Borboleta amazônica surgiu do cruzamento entre duas espécies
Texto: Laura Segovia Tercic/Revista Pesquisa Fapesp
Um grupo de pesquisadores de vários países revelou que a borboleta Heliconius elevatus, da Amazônia, é uma espécie de origem híbrida. O achado, publicado este mês na revista Nature, dá razão a uma antiga desconfiança sobre algumas espécies de borboletas terem surgido da mistura entre outras.
A espécie, descrita em 1901 pelo naturalista alemão Emil Nöldner, é fruto do cruzamento entre outras duas do mesmo gênero, H. pardalinus e H. melpomene. A hibridização aconteceu há cerca de 180 mil anos, segundo as análises genéticas. As três espécies estão espalhadas por toda a extensão da floresta amazônica.
O cruzamento entre espécies evolutivamente próximas costuma ocorrer na natureza, mas raramente origina descendentes férteis que permanecem por várias gerações. A tendência é que a composição genética da potencial nova espécie seja diluída nas gerações seguintes, por cruzarem de volta com uma ou com ambas as populações dos pais. “Ao fim, acabam não restando indivíduos diferentes o suficiente para serem reconhecidos como outra espécie”, comenta o biólogo André Freitas, curador da coleção de invertebrados do Museu de Diversidade Biológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos autores do estudo.
Isso não ocorreu com H. elevatus, que mantém sua existência como espécie há milênios. Ainda assim, as borboletas atuais têm uma contribuição muito desigual das duas espécies originais: 99% do material genético é idêntico ao de H. pardalinus, e apenas 1% ao de H. melpomene.
Mas essa pequena proporção tem impacto na aparência. Os pesquisadores, liderados por dois evolucionistas da Universidade Harvard, nos Estados Unidos – o britânico Neil Rosser e o português Fernando Seixas –, descobriram que esses genes herdados de H. melpomene são justamente os responsáveis por conferir o desenho e cores nas asas de H. elevatus, cuja semelhança com o padrão da espécie parental é suficiente para afastar aves predadoras. “Apesar de as três espécies serem tóxicas e terem sabor desagradável para as aves, uma mistura muito grande nos padrões visuais das asas poderia fazer com que os predadores não reconhecessem o que aprenderam em experiências anteriores”, explica Freitas. “Ser mais parecida com uma espécie que já existe é melhor do que ter um padrão todo novo.”
Enquanto a pequena quantidade de genes de H. melpomene sobreviveu na espécie nova por obra da seleção natural, 99% do genoma veio de H. pardalinus. Além das análises genéticas, o grupo levou em conta o comportamento, o formato do entorno das asas e a interação com as plantas das quais as lagartas se alimentam, para distinguir as espécies.
A hipótese da hibridização, apenas agora sustentada pela genética, não é nova. “Nesse grupo de borboletas é bem fácil observar os desenhos nas asas, então muitos desconfiavam de hibridização na comparação só com o olhar, apesar de não terem acesso às tecnologias que temos hoje”, conta Freitas. Segundo o biólogo, a sobreposição de cores e padrões levou o naturalista norte-americano Keith Brown, professor aposentado da Unicamp, a desconfiar nos anos 1970 que esse tipo de especiação poderia explicar a origem de espécies como H. elevatus, além de outras do mesmo gênero, como H. heurippa e H. hermathena. Mas não era possível provar. Outras suspeitas de hibridização em espécies de Heliconius se seguiram.
O estudo publicado agora é parte de um projeto maior que busca compreender múltiplos aspectos de borboletas do gênero Heliconius, incluindo distribuição genética e biogeográfica. Os dados vieram de uma expedição à Amazônia que percorreu cerca de 900 quilômetros na direção sul-norte, indo de Manaus a Boa Vista, ao longo da rodovia que corta a floresta ligando as duas capitais. Os três meses de coleta de espécimes e informações continuam a render resultados e artigos sobre essas espécies.
Artigo científico
ROSSER, N. et al. Hybrid speciation driven by multilocus introgression of ecological traits. Nature. v. 628, p. 811-7. 17 abr. 2024.