Algumas pessoas são viciadas em chocolate. Outras gostam de coisas absurdas, como feijão com ketchup. Ainda há os obcecados por organização, que mantêm quase tudo em pastas coloridas e etiquetadas. A vida é cheia dessas coisas. Como não é bom apontar o vício alheio sem falar da própria obsessão, resolvi falar de uma das minhas manias, que anda meio descontrolada: eleições.
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Eu, Leandro Beguoci, 31 anos, criado em Caieiras, cidade da Grande São Paulo cheia de eucaliptos, confesso que sou viciado em… eleições. Me julguem. Com generosidade, por favor. Estou no pico da crise porque, em época de eleições, o vício volta forte. Ai é respirar fundo e fazer o vício trabalhar para propósitos úteis em vez de ficar checando um mundo de dados de zonas eleitorais. Hoje vamos embarcar junto com uma turminha muito louca e conhecer um pouco melhor a forma como as pessoas escolhem quem vai representá-las em alguns países deste mundão.
Democracia, como vocês sabem, não é um gatinho que toma leite e fica se aconchegando na sua perna. É um bicho mais instável, mas o único bicho que vem garantindo, ao longo das últimas décadas, alguns direitos fundamentais. É o único sistema que consegue fazer com que as maiorias decidam, mas, ao mesmo tempo, protege as minorias das eventuais loucura das maiorias. Seria lindo, aliás, que as pessoas (maiorias e minorias) participassem de todas as decisões o tempo inteiro — mas o método para tornar isso possível ainda não foi encontrado.
Sistema distrital x proporcional
Em vários países, para calibrar as tensões normais de qualquer democracia, há eleições para tudo. Nos EUA, por exemplo, se elege o delegado (sim, o chefe da polícia) em alguns locais. Em Londres, na Inglaterra, as pessoas elegem os membros da sub-prefeitura (os boroughs) — com a diferença de que cada borough tem uma autonomia bastante grande para decidir seus próprios assuntos.
Isso está ligado a uma longa tradição, bastante forte nos países de língua inglesa, de voto distrital. São anos de lutas e tensões contra o poder central — a capital do país, o presidente, o governador, o rei, a rainha. Ao longo do tempo, para garantir que o poder central não esmagasse as pequenas comunidades, uma parte do poder foi distribuído entre distritos. O país então foi dividido em várias pequenas comunidades, segundo uma série de critérios. Se fosse aplicado no Brasil, seria como se cada zona eleitoral de São Paulo pudesse eleger seus próprios deputados para a Câmara. Em vez de votar em qualquer pessoa que se candidatasse no Estado de São Paulo, como é hoje, você só poderia votar em pessoas que se candidatassem por Perdizes, Pirituba ou Parelheiros e — em tese — isso faria com que as pessoas pudessem conhecer melhor seus candidatos.
Isso tem vantagens e desvantagens. Uma das vantagens é que as pessoas ficam mais perto dos seus representantes e, em teoria, poderia conhecer melhor o trabalho que eles desenvolvem. A desvantagem é que alguns distritos ficam viciados em determinados partidos. Há distritos que só votam democrata. Outros, só republicano. Alguns, só nos conservadores. Outros, apenas nos trabalhistas. Há lugares, tanto na Inglaterra como nos EUA, em que você pode colocar qualquer um — e ele será eleito só porque pertence a um determinado partido. Os líderes dos partidos na Inglaterra, que são os candidatos das siglas a ocupar o posto de primeiro-ministro, só se candidatam pelos distritos seguros. A relação com a comunidade fica em segundo plano.
Esse sistema distrital permitiu o nascimento e o desenvolvimento de democracias estáveis em muitas partes do mundo, mas vem sofrendo com cada vez mais críticas nos últimos anos. Uma delas é que esse sistema concentra o poder em poucos partidos. A vida das terceiras vias é muito complicada, e isso tem levado a uma onda de insatisfação em várias democracias. Na Inglaterra, por exemplo, isso aconteceu em 2010. O Partido Liberal Democrata despontou como uma terceira via entre Conservadores e Trabalhistas. Foi muito bem votado por todo o país, mas o número de cadeiras não acompanhou o tamanho da votação. Afinal, não basta ser bem votado. É fundamental ter candidatos fortes nos distritos. Resultado? A Inglaterra acabou tendo um governo conservador, embora uma boa parte da população tenha votado por uma mudança para o liberal.
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Coisa semelhante aconteceu nos EUA, em 2000. Lá, o sistema é presidencial. Na Inglaterra, é parlamentarista. No caso americano, isso significa que a maior parte do poder está nas mãos do presidente. Na Inglaterra, está nas mãos do Parlamento — o partido com mais cadeiras no Legislativo escolhe quem será o primeiro-ministro. Só que os EUA têm um presidencialismo meio esquisito, que lembra um parlamentarismo vago.
Você vota no candidato a presidente, mas não muito. Na prática, o eleitor de cada Estado vota em um partido. O partido mais votado em cada Estado tem direito a um número determinado de delegados numa assembleia nacional que vai escolher o presidente. Só que essa divisão não é proporcional. Quem ganha leva todos os votos. Se o Partido Democrata, de Obama, ganha na Califórnia com 51% dos votos, ele não leva 51% dos delegados. Leva 100%.
Na maior parte das vezes, a vontade popular é representada na assembleia dos delegados estaduais — mas nem sempre. Em 2000, George Bush teve menos votos do que Al Gore. Mas, por causa de uma combinação eleitoral rara, levou a maior parte dos votos estaduais. Foi eleito presidente, apesar de não ter conquistado a maior parte dos votos da população. A eleição norte-americana é como uma grande partida de War, em que os candidatos ganham pontos em cada estado, a depender da representatividade populacional desses estados.
