Estes óculos podem ajudar daltônicos? Colocamos o EnChroma à prova
Uma empresa chamada EnChroma criou um par de óculos que promete encher de cor a vida dos daltônicos. Como é de se esperar, a internet reagiu com empolgação. Mas não é a primeira vez que um aparelho tecnológico faz essa mesma promessa, e a ciência por trás da percepção de cor não é muito exata. Por isso, nós decidimos tentar decifrar os mistérios do daltonismo.
Para alguns daltônicos, usar as lentes EnChroma é uma experiência extraordinária. Já para outros, elas não fazem muita diferença. Para entender o porquê, vamos explorar a ciência da percepção de cores, falar sobre os diferentes tipos de daltonismo, e explicar o que esses óculos realmente fazem.
Como funciona a percepção de cores?
Quando alguém com uma percepção de cor normal olha para um arco-íris, ela vê toda a gama de cores — do vermelho ao violeta — presente no que chamamos de ‘luz visível’. Mas embora cada cor represente uma onda luminosa, nossos olhos não contêm detectores específicos para cada uma dessas ondas.
O espectro eletromagnético. Crédito: Wikimedia
Na verdade, nossas retinas só possuem três tipos de células sensíveis à cores: nós as chamamos de cones. Essas células são neurônios especializados que enviam sinais elétricos quando expostos à luz. O problema é que eles não são muito precisos: um cone é sensível a uma vasta gama de cores. Mas quando nosso cérebro coleta e junta as informações reunidas pelos três tipos de cones, ele é capaz de identificar diferentes tons de uma mesma cor.
É assim que o processo funciona: os cones contêm um pigmento fotossensível que reage às ondas luminosas de um certo segmento do espectro. Esse fotopigmento é levemente diferente em cada cone, tornando-os sensíveis a luzes que pertencem a diferentes partes do espectro. Podemos chamá-los de cones vermelho, verde e azul, mas é mais adequado dizer que cada tipo detecta ondas luminosas longas (L), médias (M) ou curtas (C).
Reação típica dos cones à luz. Crédito: BenRG/Wikimedia
O gráfico acima, que mostra com qual intensidade cada tipo de cone responde à diferentes ondas luminosas, pode nos ajudar a compreender essa reação. É possível ver como cada tipo de cone tem uma resposta mais forte — um pico — para uma pequena extensão de ondas. Os cones L (ou “vermelhos”) respondem mais fortemente à luz amarela; os cones M (ou “verdes”) respondem mais à luz verde; e os cones C (ou “azuis”), à luz azul-violeta. Os cones também são ativados por uma grande gama de ondas de cada lado de seus “picos”, mas a resposta a essas cores é mais fraca.
Isso significa que existe uma grande sobreposição entre o alcance dessas células: os cones L, M e C respondem a muitas das mesmas ondas luminosas. A grande diferença entre os tipos de cones está na força com que eles respondem a cada comprimento de onda. Essa diferença é essencial para nossa percepção de cores.
Imagine que você só possui uma célula cone. Pode ser um cone M, se você preferir. Se você iluminar essa célula com luz verde, ela será perfeitamente capaz de captar essa luz. Ela irá inclusive mandar uma descarga elétrica para seu cérebro, mas ela não saberá definir qual é a cor dessa luz. Isso porque o cone sempre manda um sinal elétrico; seja quando ele detecta uma onda que o ativa com mais força, ou quanto ele detecta uma luz mais forte num comprimento de onda que o faz reagir com menos força.
Para ver uma cor, nosso cérebro tem que juntar as informações dos cones L, M e C para comparar a força do sinal lançado por cada tipo de cone. Vejamos a cor de um lindo céu aberto, localizado no gráfico acima pelo comprimento de onda 475 nm. Os cones C têm a reação mais forte a esse comprimento de onda, mas os cones vermelhos e verdes também detectam essa luz. É a diferença entre esses sinais que faz nosso cérebro dizer “isso é azul!”. Cada onda luminosa corresponde a uma diferente combinação de sinais de dois ou mais cones: um código ternário que permite que o cérebro enxergue milhões de tons.
E o que torna alguém daltônico?
Esse código ternário é eficiente, mas muito pode dar errado no caminho. O gene responsável por um desses três fotopigmentos pode parar de funcionar. Uma mutação pode mudar a sensibilidade de um fotopigmento, fazendo com que ele responda a uma gama diferente de ondas. (Lesões na retina também podem causar problemas.) Numa pessoa daltônica, os cones simplesmente não funcionam como deveriam; o termo abrange uma série de possíveis defeitos na visão.
