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Beatles sem medo de tecnologia: da fita ao contrário à IA na última música

Lançada nesta quinta-feira (2), "Now And Then", a "última música" do quarteto contrariou muitos fãs pelo uso de IA para resgatar uma fita de John Lennon. Mas a banda sempre abraçou novidades que enriquecessem sua obra
Imagem: Divulgação/The Beatles

The End. Desta vez, de verdade. Nada mais resta de novo na gaveta para lançar como música inédita. Oficialmente subtitulada “The Last Beatles Song”, saiu neste 2 de novembro a canção lenta e reflexiva “Now and Then” – baseada numa fita demo gravada domesticamente por John Lennon por volta de 1978.

O que atrai a atenção é que a nova faixa foi criada com ajuda de inteligência artificial (IA) para limpar o áudio original de Lennon registrado em mono (um só canal) e qualidade embolada. A IA deu à gravação condições de receber outros instrumentos dos outros Beatles e se transformar numa faixa de qualidade profissional.

“Now and Then” chega ao público com pelo menos 28 anos de atraso. A música deveria ter entrado na trilogia “Anthology” em 1995 ou 1996. Mas foi rejeitada porque a melhora dos vocais e piano de Lennon não foram satisfatórios com o equipamento de estúdio disponível na época.

Ouça “Now And Then” abaixo:

Agora, a entidade Beatles (Paul McCartney e Ringo Starr, os dois sobreviventes) aproveitou o mesmo uso de inteligência artificial (IA) que o diretor Peter Jackson aplicou para obter o documentário-série “Get Back”, de 2021.

Jackson e sua equipe conseguiram trabalhar com os filmes com áudio em mono dos quais foi extraído o filme “Let It Be” (1970), que registrava os Beatles em processo de criação de um álbum.

 

Com IA, a equipe sonora de Jackson conseguiu isolar todos os instrumentos, todos os vocais e todas as conversas nos intervalos, chegando a um som límpido e atual que provavelmente seria impossível de obter de forma análoga ou mesmo com recursos digitais mais tradicionais.

Paul e Ringo decidiram retomar “Now and Then” e, em 2022, passaram a fita de Lennon para a equipe de Peter Jackson limpar e isolar o vocal e o piano em canais individuais.

A inteligência artificial permitiu limpar a gravação em fita cassete de “Now and Then” feita por Lennon (morto em 1980), resgatar o trabalho de guitarra de George Harrison (morto em 2001) e ter McCartney e Starr gravando novamente suas partes.

Também foi incluída uma orquestração sob comando de Giles Martin, produtor e filho de Sir George Martin. Giles é o responsável pela remasterização digital dos álbuns dos Beatles relançados em edições de luxo no século XXI.

O canal oficial dos Beatles no YouTube divulgou na quarta (1/11) um curta-metragem de 12 minutos sobre o processo de trabalho em “Now and Then”:

A persistência com essa música tem uma possível explicação. Na última conversa em que os dois parceiros tiveram (por telefone, no começo de 1980), John Lennon se despediu de Paul McCartney com uma frase: “Think about me every now and then, old friend” (“Pense em mim de vez em quando, velho amigo”).

Para o lançamento, o sentido literal “agora e antigamente” funciona perfeitamente, “Now and Then” serve para puxar o relançamento das coletâneas de sucessos “The Beatles / 1962-1966” (a vermelha) e “The Beatles / 1967-1970” (a azul), remasterizadas e com inclusão de mais músicas. Inclusive esta de 2023.

A saga de “Now and Then”

A gravação original com voz e piano de John Lennon, feita em seu apartamento em Nova York, era um dos rascunhos de canções que ele registrou no fim da década de 1970 presentes na fita que sua viúva Yoko Ono deu a Paul em 1994.

A intenção era que os três Beatles então vivos transformassem as composições em faixas de qualidade profissional para a trilogia de coletâneas “Anthology”, cujos CDs viriam a ser lançados em 1995 e 1996.

