Área no norte de Minas Gerais está no período mais seco dos últimos sete séculos
Texto: Marcos Pivetta/Revista Pesquisa Fapesp
A composição química de duas formações rochosas compridas e de superfície arredondada (estalagmites) encontradas no piso da Caverna da Onça, no vale do Peruaçu, um tributário do rio São Francisco, sugere que o norte de Minas Gerais enfrenta atualmente sua época mais seca dos últimos 720 anos. Um estudo coordenado por geólogos reconstituiu o clima do passado na região por meio da análise de isótopos (formas) de oxigênio e carbono obtidos de amostras desse par de estalagmites. A água que goteja do teto da gruta é rica em cálcio e carbonato e dá origem às formações, as estalagmites.
A partir da proporção dos diferentes isótopos armazenados nas rochas, é possível inferir parâmetros do clima de centenas e até milhares de anos atrás, como volume de chuvas e evaporação (esse último parâmetro é diretamente influenciado pelo aumento de temperatura). Foi isso que, inicialmente, os pesquisadores fizeram. Em seguida, compararam os dados mais antigos com registros meteorológicos e climatológicos de localidades vizinhas à caverna e concluíram que, desde os anos 1970, a área enfrenta uma crescente aridez. Entre 1979 e 2016, a cada década, as chuvas totais reduziram-se em 7%, cerca de 70 milímetros (mm), a evapotranspiração aumentou 18% (125 mm), e a vazão dos rios locais caiu 20%. A temperatura média da região subiu 2 graus Celsius (ºC) nos últimos 250 anos.
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“A chuva não consegue mais acompanhar a demanda atmosférica por água em razão do aumento da evaporação associada às temperaturas crescentes nas décadas mais recentes”, comenta o geólogo Nicolas Strikis, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP), autor principal do estudo, publicado no final de fevereiro na revista científica Nature Communications. Por meio de modelos computacionais, a equipe também simulou como seria o clima na região em um cenário sem aumento dos gases de efeito estufa na atmosfera. Concluiu que o déficit hídrico ali só pode ser explicado quando se leva em conta os efeitos do aquecimento global, um processo induzido majoritariamente por atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis e mudanças no uso da terra (corte de áreas verdes para abrir espaço para outras atividades).
O estudo só foi possível porque a Caverna da Onça, situada em terras do município de Januária, apresenta condições particulares e está localizada em uma área com registros meteorológicos antigos para os padrões brasileiros, dos últimos 110 anos. A gruta é bem ventilada e fica no fundo de um vale, um cânion, com 200 metros (m) de profundidade. Sua entrada é aberta para o ambiente externo por meio de um buraco de 50 m de largura por 10 m de altura. As amostras das duas estalagmites utilizadas no estudo provêm dessa área que conecta o interior da cavidade com o clima do mundo de fora.
A umidade relativa do ar ali varia entre 50% e 100% e as temperaturas entre 17 ºC (inverno) e 25 ºC (verão). “São raros os estudos feitos em uma caverna assim”, conta o geólogo Francisco Cruz, também do IGc-USP, coordenador de um projeto financiado pela FAPESP que apoia o trabalho. “Normalmente, trabalhamos em cavernas mais fechadas, onde a umidade e a temperatura são quase constantes e a atmosfera local representa apenas o ambiente interno, não o externo.”
Outra particularidade é o baixo grau de perturbação do entorno da gruta. Inserida nos domínios de uma Unidade de Conservação federal, o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, a caverna está em um fundo de vale, no pé de montanhas, onde não há atividades agrícolas ou de pecuária. O clima local, portanto, não é significativamente perturbado por atividades humanas vizinhas.
Isso reforça a ideia de que os resultados das análises químicas com as amostras de rocha provenientes da entrada da caverna refletem o clima externo da região sem grandes influências de atividades antrópicas locais. “Apenas as condições naturais da região não explicam nossos dados”, comenta a meteorologista Marília Harumi Shimizu, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), também coautora do trabalho. “O estudo mostra que é preciso levar em conta também o aumento planetário das emissões de gases de efeito estufa para entender
as secas de longo prazo em regiões do leste da América do Sul.”
Projeto
Pire: Educação e pesquisa em clima das Américas usando os exemplos de anéis de árvores e espeleotemas (Pire-Create) (nº 17/50085-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Francisco William da Cruz Junior (USP); Investimento R$ 7.247.472,50.
Artigo científico
STRIKIS, N. M. et al. Modern anthropogenic drought in Central Brazil unprecedented during last 700 years. Nature Communications. 26 fev. 2024.