Segundo dados do IBGE de 2010, mais de 6,5 milhões de brasileiros afirmam ter alguma deficiência visual, sendo que 596 mil são cegos e outros 6 milhões apresentam dificuldade severa de enxergar. Os números mostram que esse é o tipo de deficiência mais comum, atingindo 3% da população. Ainda assim, muitos desafios de acessibilidade são desconhecidos e sequer imagináveis por quem não enfrenta essa mesma realidade.
Você já pensou, por exemplo, em como as pessoas com deficiência visual ma contam as gotas de medicamentos que precisam dar aos pequenos? Uma técnica é colocar um copo de plástico próximo ao ouvido para ouvir as gotas batendo no fundo. O problema é que, em alguns casos, quando a dosagem é maior, as gotas chegam a cobrir todo o fundo e, assim, não é mais possível ouvi-las caindo no líquido. Para solucionar isso, a startup Contra decidiu apostar em um trabalho de graduação para transformá-lo no Ping, um conta-gotas sonoro.
O produto tem uma forma de disco e pode ser colocado no topo de um copo, como uma espécie de tampa. A cada gota de remédio despejada, ele emite um “bip”. Em entrevista ao Gizmodo Brasil, Diogo Carvalho, sócio da Contra, explica que o principal público do Ping são as pessoas com deficiência visual que cuidam de uma criança ou idoso.
“Nas entrevistas feitas pelos alunos do projeto da universidade, vimos que algumas pessoas com deficiência visual aceitavam tomar uma dosagem um pouco errada quando se tratava de medicamentos para eles mesmos, mas quando você precisa aplicar a medicação para uma criança ou para uma pessoa mais idosa que essa pessoa com deficiência visual tem a responsabilidade de cuidar, isso é mais perigoso. A gente sabe que, no caso de determinados medicamentos, se você errar a dosagem, você pode colocar em risco a saúde da pessoa”, diz Carvalho.
A startup vem trabalhando no projeto há quatro anos e agora está na fase final de trazer o produto para o mercado. O protótipo está recebendo os últimos ajustes para que, em abril, possa ser testado com o Instituto dos Cegos da Paraíba e apresentado a investidores interessados em fabricar o Ping. Carvalho afirma que o objetivo é que ele seja vendido em farmácias a um preço acessível e, para isso, a Contra vem correndo atrás de diferentes formas de investimento, desde apoio do governo até criptoativos.
Solução simples para um problema complexo
O Ping foi uma espécie de projeto piloto para a Contra, já que foi o primeiro investimento feito pela startup. Carvalho conta que ela nasceu em 2011 como uma empresa de comunicação, mas que decidiu buscar mais projetos de caráter social nos últimos anos. Para isso, eles recorreram ao ambiente acadêmico para encontrar potenciais projetos que pudessem ser abraçados pela empresa. Foi na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) que encontraram o trabalho de conclusão de curso de dois estudantes de engenharia que deu origem ao Ping.
O que atraiu a atenção da startup foi a simplicidade do projeto e seu caráter inusitado. “É uma tecnologia simples que resolve um problema complexo. A tecnologia em si não tem nada de inovadora, mas sim o seu uso. Ela combinou todos os recursos para resolver um problema que era invisível aos olhos de muita gente”, diz Carvalho.
O sócio da Contra explica que o objetivo da pesquisa dos estudantes era provar que era possível construir uma solução do tipo. Por isso, o projeto ofereceu um rico material, com dados e entrevistas, que auxiliaram a startup a desenvolver o produto final, porém havia o desafio da usabilidade. Como uma empresa de design, eles se propuseram a reformular e aprimorar o design proposto no estudo.
No caso das pessoas com deficiência visual que cuidam de crianças pequenas, por exemplo, era essencial que o Ping pudesse ser manejado com uma única mão para facilitar na hora em que o usuário estiver com um bebê no colo. Pensando em outros tipos e níveis de deficiência visual além da cegueira, o produto também foi projetado na cor roxa para que se destacasse no ambiente e pudesse ser facilmente encontrado.