Com a recuperação sonora das fitas de Lennon com o melhor equipamento digital de estúdio disponível na época, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr acrescentaram suas partes de instrumentos e vocais, e criaram arranjos para sustentar a melodia-guia deixada por Lennon.

Na mesa de som, o produtor não era Sir George Martin, o responsável dessa função nos discos dos Beatles dos anos 1960. A função ficou com Jeff Lynne, ex-líder da banda Electric Light Orchestra e ex-membro do supergrupo Traveling Wilburys junto a Harrison, Bob Dylan, Tom Petty e Roy Orbison.

A missão de Lynne era deixar o resultado final redondinho e profissional, criando a ilusão de que Lennon gravou junto aos velhos companheiros em 1995, como nos velhos tempos.

Em “Free As a Bird”, lançada no “The Beatles Anthology 1”, no fim de 1995, a mágica do estúdio deu certo. Um clipe caprichado com montagens em cima de fotos, vídeos e elementos visuais da história do grupo ajudou a música a fazer sucesso.

A voz um pouco embolada de Lennon foi tratada com efeitos que conferiam uma sensação de sonho. Os outros Beatles também compuseram uma ponte (“Whatever happened to / the life that we once knew”…) que não existia no original de John.

Em “The Beatles Anthology 2”, de 1996, a dose foi repetida com “Real Love”, que não teve o mesmo impacto. A canção ficou adocicada demais e, curiosamente, não era inédita. A demo original de Lennon já havia sido incluída na trilha do documentário “Imagine”, de 1988, e é mais emocionante que a versão beatle.

Entra em cena “Now and Then”. Tudo indicava que essa seria a música reformada que abriria “The Beatles Anthology 3”, também em 1996.

Harrison gravou sua guitarra, Paul gravou o baixo, Ringo mandou ver na bateria. Mas o isolamento e tratamento dos vocais e piano de Lennon não davam certo de jeito nenhum. O som das teclas encobria a voz em várias partes.

“Now and Then” não ficou boa e acabou engavetada. O critério de qualidade dos Beatles sempre foi alto, o que explica muito o sucesso que alcançaram..

No lugar que seria de “Now and Then”, entrou uma bem esquecível peça orquestral composta por Sir George Martin chamada “A Beginning”.

Toda essa operação de aproveitar fitas caseiras de John Lennon para reformá-las no estúdio profissional preparou o terreno para aproveitar em 2023 tudo que a inteligência artificial pode proporcionar de bom.

Mas fazer uso desses recursos (seja truques de estúdio, seja IA) requer uma cabeça aberta para a evolução tecnológica e o talento para aproveitar as inovações criativamente, sem deixar preguiçosamente que a ferramenta faça tudo sozinha e friamente.

A curiosidade e a desenvoltura de se aproveitar do que era novo sempre estiveram presentes nos Beatles desde os anos 1960.

Sopa de fitinhas dos Beatles

Quando os novatos Beatles gravaram seu primeiro disco (“Love Me Do”) em 1962, o padrão era: o artista gravava o que o produtor mandava, os músicos gravavam tocando ao mesmo tempo no estúdio, a mesa de som de dois canais permitia no máximo gravar vocais separadamente depois ou fazer minúsculas correções em um instrumento, quase sempre a guitarra.

Ao ganharem cada vez mais fama e sucesso nas paradas, os Beatles se beneficiaram no estúdio graças à relação de amizade que desenvolveram com o produtor George Martin.

Buliçosos e sem dogmas, sempre queriam ter algum detalhe novo em suas músicas e, com seu conhecimento técnico, Martin (e seus engenheiros de som) facilitavam o caminho.

A experimentação ia desde o uso de um novo pedal de volume ou uma distorção fuzz, uma cítara indiana, piano elétrico, vozes dobradas artificialmente… Ou gravar uma microfonia de propósito (até então um pecado mortal pelos manuais de qualquer estúdio profissional de grande gravadora), como na abertura de “I Feel Fine”, de 1964.

Muito do que os Beatles testaram pela primeira vez foi absorvido pela indústria da música e, de certa forma, ainda estão em uso na era digital.

