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A luta pelo topo de uma montanha sagrada irá moldar o futuro da astronomia

O Telescópio de Trinta Metros – um megatelescópio com resolução dez vezes maior do que o Hubble – até agora não saiu do papel por um problema com nativos.

Durante anos, parecia que o futuro do Telescópio de Trinta Metros estava claro como as estrelas. O enorme observatório de ponta exploraria o nascimento das galáxias e buscaria sinais de vida em em planetas alienígenas do topo do vulcão dormente Mauna Kea, um dos melhores lugares do mundo para estudar o céu.

Mas no ano passado, quando o time por trás do telescópio calmamente anunciou que haviam encontrado um local alternativo na ilha espanhola de La Palma, ficou claro que existem mais coisas nessa vida do que até mesmo os donos de um telescópio gigante podem prever.

O Telescópio de Trinta Metros (TTM) talvez não seja construído no Havaí, o mais recente desenvolvimento de uma amarga luta sobre a localização dessa colossal máquina, cujos objetivos incluem achar a primeira luz do começo do universo, vem a um preço. Para os nativos do Havaí que tem no Mauna Kea um lugar sagrado, o observatório de 55 metros de altura seria uma profanação, e é por isso que estão se opondo a ele na justiça.

O destino do telescópio vai ser decidido em tribunal no começo desse ano. Se o TTM acabar se mudando para as Ilhas Canárias na Espanha, será uma grande vitória para os críticos do projeto, cuja oposição ao desenvolvimento do Mauna Kea para a astronomia não foi escutada nas últimas décadas. (O topo da montanha já é o lar de treze observatórios de nível mundial).

Mas mudar o local do TTM seria uma perda para a ciência? Essa é a pergunta de bilhões de dólares que os astrônomos estão enfrentando, e como em cada faceta do debate sobre esse telescópio, não existe uma resposta clara e segura.

Um conceito artístico do Telescópio de Trinta Metros, cortesia do TMT International Observatory

Tirando as condições de observação de estrelas, o timing da construção do telescópio é crucial. Sua localização pode ditar seu uso de formas que, pro bem ou pro mal, formarão o futuro da astronomia. Por fim, se o TTM se mudar ou ficar onde planejado, vai causar efeitos colaterais entre a comunidade científica e os havaianos nativos.

Um observatório de US$ 1,4 bilhão com um espelho primário de 30 metros, o TTM é uma colaboração internacional impressionante financiada pelo Japão, China, EUA, Canadá e Índia, e parcialmente financiada por ONGS, Universidade da Califórnia e Caltech. Quando pronto, o observatório terá 12 vezes mais resolução que o famoso telescópio espacial Hubble, com ótica especialmente boa no espectro infravermelho usado para estudar objetos com sinal fraco como planetas exteriores e para captar a luz do começo do universo.

Junto com dois colegas no hemisfério sul, o European Extremely Large Telescope (E-ELT) e o Giant Magellan Telescope (GMT) em construção no momento no Chile, espera-se que o TTM inaugure uma nova era na astronomia, uma que permita aos cientistas estudar as estruturas escondidas do universo e detectar as digitais da vida na atmosfera de mundos longínquos. O TTM, E-ELT e o GMT são coletivamente chamados de telescópios “extremamente grandes” por causa do seu tamanho. Mas o nome também descreve bem sua missão, que é responder algumas das maiores questões que os humanos já se colocaram.

O motivo dos astrônomos quererem construir o TTM no Mauna Kea é simples. “O Mauna Kea é um dos melhores lugares para estudar as estrelas no hemisfério norte”, disse Fiona Harrison, uma professora de física e astronomia na Caltech que faz parte do conjunto de governadores do telescópio.

O conflito costuma ser, erroneamente, pintado como uma luta entre a ciência e religião. Mais precisamente para os oponentes do telescópio, é uma luta contra o colonialismo.

A oitava montanha mais alta do sistema solar, e a mais alta da Terra se for medida de sua base submersa, Mauna Kea se expande sobre as nuvens, seus picos cobertos de neve formam uma ilha celeste de 4.250 metros que parece um mundo isolado das paisagens tropicais abaixo. Sem nenhuma poluição de luz, pouco vapor e apenas uma rala atmosfera para interferir, a visão de Mauna Kea do céu é tão clara e intocada quanto possível. O topo do Mauna Kea também é frio, um bônus para o uso de infravermelho, cujo trabalho é procurar por leves fontes cósmicas de calor.