Respostas dos cones em dois tipos de daltonismo vermelho-verde. Crédito: Jim Cooke
As formas mais comuns de daltonismo hereditário são os defeitos de percepção do verde e do vermelho. Uma delas está ligada à incapacidade de produzir fotorreceptores L, e a outra é causada pela ausência de fotorreceptores M.
Os daltônicos com defeitos genéticos são chamados de dicromatas: eles possuem apenas dois fotorreceptores funcionais. Esse problema é na verdade bem simples. Você se lembra que o cérebro compara a força com que cada tipo de cone responde à cada tipo de comprimento de onda? Agora apague a curva L ou M do gráfico de resposta fotorreceptora da sua mente, e você verá como o cérebro perde um grande número de informações.
O problema é mais delicado para aquelas pessoas que têm uma versão dos fotorreceptores L ou M que detecta uma extensão diferente de comprimento de ondas. Essas pessoas são chamadas de tricromatas anômalos: assim como alguém com uma visão normal, seus cérebros recebem informações de três fotorreceptores; mas nesse caso, a resposta de um desses fotorreceptores é defeituosa.
Dependendo da alteração da curva de resposta desses fotereceptores, um tricromata anômalo pode ver tons vermelhos e verdes um pouco diferente de uma pessoa com uma visão normal, ou não diferenciar entre as duas cores, assim como um dicromata.
Um cenário de outono em seis pontos de vista. Imagem do topo, à esquerda: Visão normal. Imagem abaixo, à esquerda: deuteranomalia (falha na cor verde). Imagem do topo, no meio: protanomalia (falha na cor vermelha). Abaixo, no meio: tritanomalia (falha na cor azul). No topo, à direita: deuteranopia (daltonismo da cor verde). Abaixo, à direita: tritanopia (daltonismo da cor azul).
Mas uma criança que nasce com alguma dessas deficiências de percepção de cor não tem como saber a diferença. Descobrir que você vê um mundo diferente que as pessoas ao seu redor pode ser uma grande surpresa. Foi exatamente isso que aconteceu com Carlos Barrionuevo, que descobriu seu daltonismo aos 17 anos.
“Eu nunca havia reparado”, disse ele ao Gizmodo. “E meus pais também não sabiam. Eu não fazia a mínima ideia até me alistar na Marinha. Fui fazer o teste, e eles começaram a me mostrar umas imagens de um livro e a falar ‘diga que número você vê’. Eu respondi ‘que número? Tem algum número aí?’”
O livro mencionado por Barrionuevo continha algumas versões dos testes de cores de Ishihara: círculos feitos de pontos coloridos de diversos tamanhos e tons que servem como uma forma fácil de diagnosticar o daltonismo. Cada círculo contêm um símbolo ou número que é difícil — ou impossível — de ser reconhecido por alguém com certos tipos de daltonismo. Ele também pode ser desenhado de forma que o símbolo seja visível apenas para daltônicos, e invisível para todo o resto. Na imagem abaixo, as pessoas com visão normal veem o número 74, mas os daltônicos veem o número 21.
Teste de cor de Ishihara. Aqueles com uma visão normal veem o número 74. Aqueles com daltonismo verde/vermelho veem o número 21. Crédito: Wikimedia
Barrionuevo acrescenta que não é apenas uma questão de não ver o vermelho ou o verde. “Eu consigo diferenciar o verde do vermelho, mas diferentes tons de vermelho e verde são todos iguais para mim. Eu confundo algumas cores. Quando vou numa loja de tintas, as cores do mostruário parecem todas iguais; eu não consigo diferenciar entre elas.”
E o que as lentes EnChroma fazem?
Se a percepção de cor é basicamente uma questão de intensidade, isso levanta uma questão bem óbvia: seria possível restaurar a percepção de cor manipulando a proporção de luz a qual um daltônico é exposto?
Andy Schmeder, COO da EnChroma, acredita que sim. Com formação em matemática e ciência da computação, Schmeder começou a explorar o ramo da correção de percepção de cor há uma década, junto com seu colega Don McPherson. Em 2002, McPherson, um cientista, descobriu que a lente que ele havia criado como proteção para uma cirurgia a laser deixava o mundo mais vivo e saturado. Para alguns daltônicos, as lentes pareciam uma cura.
Com uma bolsa do NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos EUA), McPherson e Schmeder decidiram descobrir se as propriedades incomuns dessa lente poderiam ser utilizadas em óculos voltados para daltônicos.
“Eu criei um modelo matemático que nos permite simular a visão de uma pessoa com algum tipo de daltonismo”, disse Schemeder ao Gizmodo. “O que nós estamos perguntando é: se o olho de um daltônico, que possui certa estrutura, é exposto à essas informações espectrais, como isso altera sua percepção geral de cores?”