As pessoas estão tentando resolver esses problemas, é claro. Na Inglaterra, há um bom debate sobre copiar o modelo da Alemanha, que tem o voto distrital misto. Você vota no representante do distrito e também no partido. Isso tenta equacionar a a questão entre a vontade das pessoas e a relação representante-representado. As cadeiras no Parlamento são divididas a partir de uma conta entre votos para representantes e votos para partidos. Geralmente funciona, embora não seja muito fácil de entender. No quesito simplicidade, aliás, o Brasil é um caso de sucesso.
Essa cena ainda me emociona: o dia em que o Brasil voltou a ter uma Constituição democrática
Brasil referência
Não é muito fácil cravar: “O Brasil é uma referência eleitoral”. A desilusão das pessoas com a política anda grande. A distância entre nós e os nossos representantes é significativa. Mas é verdade. O Brasil é um país grande que, apesar de todas as suas falhas, criou um sistema eleitoral que vem produzindo uma democracia forte. É só comparar com outros países com a mesma extensão territorial ou com populações do mesmo tamanho. Nosso sistema é fácil de entender e respeita bastante o voto das pessoas.
Você escolhe o presidente sem intermediários. Votou, acabou. O mesmo vale para prefeitos e governadores. Para o Parlamento, a regra é mais chatinha, mas também é simples. Você vota nas pessoas, mas o voto tem valor duplo: ele vale para a pessoa e para o partido da pessoa. Então a Justiça Eleitoral soma todos os votos dados a parlamentares e divide pelo número de cadeiras em disputa.
Isso se chama coeficiente eleitoral, e significa que cada partido terá um número de cadeiras proporcional à sua votação. Se o PT teve 20% dos votos, terá 20% das cadeiras. Se o PSDB teve 20% dos votos, também terá 20% das cadeiras. E quem ocupa essas cadeiras? Os deputados mais votados de cada partido. Sim, esse sistema produz deputados-celebridades que são muito bem votados e acabam puxando pessoas não muito bem votadas para o Parlamento. Mas também garante que a vontade das pessoas seja minimamente respeitada.
Cicciolina, uma das atrizes pornô mais famosas da Itália, assumiu uma cadeira no Parlamento nos anos 1980
Ah, claro, é bom lembrar: nenhum sistema eleitoral do mundo está imune a celebridades. Uma atriz pornô já foi eleita deputada na Itália. A Califórnia, um dos Estados mais importantes dos EUA, você sabe, elegeu o Arnold Schwarzenegger, o ator fortão do filme O Exterminador do Futuro.
“E a China?”, você poderia me perguntar. Aí temos um nó. Há eleições na China – mas os todos os candidatos são do Partido Comunista e você só pode escolher entre pessoas filiadas e indicadas pelo grupo. Na prática, é como se o partido fosse o Estado. Não é democracia e o sistema passa muito longe de representar a vontade das pessoas. As celebridades só seriam eleitas se também fossem do partido do governo.
Existe sistema perfeito?
A busca pelo sistema político perfeito lembra a perseguição ao Santo Graal. Encontrar a fórmula perfeita para eleger representantes tem jeito de salvacionismo. Não sei se o Santo Graal já foi descoberto — mas tenho certeza de que o sistema eleitoral perfeito ainda não foi encontrado.
Os sistemas proporcional, como o do Brasil, e distrital, como de EUA e Inglaterra, vêm sendo os mais adotados mundo afora. O proporcional é majoritário na América do Sul, no Leste da Europa e também está no Japão e na Rússia. O distrital é forte em quem tem tradição inglesa, como Índia e EUA. Eles se combinam à forma como o poder central é organizado. Se o presidente é quem tem mais poder, o sistema é presidencialista. Se o primeiro-ministro tem mais poder, o sistema é parlamentarista. Geralmente, países com voto distrital são parlamentaristas – mas nem sempre, e os EUA são uma boa exceção.
E, claro, há a Rússia. Lá, o poder oscila de acordo com o cargo ocupado por Vladimir Putin. Quando ele é presidente, a presidência tem mais poder. Quando ele é primeiro-ministro, o Parlamento tem mais poder. Ele vai mudando as regras do jogo do jeito que convém.
Os asiáticos nem sempre são calmos, especialmente no Parlamento da Coréia do Sul.
Cada sistema, e combinação de sistemas, está ligado à história do país, ao desenvolvimento das instituições democráticas, à maneira como as pessoas se relacionam com o Estado.
No caso do Brasil, o sistema proporcional é um fruto legítimo da redemocratização: ele é simples e garante que os mais votados estejam no Parlamento. É o be-a-bá da representação, mas absolutamente essencial para um país com pouca tradição de eleições livres e democráticas. É só parar e pensar. Estamos vivendo o maior período ininterrupto de democracia da história do Brasil. São 26 anos, desde a Constituição de 1988, sem golpes de Estado. É muita coisa para um país com uma história tão turbulenta quanto a nossa.
Portanto, domingo, dia 26 de outubro, não é apenas mais uma eleição. Independente de quem vencer, a disputa já vai entrar para a história como mais um capítulo fundamental da democracia no país. Ninguém disse que seria fácil nem que está tudo bem. Mas, como bom viciado em eleições, posso garantir: eleger representantes não resolve todos os nossos problemas nem ameniza todas as tensões na sociedade. Só que, sem eleições, não temos condições de dar os passos fundamentais para construir um país melhor. Elas são apenas um entre os infinitos passos que temos de dar. Palavra de viciado em urna.