E o mais importante, graças às peculiares dinâmicas atmosféricas que ocorrem quando se coloca um vulcão no meio do Pacífico, a turbulência aérea no topo do Mauna Kea é excepcionalmente pequena.

“As estrelas não cintilam tanto”, disse Guenther Hasinger, diretor do Institute for Astronomy na Universidade do Havaí. “Isso nos dá um sinal melhor do que em qualquer outro lugar do mundo”.

“Todas as imagens são mais precisas e tem maior resolução, se você tem menor turbulência”, acrescentou Nick Suntzeff, um astrônomo da Texas A&M University que esteve envolvido na seleção de local para os observatórios no Chile.

Um havaiano que se opõe à construção do Observatório de Trinta Metros toca uma corneta de concha perto do topo do Mauna Kea em Agosto de 2015. Imagem: Caleb Jones/AP

Não é de espantar que o Mauna Kea tenha atraído cientistas de todo o mundo. Mas bem antes desse topo de montanha ser lar de observatórios modernos, era o templo de outra tradição celestial. Durante séculos, os havaianos viajam para o topo dessa montanha atrás de sabedoria e conexão com seus deuses, para enterrar seus ancestrais, e para aprender como navegar por meio das estrelas. Como Kealoha Pisciotta da organização de havaianos nativos Mauna Kea Hui já disse ao Gizmodo, aos olhos de seu povo o Mauna Kea “não é um lugar dos humanos, mas um lugar onde nós vamos aprender os caminhos celestes”.

Para muitos havaianos, o Mauna Kea é um local sagrado que deve ser deixado intocado. Mas desde os anos sessenta, o desenvolvimento do topo da montanha para a astronomia tem passado por cima dessa visão, diversas vezes. O conflito costuma ser, erroneamente, pintado como uma luta entre a ciência e religião. Mais precisamente para os oponentes do telescópio, é uma luta contra o colonialismo, que tem transformado a vida na Ilha Grande desde que os Estados Unidos derrubou o soberano e mundialmente reconhecido Reino do Havaí ao final do século XIX. Para alguns, os observatórios de Mauna Kea simbolizam a invasão ideológica do ocidente, também pelo fato de estarem ocupando o mais antigo e significativo símbolo da espiritualidade nativa.

Outros mostraram preocupações mais materiais com os telescópios, por exemplo o manuseio da água de esgoto e materiais perigosos, impacto em cemitérios ancestrais e na interferência dos observatórios com a significância espiritual do topo da montanha. Essas são preocupações com fundamento: as primeiras construções não se preocuparam com a importância religiosa e cultural da montanha, derrubando templos familiares e cemitérios.

Incidentes envolveram o derramamento de químicos cáusticos e industriais, por mais que sejam pouco relatados, deixaram alguns protetores das terras atentos. Mas talvez a arma mais significativa no arsenal dos críticos seja uma avaliação de impacto ambiental feita pela NASA antes da construção do Outriggers Telescope Project em 2004. Que avaliando a repercussão entre a comunidade nativa havaiana, concluiu que “de uma perspectiva cumulativa, o impacto passado, presente e futuro das atividades nos recursos culturais e biológicos no Mauna Kea é substancial e adversa”.

Vista aérea dos observatórios no topo do Mauna Kea, Imagem: Tim Wright/AP

Junto com a carga histórica, não é de surpreender que o TTM, que seria o décimo quarto observatório na montanha, e o maior, enfrentou opositores desde o início. Para dar crédito ao observatório, seus líderes tem tentado abordar os havaianos nativos desde o começo e mais do que nunca, tendo ido a centenas de reuniões comunitárias para mostrar e discutir seu trabalho, e remodelando o observatório de forma que minimize o impacto visual e físico na montanha.

Mas para alguns oponentes, esses gestos de reconciliação são pequenos e vieram tarde de mais. Isso pode ser visto em 2014 quando dezenas de manifestantes impediram equipes de construção do TTM de ir ao topo da montanha. Rapidamente, o movimento de oposição conseguiu atenção internacional, atraindo aliados ao redor do mundo.