Com a ajuda dos resultados dos modelos, Schmeder e McPherson desenvolveram uma lente que filtra certos fragmentos do espectro eletromagnético; regiões que correspondem à áreas de alta sensibilidade dos cones M, L e C. “Nós removemos certos comprimentos de onda que correspondem à região com maior sobreposição de sensibilidade”, disse Schmeder. “Ao fazer isso, nós estamos criando uma barreira entre esses dois canais de informação.”
A resposta dos cones vermelhos, verdes e azuis, com as áreas em cinza indicando as regiões “filtradas” pelos óculos EnChroma. Crédito: EnChroma
A EnChroma não afirma que suas lentes irão ajudar os dicromatas, aquelas pessoas que não possuem cones M ou L. A empresa também não afirma ter encontrado uma cura. Na realidade, a empresa define seu produto como um “dispositivo de assistência”, um equipamento que irá ajudar os tricromatas anômalos — aqueles com cones M ou L que não captam o espectro de ondas luminosas correto — a enxergarem cores no espectro vermelho-verde.
Muitos usuários relataram mudanças drásticas em suas percepções de cor durante os testes dos óculos EnChroma. “Todos os verdes e vermelhos ficaram mais intensos”, disse um usuário anônimo durante uma das fases de testes. “Na verdade, quase todas as cores parecem mais intensas. O mundo fica muito mais interessante visualmente”. Outro usuário escreveu: “Eu nunca imaginei que ficaria tão emocionado com a habilidade de ver cores antes tão difíceis de diferenciar de forma vívida”.
Caso você esteja curioso sobre a experiência, dê uma olhada em alguns dos vários vídeos promocionais da EnChroma, nos quais uma pessoa daltônica testa os óculos e se impressiona com a vivacidade do mundo.
Mas alguns usuários não se impressionaram. “Eles não são piores que óculos de sol normais — algumas cores ficam mais destacadas, é verdade, mas não do jeito que eu esperava”, disse o jornalista Oliver Morrison ao Gizmodo. O relato de Morrison sobre sua experiência com os óculos, publicada na The Atlantic, salienta o desafio de definir se um dispositivo como esse funciona ou não. Segue um trecho da matéria:
Eu encontrei Tony Dykes, o diretor-executivo da EnChroma, na Times Square num dia cinzento e chuvoso, nossos olhos escondidos sob o revestimento espelhado de seus óculos. Eu descrevi para Dykes o que vi através de suas lentes: laranjas mais berrantes, luzes de freio mais visíveis, e luzes fluorescentes mais estouradas. Perguntei para ele se é assim que uma pessoa normal enxerga.
Dykes, ex-advogado e ótimo vendedor, respondeu rapidamente. “O processo não é imediato”, ele disse. “Seu cérebro está recebendo essas informações pela primeira vez.”
Talvez os óculos estivessem funcionando. Talvez trocar as cores com as quais eu já estava acostumado pelas cores reais não fosse uma experiência tão fantástica quanto eu esperava. Dykes perguntou se eu conseguia enxergar a diferença entre meus cadarços cinzas e o pequeno “N” rosa na lateral do meu tênis. “O ‘N’ é mais brilhante”, respondi. “Eu não sei se eu consigo diferenciar os dois por causa das cores ou por causa do brilho.”
Embora eu nunca tivesse confundido meu cadarço com o resto do meu tênis, eu percebi naquele momento que, antes que Dykes tivesse dito, eu não sabia que o “N” era rosa.
Jay Nietz, um especialista em percepção de cor da Universidade de Washington, acredita que o EnChroma está lucrando em cima de sua falta de objetividade. “Como as pessoas com daltonismo verde-vermelho nunca viram essas duas cores como as pessoas normais veem, elas são facilmente enganadas”, disse Nietz ao Gizmodo por email. “Se os óculos pudessem transmitir ondas luminosas, talvez eles funcionassem. Mas eles só conseguem bloquear ondas luminosas. É difícil dar uma nova percepção de cor quando se está tirando informações.”
Neitz acredita que a única forma de curar o daltonismo é através da terapia genética — em outras palavras, inserindo o gene de cones saudáveis nas retinas de pacientes daltônicos. Ele e a esposa passaram a última década usando manipulação genética para restaurar a visão de macacos daltônicos, e eles esperam começar os testes em humanos em breve.
Um macaco chamado Dalton, após a terapia genética, fazendo um teste de daltonismo. Dalton tinha dificuldade em diferenciar o verde do vermelho.
Mas se esses óculos não curam a visão dos daltônicos, qual é a explicação desses relatos positivos? Nietz suspeita que as lentes estão apenas alterando a luminosidade dos vermelhos e dos verdes.
