gravações em raio X não termina com a Segunda Guerra. Nos anos 50, discos muito similares apareceram na União Soviética, disseminando ilegalmente entre sua juventude isolada as gravações mais populares de músicas ocidentais banidas. Foi assim que nasceu a pirataria comunista. Stilyagi, filme russo de 2008, faz um tributo bacana para essa subcultura:

Ainda não está claro se o método de raio X se espalhou da Hungria para a União Soviética, uma vez que os pesquisadores não conseguiram encontrar nenhuma conexão direta entre os dois fenômenos. Uma explicação possível é que, depois de 1945, trabalhadores forçados e prisioneiros de guerra húngaros — mais de 600 mil húngaros foram capturados e deportados pelos soviéticos após a guerra, incluindo mais ou menos 200 mil civis — trouxeram a tecnologia para a URSS. Mas também é possível que as pessoas da Hungria e da União Soviética tenham, independentemente, inventado o método com algumas décadas de distância.

Os flexi discs eram muito similares aos piratas, mas eram gravações oficiais na URSS. (Foto: Attila Nagy/Giozmodo)

Gravações em raio X continuaram populares entre os amantes da música na Hungria e na URSS. Só muito tempo depois, nos anos 70, após a flexibilização da austeridade política e ampliação do portfólio ocidental das gravadoras estatais (Melodiya na URSS, Hungaroton na Hungria), a produção desse tipo de mídia começou a declinar.

Desde então, esses discos desapareceram quase que completamente das coleções particulares de música, e apenas alguns poucos desses objetos bizarros encontraram seus lares nas prateleiras dos colecionadores, bem como nos arquivos da Rádio Húngara e da Biblioteca Nacional do país. Entretanto, há sinais de que eles não serão esquecidos. O selo de Jack White, por exemplo, até lançou um álbum em raio X ano passado. Parece que toda a atenção dos últimos anos pode ter engrenado uma ressurreição de uma forma de arte que, originalmente, nasceu da necessidade pura.

Sair da versão mobile