Estações científicas na Antártida: assédio e violência sexual em pesquisas de campo

Desde 2013, vigora um código de conduta nas estações norte-americanas que proíbe expressamente abusos físicos e verbais, importunações, trotes ou intimidações. Mas há uma percepção de que as normas nem sempre são aplicadas
Antártida

Fabrício Marques – Revista FAPESP

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Assédio e agressão sexual são ameaças crônicas e persistentes para mulheres que atuam em estações de pesquisa na Antártida, de acordo com dois relatórios divulgados nos Estados Unidos e na Austrália. No final de agosto, a National Science Foundation (NSF), principal agência norte-americana de financiamento à ciência básica, anunciou os resultados de um estudo baseado em entrevistas e discussões com grupos focais, e também em perguntas respondidas on-line em 2021 por cientistas e pessoal de apoio que atuaram em bases de pesquisa do país no continente gelado de 2018 a 2020. Nessa enquete, 72% das mulheres mencionaram o assédio sexual como um problema em sua comunidade, ante 48% dos homens.

Para agressões sexuais, os índices foram de 47% para o público feminino e de 33% para o masculino. O documento mostra trechos de declarações coletadas dos entrevistados, sem revelar seus nomes. “Toda mulher que eu conhecia lá teve uma experiência de agressão ou assédio”, afirmou um deles.

Desde 2013, vigora um código de conduta nas estações norte-americanas que proíbe expressamente abusos físicos e verbais, importunações, trotes ou intimidações. Mas há uma percepção de que as normas nem sempre são aplicadas: apenas 26% das mulheres e 46% dos homens afirmaram que os infratores são responsabilizados. A base de McMurdo, que chega a receber mil pessoas no verão, concentrou a maioria das reclamações. “O relatório é mais chocante do que eu esperava”, disse à revista Science Helen Fricker, do Instituto de Oceanografia Scripps, vinculado à Universidade da Califórnia em San Diego, que já foi várias vezes à região. “Algumas pessoas falavam literalmente sobre serem estupradas.” Também à Science, Roberta Marinelli, chefe do Escritório de Programas Polares da NSF, disse que os resultados surpreenderam a agência: “Ainda estamos trabalhando para tentar entender como chegamos a esse ponto e como avançaremos”.

Em outubro, um outro levantamento, esse encomendado pela Divisão Antártica da Austrália, chegou a conclusões convergentes. Produzido pela socióloga Meredith Nash, da Universidade Nacional Australiana, o documento de 32 páginas reúne relatos de importunação sexual, contatos físicos indesejados, exibição de material ofensivo ou pornográfico, piadas sexistas, entre outros, nas quatro estações de pesquisa do país. Também destaca percalços quando as mulheres ficam menstruadas, como falta de privacidade e distribuição escassa de absorventes.

Em um comunicado, o secretário do Departamento de Mudanças Climáticas, Energia, Meio Ambiente e Água da Austrália, David Fredericks, considerou o conteúdo do relatório “decepcionante e inaceitável” e informou que algumas recomendações de Nash já começaram a ser implementadas, como a ampliação da presença feminina nas estações.

As denúncias na Antártida seguem um padrão comum ao de episódios de importunação e de violência sexual ocorridos em expedições científicas a lugares remotos, onde pesquisadores e estudantes convivem 24 horas por dia e as fronteiras entre o trabalho e a vida pessoal muitas vezes se dissipam. Em 2016, o paleoantropólogo norte-americano Brian Richmond renunciou ao cargo de curador da seção de Origens Humanas do Museu Americano de História Natural, em Nova York. Ele foi acusado de atacar uma aluna em um hotel em Florença e sofreu denúncias de comportamento inapropriado em trabalhos de campo no Quênia (ver Pesquisa FAPESP nº 251).

Em 2021, uma reportagem do site BuzzFeed trouxe o depoimento de 16 mulheres que trabalharam no Instituto de Pesquisa Tropical Smithsonian, na Ilha Barro Colorado, no Panamá, um laboratório no meio da selva onde mais de mil pessoas fazem estudos sobre mudanças climáticas, biodiversidade e evolução. Elas relataram investidas sexuais de pesquisadores em posições de chefia. As denúncias de importunação envolveram nomes como o do biólogo evolutivo Egbert Leigh e o ecólogo Edward Herre. Benjamin Turner, ex-líder do laboratório de geoquímica do instituto, foi acusado de estupro em 2011 por Sarah Batterman, hoje na Universidade de Leeds, na Inglaterra. Turner disse ao BuzzFeed que as relações que teve com colegas foram consensuais.

O combate ao assédio e à violência sexual resultou na definição de normas mais restritas de comportamento em expedições a lugares remotos e na criação de canais de denúncia de casos de má conduta. Mas há suspeitas de que muitos episódios nem sequer sejam denunciados. Um estudo publicado em 2014 na revista PLOS ONE por Kathryn Clancy, antropóloga da Universidade de Illinois Urbana-Champaign, nos Estados Unidos, entrevistou on-line 666 estudantes e pesquisadores, na maioria mulheres, que participaram de pesquisas de campo de diversas áreas. Quase metade da amostra era de antropólogos, mas também havia arqueólogos, biólogos e geólogos, entre outros. Das 512 mulheres que responderam a uma pergunta sobre ocorrência de assédio sexual, 70,5% responderam positivamente para esse tipo de experiência. Mas apenas 67 entrevistadas declararam ter reportado a importunação.

Novas abordagens para enfrentar o problema baseiam-se em reforçar o planejamento de expedições, de modo a prevenir situações vulneráveis, e em fornecer treinamento para lidar com possíveis casos. “As pessoas não têm ideia do que fazer”, disse à revista Undark a ecóloga marinha Melissa Cronin, diretora do grupo “Construindo um futuro melhor para o trabalho de campo”, que organiza workshops e oferece capacitação nessa área. “O objetivo do treinamento é auxiliar os participantes a estabelecer climas positivos nos ambientes de pesquisa de campo.”

Desde 2018, o grupo já realizou mais de 300 treinamentos com cerca de 5 mil pessoas. Os workshops têm 90 minutos de duração e ressaltam a importância da organização das viagens e da discussão prévia de normas de convivência. O conteúdo aborda desde questões logísticas, como fazer arranjos para distribuição das pessoas em dormitórios ou tendas a fim de evitar situações suscetíveis à noite, até a criação de protocolos de comunicação para garantir que os membros monitorem a segurança uns dos outros ou peçam ajuda se precisarem. Outras recomendações envolvem a adoção de regras de respeito à privacidade e relativas ao uso de álcool e drogas.

O workshop apresenta um cardápio de situações capazes de favorecer o assédio ou a agressão sexual, que suscitam discussões sobre como evitá-las ou reagir a elas. Em um dos casos concretos, os estudantes são convidados a refletir sobre o que fazer caso alguém beba demais em uma festa em um navio de pesquisa, perca a consciência e vá ser assistido privadamente por uma pessoa com que não tem relação de amizade ou familiaridade. Em outro caso, uma participante de uma expedição a um local remoto aparece chorando à noite, dizendo ter sido estuprada pelo chefe do grupo. Embora ressaltem a importância de estratégias de prevenção, os workshops trazem recomendações para lidar com situações críticas, como dispor de um protocolo de atendimento de emergência também a vítimas de estupro e preservar evidências para uma investigação criminal.

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