Enquanto isso, os Hui tomaram ações legais contra o telescópio, alegando que a Hawaii’s Board of Land and Natural Resources (BLNR) havia violado o processo adequado ao conceder a licença de construção em área de proteção, antes de permitir que os opositores expressassem suas posições. Em dezembro de 2015, a Corte Suprema do Havaí decidiu que os Hui tinham razão.

“Simplesmente, o Conselho colocou o carro na frente dos bois quando concedeu a licença antes de uma audiência que foi requisitada ter sido analisada”, a decisão da corte diz. “De acordo, a licença não tem mais vigor”.

Agora, uma audiência está finalmente acontecendo. Mas sem garantias quanto ao resultado, o futuro do TTM no Havaí está longe de estar assegurado, mesmo quando aqueles que apoiam a astronomia no Mauna Kea continuem a fazer concessões. (Em 2015, o governador David Ige prometeu remover ao menos três dos 13 observatórios da montanha até o começo dos anos 2020. No mesmo ano, a Universidade do Havaí concordou que o TTM seria o último observatório a ser construído na montanha).

No meio da incerteza, o conselho do telescópio começou a analisar novos locais no ano passado.

“Atrase um projeto desses alguns anos, e você pode simplesmente perder o Prêmio Nobel”.

“Mauna Kea continua a ser o nosso local preferido para o telescópio”, Harison diz. Mas, ela adicionou, “para ser competitivo cientificamente em termos de fazer o telescópio funcionar, e pelo aumento dos custos do projeto com a mudança das datas, nós começamos esse esforço significativo em considerar locais alternativos”.

Depois de meses de discussão, o TTM reduziu essas alternativas a três lugares: uma montanha em Baja Califórnia, México, La Palma nas Ilhas Canárias Espanholas, e um local bem elevado no Chile. Se mudar para o hemisfério sul logo foi descartado, já que deixaria o hemisfério norte sem um observatório dessas proporções.

Eventualmente, o conselho decidiu La Palma, principalmente pelo pico da ilha, Roque de los Muchachos, já ser o lar de um dos maiores observatórios do mundo. Se o TTM virar seu vizinho, a infraestrutura que já existe em La Palma vai ajudar consideravelmente no tempo de construção do telescópio.

A maioria dos astrônomos concorda que La Palma é um local inferior para observar estrelas. Roque de los Muchachos é bem menos alto, um pouco menos de 2.400 metros de altura, o que significa que o ar é mais denso, mais quente e menos ideal para observações de certas partes do espectro, incluindo os comprimentos de onda azuis e ultravioleta. Existem noites mais úmidas nas quais o telescópio não tem uma visibilidade tão boa. A turbulência atmosférica é maior.

Mas apesar dos empecilhos, La Palma continua sendo um local excelente para a astronomia. Harrison, por sua vez, firmemente acredita que a ciência do TTM não vai sofrer muito se o telescópio mudar de local. “Nós vamos precisar ter datas mais flexíveis”, ela disse, “mas o TTM ainda pode alcançar seus objetivos científicos [em La Palma]”.

Corrida pela observação

A Via Láctea perto do topo do Mauna Kea. Imagem: Mark Ireland/Flickr

O fato do TTM mostrar ser simpático em se mudar para um lugar a meio mundo de distância é pontuado por outro fator crucial: não onde o telescópio é construído, mas quando. O conselho está tentando desesperadamente se manter a uma data limite para a construção em abril de 2018. Porém mais importante que isso, se a construção atrasar ainda mais, existe o risco do TTM ser ultrapassado por seus colegas do hemisfério sul, que deverão ser inaugurados em 2024.

Ficar para trás pode significar que o TTM perca algumas oportunidades importantes. Por exemplo, dos seus colegas do sul observarem primeiro as atmosferas de planetas externos rochosos parecidos com a Terra. Pode ser o primeiro instrumento feito pelo homem a encontrar sinais definitivos de biosfera alienígena.

“Você quer ser parte dessa descoberta”, Suntzeff disse. “Não somente pela glória, mas porque é uma coisa muito boa para a história da humanidade”.

“Existe competição, obviamente”, disse Marc Sarazin, um astrônomo do European Southern Observatory que já fez extensas pesquisas de local no Chile. “Nós colaboramos, mas o primeiro [desses telescópios] a ver o céu vai fazer grandes coisas. Atrase um projeto desses alguns anos, e você pode simplesmente perder o Prêmio Nobel”.