Foi em 1966 que os Beatles desabrocharam tecnologicamente. Começaram a ter a atitude de se concentrar mais no trabalho em estúdio e fizeram suas últimas turnês exaustivas que tomavam tempo e energia.

Também contaram com um novo engenheiro de som para auxiliar o produtor George Martin: o jovem Geoff Emerick, que viria a descobrir as melhores e mais inusitadas soluções para atender aos pedidos técnicos dos Beatles.

Quando Lennon pediu que sua voz se parecesse com o Dalai Lama falando do alto do Himalaia na nova composição “Tomorrow Never Knows”, Emerick quebrou a cabeça e teve a ideia de fazer a captação do microfone passar pelos alto-falantes giratórios de um órgão Leslie, possibilitando um efeito de ˜mergulho” para os vocais.

“Tomorrow Never Knows” também foi encorpada pelas fitas em loop com sons inusitados (vidros tilintando, algo que parecia gaivotas cantando…) que Paul McCartney fez em casa num gravador de rolo e levou para o estúdio.

Num playback, os Beatles e a equipe da sala de controle brincaram de tocar essas fitas aumentando e abaixando os controles da mesa de som enquanto rolava a gravação básica previamente registrada por John Lennon na guitarra e Ringo Starr na bateria.

Ousado, Emerick também violou regras do estúdio Abbey Road e aproximou os microfones na captação de amplificadores e do bumbo da bateria, abandonando o padrão de captação do ambiente.

Um erro cometido em casa por Lennon gerou outro grande truque dos Beatles em 1966: a fita tocada ao contrário.

Absoluto incompetente com qualquer coisa técnica, talvez incapaz até de trocar pilhas de um rádio, John colocou os rolos de fita em seu gravador na ordem inversa e ouviu sons ao contrário. Prestou atenção especialmente em sua voz, que parecia cantar num idioma asiático.

No dia seguinte, John chegou a Abbey Road empolgado e insistiu que sua voz fosse usada ao contrário na música “Rain”, que sairia em compacto. Como ele não aceitou os argumentos de que aquilo era um erro técnico (outro pecado nos manuais de estúdio), um pequeno trecho de sua voz invertida foi incluído na parte final de “Rain”.

George Harrison adorou a ideia e quis que seu solo em “I’m Only Sleeping” fosse tocado de trás pra frente. Depois de decorar as notas que queria, gravou o solo normal para que ele fosse invertido na mixagem. O resultado combina com o clima preguiçoso da letra de Lennon.

Em 1967, outra novidade que os Beatles abraçaram na primeira hora foi o mellotron, um sintetizador primitivo para os padrões de hoje que utilizava instrumentos pré-gravados em fita. O músico poderia tocar sua melodia com o timbre pré-gravado de algum instrumento ou usar um trecho inteiro guardado no mellotron.

Do mellotron saiu a introdução de “flautas” de “Strawberry Fields Forever” tocada por Paul McCartney. E o violão flamenco da abertura de “The Continuing Story of Bungalow Bill”, do “Álbum Branco” de 1968.

O álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” tem inventividade para tudo que é lado. Mas a história mais curiosa é a dos órgãos de circo de “Being for the Benefit of Mr. Kite”. George Martin gravou uma fita com trechos desse tipo de teclado retirados de discos do acervo de Abbey Road.

Depois, picotou a fita que fez em pedacinhos e jogou para o alto como se fossem confetes. Finalmente, foi recolhendo e emendando um pedaço aleatório em outro até formar um loop com som de órgão circense, mas sem uma melodia identificável. Essa sopa de fitinhas deu todo o clima que John Lennon queria para a música.
Os Beatles provaram que fazer discos bons requer muito mais que apenas tocar instrumentos.

 

Marcelo Orozco

Marcelo Orozco

Jornalista que adora música, cultura pop, livros e futebol. Passou por Notícias Populares, TV Globo, Conrad Editora, UOL e revista VIP. Colaborou com outros veículos impressos e da web. Publicou o livro "Kurt Cobain: Fragmentos de uma Autobiografia" (Conrad, 2002).

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