“Se alguém fosse completamente daltônico, todas as ondas luminosas do arco-íris seriam iguais”, disse Nietz. “Se ele saísse na rua e visse um tomate verde e outro vermelho, eles seriam completamente indistinguíveis, porque para os nossos olhos, os dois emitem uma luminosidade igual. Mas se essa pessoa coloca óculos que filtram a luz verde, de repente, o tomate verde pareceria mais escuro. Duas coisas que sempre pareceram iguais agora são totalmente diferentes.”
“Não nego que as lentes EnChroma alterem a luminosidade das cores”, disse Schmeder em resposta ao Gizmodo. “Quando usamos os óculos, as cores mais fortes parecem mais claras. Esse é um efeito colateral das lentes.”
Mas de acordo com Schmeder, a cor cinza das lentes mantém o equilíbrio do brilho emitido pela cor verde e vermelha. Em outras palavras, ele afirma que nem todos os objetos vermelhos parecem mais brilhantes do que os objetos verdes.
No fim, a melhor forma de descobrir se os óculos funcionam como divulgado é através de testes. A EnChroma está usando resultados de pesquisas qualitativas para avaliar a eficácia de seu produto. A empresa também financiou alguns testes clínicos que utilizam o teste de daltonismo D15, no qual os voluntários têm que organizar 15 círculos coloridos cromaticamente (na ordem do arco-íris).
No teste de 100 tons de Munsell, os voluntários têm que organizar as cores dentro de cada coluna em uma sequência de mais clara para mais escura. As cores no final de cada coluna servem como base. Crédito: Jordanwesthoff / Wikimedia
Nos resultados compartilhados com o Gizmodo, nove voluntários fizeram uma pontuação maior no teste D15 — isso é, eles colocaram mais cores na ordem correta — com a ajuda dos óculos EnChroma. “O que fica claro nesse estudo é que nem todo mundo exibe o mesmo grau de melhoria, e que essa melhoria nem sempre está relacionada à severidade do daltonismo”, escreve a EnChroma. “No entanto, a situação de todos os voluntários melhora em algum nível, alguns deles do nível grave para um daltonismo leve, chegando até a uma visão normal.”
Mas ainda existe a preocupação de que usar um filtro colorido durante o teste D15 possa alterar o brilho relativo das cores, o que ajudaria os voluntários a terem resultados melhores. Para um teste mais objetivo, Nietz recomenda o anomaloscópio, no qual um observador precisa unir uma metade de um círculo, iluminado com luz amarela, à outra metade, iluminada com uma mistura de verde e vermelho. A claridade da parte amarela pode ser controlada, enquanto a outra metade pode variar entre verde puro e vermelho puro.
Imagem de um teste online que simula um anomaloscópio. Via colorblindness.com.
“Esse é o melhor teste para detectar falhas na percepção verde-vermelho”, disse Nietz. “O design do anomaloscópio permite diversos ajustes de brilho. Dessa forma, a diferença de brilho causada pelos óculos não ajudaria os daltônicos a terem resultados melhores.”
O segredo está na percepção?
Quer os óculos EnChroma estejam expandindo as cores do espectro verde-vermelho ou quer eles estejam criando um mundo mais saturado e com mais contraste, não há dúvida de que a tecnologia está ajudando alguns daltônicos.
“A maior vantagem de usar esses óculos é que eu estou mais inspirado”, disse o guitarrista Lance Martin, cliente da EnChroma. Martin, que vem usando os óculos todos os dias nos últimos meses, diz que experiências comuns, como observar placas na estrada ou olhar para as folhas das árvores espalhadas ao longo da rua, agora o enchem de fascínio e epifanias.
“Eu sempre vi as placas de estrada como um verde escuro, mas agora sei que elas têm um tom de verde que eu nunca vi antes”, disse. “Eu tenho caminhado mais, só para ver as flores. A inspiração é essencial para minha carreira, e para mim, ser inspirado pelo mundano é uma coisa incrível.”
O mundo das cores é, por definição, subjetivo. Mesmo entre aqueles que veem “normalmente”, não há como saber se nossos cérebros interpretam as ondas luminosas da mesma forma. Nós presumimos que as cores são universais, porque nós conseguimos distinguir uma da outra e nomeá-las segundo essas distinções. Se um par de óculos pode ajudar um daltônico a fazer o mesmo — independente se essa tecnologia cura ou não sua deficiência — nós teremos uma razão a menos para ver essa condição como uma desvantagem.
“Os daltônicos estão lutando para ter acesso à empregos dos quais eles são excluídos”, disse Schmeder. “Acredito que se analisarmos o problema de perto, poderemos criar uma solução que funcione para alguns casos. Mesmo que não possamos ajudar todo mundo, fomentar essa discussão já seria algo incrível”.
Imagem do topo: Frameri/EnChroma