Esse trabalho de redesign foi feito em parceria com a empresa holandesa Spark, que, na época em que o Ping estava começando a ser desenvolvido, tinha uma sede em Recife. “Esse formato de disco do Ping, que é apoiado em um copo, é fruto, inclusive, de uma referência holandesa: os waffles que eles costumam colocar em uma xícara de chá ou café para esquentar”.
Uma vez feito o protótipo, o próximo passo era levantar fundos para produzir um grande lote que pudesse ser testado com o público alvo e oferecido a potenciais investidores que decidissem levar o produto ao mercado. O primeiro aporte veio do programa Centelha, uma iniciativa do governo federal para apoiar projetos de inovação e empreendedorismo. Com isso, a Contra conseguiu trabalhar em melhorias no produto e Carvalho diz que um dos recursos finais que está sendo aprimorado é a questão da bateria. A empresa está estudando a possibilidade de oferecer um carregamento via indução e prolongar a duração da carga.
Como as entrevistas e informações coletadas pelos alunos do trabalho de pesquisa foram feitas no Instituto dos Cegos da Paraíba, a startup pretende doar o primeiro lote do Ping para a instituição e realizar os testes junto a eles. Uma das premissas do Ping, segundo Carvalho, é que ele tenha o menor custo possível para que seja financeiramente acessível a todos. Por esse motivo, a empresa também está estudando possível materiais que podem reduzir os custos de produção, como fabricar em uma impressora 3D.
Outra iniciativa da startup para ajudar a financiar a produção do Ping é uma plataforma de compra e venda de criptoativos para levantar fundos. No Scambo Digital, qualquer pessoa pode comprar os chamados “tokens de utilidade” para ajudar a financiar projetos. Como explica o site, esses tokens são uma espécie de voucher digital que pode ser trocado por produtos, serviços, descontos, entre outros. É possível comprá-los via bitcoin ou cartão de crédito mesmo.
Retorno financeiro x retorno social
Carvalho explica que o Scambo Digital surgiu como uma forma alternativa de captar recursos para projetos. Segundo ele, há muitas ideias com potencial que não conseguem chegar ao mercado, seja por falta de conhecimento ou interesse dos investidores. Ao visitar a UFPB, ele diz que ficou surpreso com a quantidade de ideias e talentos desperdiçados em projetos que ficavam engavetados.
“Acho que o Ping exemplifica muito bem esse problema da barreira entre academia e mercado. Se a gente não tivesse contato com o projeto, ele estaria lá engavetado e teria cumprido a função inicial dele que era o TCC, a aprovação dos alunos, mas não teria cumprido talvez a sua função social e a que o projeto em si se propõe, que é ajudar pessoas com deficiência visual.”
Segundo ele, existe um problema de mercado em que os grandes investidores estão muito focados em retornos financeiros imediatos. Ou seja, o próprio formato de captação de recursos atuais acaba negligenciando projetos relevantes para a sociedade.
“Acho que é um movimento que tem que vir dos dois lados. Eu acho que é necessário incentivar esses pesquisadores desde o início da graduação a olharem pro mercado e analisarem como o produto deles, como essa tecnologia que eles estão criando, pode ser viabilizada. E algumas instituições e aceleradoras devem olhar pro mercado com um prazo maior ou com um retorno financeiro menor e pensar em retorno social.”
Em relação à data de lançamento e preço do Ping, Carvalho diz que vai depender da próxima etapa, que é encontrar uma empresa disposta a fabricar o produto. Por enquanto, ele diz que o conta-gotas sonoros está recebendo seus últimos ajustes e espera que, além de ajudar as pessoas com deficiência visual, ele sirva como um caso de sucesso para criptoativos. “Os token de utilidade se tornam um motor pra que esses projetos possam andar. Espero que as pessoas vejam isso como mais uma forma de captar recursos e aí, talvez, diminuir um pouco esse gap entre inovações e mercado. Isso já está dando um fôlego extra pro projeto do Ping.”