Além das descobertas históricas, qualquer decisão quanto ao posicionamento do TTM pode ter um efeito gigantesco em quem comandará a astronomia na próxima década. A Universidade do Havaí há muito se beneficia de ter uma gama de telescópios de nível mundial ao seu lado: com 10% do tempo de observação estando à disposição do estado, foi capaz de atrair algumas das mentes mais brilhantes do campo. Além de criar empregos locais, os observatórios de Mauna Kea são grandes fontes de renda para o estado, gerando aproximadamente U$ 60 milhões em impostos em 2012, de acordo com o relatório de 2014.

Mauna Kea “não é um lugar dos humanos, mas um lugar onde nós vamos aprender os caminhos celestes”.

“Sem o TTM, eu acho que ainda temos alguns dos melhores na montanha e vamos ser os melhores do mundo por pelo menos uma década”, Hasinger disse. “Mas acho, se o TTM não vier para o Havaí, seria um efeito grande na astronomia futura aqui”.

A Espanha tem sentimentos distintos quanto à potencial mudança do TTM para lá. “O IAC adoraria receber o TTM dentre seus observatórios se finalmente ele não puder ser construído no Havaí”, disse Rafael Rebolo López, o diretor do Instituto de Astrofisica de Canarias (IAC), que comanda os observatórios das ilhas de Tenerife e La Palma. “O TTM ofereceria a oportunidade de extraordinárias descobertas científicas para o IAC e para a astronomia espanhola como um todo”.

“Sem dúvida, a localização das Ilhas Canárias se acrescentaria à colaboração de astrônomos espanhóis além dos da Califórnia, Canadá, Japão, China e Índia”, López acrescentou. “Nós já fazemos parte de muitas colaborações internacionais em astrofísica… E nós damos valor a como essa colaboração é crucial para o desenvolvimento das nossas próprias pesquisas astrofísicas”.

“Você precisa entender, nós gastamos décadas em reuniões com centenas de pessoas, pedindo que parassem de fazer outros desenvolvimentos”

Por fim, existe outro grupo importante a ser considerado em tudo isso, os nativos do Havaí esperando para ver se o décimo quarto observatório será construído em sua montanha sagrada. Devemos notar que cerca de metade desses homens e mulheres, 46%, de acordo com uma pesquisa recente, apoiam a construção do TTM. Outros 45% se opõe.

“Você precisa entender, nós gastamos décadas em reuniões com centenas de pessoas, pedindo que parassem de fazer outros desenvolvimentos”, Pisciotta um ex-operador de telescópio com grandes laços com a comunidade astronômica do Havaí disse. “Não estamos nos opondo à ciência, mas estamos nos opondo à ciência atropelar tudo mais”.

Alguns astrônomos expressaram visões parecidas. “Enquanto astrônomo, eu espero que os astrônomos e os nativos havaianos possam dividir a montanha”, Suntzeff disse. “Mas grande parte dos direitos humanos está em respeitar e entender as culturas das pessoas que vivem em um lugar há muito tempo”.

“Eu acho que historicamente, a comunidade não fez um bom trabalho em lidar com a preocupação dos nativos havaianos”, diz John O’Meara, um astrofísico do St. Michael’s College, que se coloca como “em grande parte apoiador” do local alternativo do telescópio nas Ilhas Canárias, enquanto prefere o Mauna Kea. “Em anos recentes, eu acho que o TTM ajudou a reverter o curso de uma forma muito mais colaborativa”.

“Posto isso”, ele continua, “não podemos ignorar a importância do Mauna Kea para os havaianos, e devemos nos assegurar que qualquer construção futura na montanha (se existir) tenha o menor impacto possível”.

Por fim, mudar o local do TTM pode ajudar a reconstruir a confiança entre as duas comunidades cujos céus intocados do Mauna Kea são uma imensa fonte de sabedoria celestial? “Eu acho que as pessoas são bem abertas e querem ter uma relação melhor”, Pisciotta diz. “Mudar esse telescópio seria um passo na direção certa”.

Quanto ao que esse resultado pode significar para a astronomia, Suntzeff sumarizou sucintamente. “Eu não consigo dar um número para a vantagem de colocar um telescópio no melhor local do mundo”, disse. “Mas existe uma vantagem”.

Imagem do topo – Ilustração: Jim Cooke/Gizmodo.

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