Coluna: E daí que Rita Lee usou drogas? (Ou “Da necessidade de se indignar”)

Caio Maia, colunista do Giz Brasil, escreve sobre a matéria da Folha da carreira e vida de Rita Lee que causou polêmica pela desconformidade entre título e conteúdo do texto

Rita Lee Jones morreu na última segunda-feira (8) em São Paulo, cidade que a formou e que ela ajudou a formar. Me somo aqui às numerosas homenagens a ela: os Mutantes e a fase Tutti Frutti têm alguns dos melhores álbuns da música brasileira de todos os tempos.

Não gosto de nada do que ela fez depois, abomino o “disco Beatles”, mas não acho ruim que ela tenha feito: permitiu à artista chegar a um público muito maior, levar a um público “Baila Comigo” uma mensagem de uma “doidona clássica”.

Quem tinha se esquecido na fase “novelas” que Rita Lee era uma doidona, foi lembrado disto nos últimos tempos. Alguns tuítes clássicos, além de entrevistas, lembraram os fãs, todos eles, não só os doidões, que aquela era uma revolucionária, uma destruidora de padrões e de confortos. Duvido que tenha perdido algum fã por causa disso.

Então morreu Rita Lee, e os veículos todos se apressaram em prestar suas homenagens. Uma delas, da Folha, tinha o seguinte título: “Rita Lee, rebelde desde a infância, se deixou guiar por drogas e discos voadores”. Pronto. A indignação já estava lá antes do título, sempre está, há algum tempo. Ela fica engatilhada, esperando aparecer o motivo pra atirar. Nesse caso, acharam esse motivo.

A Folha de S.Paulo há muito tempo deixou de ser o jornal de referência do Brasil. Até o Estadão é hoje um jornal melhor, embora seja preciso peneirar a lama para chegar ao ótimo trabalho da redação. A Folha optou pelo caminho do caça-clique generalizado, eu não consigo mais dar essa peneirada na própria Folha.

Então nada mais natural que a metralhadora da indignação esteja sempre apontada pra ela. E não é injusto que esteja. O problema é que quando você aponta a metralhadora para um artigo de jornal, aponta também para quem o escreveu.

***

Não achei um currículo decente da Laura Mattos, autora do texto, para poder colar aqui alguns pedaços, mas basta dizer que é uma jornalista com uma carreira longa e muito celebrada, e sem polêmicas marcantes. É esse, aliás, um dos motivos para a metralhadora da indignação ter sido parcialmente virada contra “quem fez o título”.

Então não falemos do texto, apenas pra dizer que é ótimo e longo, e necessário para quem quer entender melhor todas as facetas da artista (e está aqui).

Eu não sei quem fez o título, embora imagine que é alguém que tem sempre recebido a instrução de fazer “o título que der o maior alcance”. Queria refletir sobre isto, antes de refletir sobre o título em si.

Todo mundo quer alcance para o próprio trabalho. Se você faz jornal, quer que ele seja vendido e que as pessoas leiam o que você escreve. Se faz xampu, quer que as pessoas saibam que ele existe e comprem ele. Tem a ver com dinheiro, claro, mas tem a ver também com sentir que o seu trabalho chega às pessoas.

Eu editei uma revista de futebol que era excelente, mas foi lançada quando ninguém mais lia revistas. Gastar dinheiro com aquilo doía, mas doía muito mais saber que os textos e apurações excelentes que estava ali seriam lidos por meia dúzia.

De modo que é mais do que normal que se queira ter “alcance” no que se escreve, não é só uma maldade capitalista de quem quer ficar ainda mais rico (no caso da Folha, que tem um dono bem rico).

O problema do “alcance” é que o termo é amplo. Não inclui apenas pessoas que possam conhecer seu trabalho e admirá-lo ou não. No caso do xampu, se alguém comprar seu xampu pra matar pernilongo você pode até ficar chateado, mas é muito pouco provável que isto aconteça. No caso do jornalismo, a lógica vem sendo outra há muito tempo: “viaja” muito mais pelas redes o que é odiado. E isto acaba viciando alguns olhares.

Não devia viciar os melhores olhares. Os “Choquei” da vida existem pra isso, não é jornalismo, não é informação, é empacotamento de lixo pra gerar clique. Blogs e canais de futebol, de política, de moda e de culinária seguem essa lógica, e isto é também muito ruim, mas não tem a ver com jornalismo — mesmo quando é feito por pessoas que um dia fizeram jornalismo.

Quando, porém, a necessidade de indignar contamina o maior jornal do país, o jornalismo tem um problema, porque a reputação da Folha se confunde com a reputação do jornalismo brasileiro. Ninguém que viva de jornalismo pode negar este problema.

***

Este é o cenário para a última indignação coletiva, portanto. Um jornal que vem se perdendo na busca fútil por “alcance” e que em troca disso sacrificou sua relevância publicando um texto (um título pra ser mais específico) em que há uma orientação a chamar a atenção sobre uma pessoa quase que universalmente querida. Com o cenário em mente, podemos olhar o ato, o título em si.

“Rita Lee, rebelde desde a infância, se deixou guiar por drogas e discos voadores”, era o título original, depois trocado. Cumpriu o papel caça-clique sem dúvida, porque gerou indignação, e aqui entra outro aspecto desta necessidade de se indignar que contamina o debate e a arena: as pessoas precisam se indignar e manifestar essa indignação, e ao manifestá-la invariavelmente aumentam o alcance do conteúdo que as indignou. É básico e óbvio, mas as pessoas continuam caindo no truque várias vezes por dia, é disso que vive a extrema-direita.

O problema na análise deste título especificamente é que o “caça-clique” não inventou nada, não distorceu nada, não descontextualizou nada. Fez apenas o que o jornalismo deveria sempre fazer: aumentou a quantidade de informação disponível sobre um tema, e jogou luz sobre um aspecto de uma questão em evidência que não estava devidamente iluminado. Rita Lee usou drogas, e não seria a mesma Rita Lee se não tivesse usado. Engulam essa, conservadores! Mas quem se indignou não foram, curiosamente, os conservadores.

Eu já usei drogas e considero que tê-las usado melhorou minha capacidade de vivenciar o mundo e a realidade. Eu não sou o único. Mas poucas pessoas falam sobre isto. Ajudam, desta forma, a perpetuar o estigma sobre as drogas, que é na verdade uma arma de controle dos conservadores. Quando se critica um título que mostra que parte do brilho de uma pessoa brilhante é ter usado drogas, compra-se o discurso do “droga é ruim e mata”. Rita Lee morreu com 75 anos, manos. O papa João Paulo I morreu com 65 sem nunca ter usado drogas.

***

A necessidade de se indignar contaminou a análise de novo, e de novo fez o jogo dos conservadores. O que podia ter sido um “tapa na cara” da caretice virou algo “de mau gosto”. Porque também os analistas têm preguiça, é mais fácil embarcar na onda. Perde o jornalismo e perde a história da doidona Rita Lee, que, ainda bem, usou drogas.

Caio Maia

Caio Maia

Caio Maia é o publisher da F451 e do GizBr. Escreve a cada duas semanas sobre mídia, e quando os editores deixam escreve sobre outras coisas também. Passou pela Folha e depois fez Trivela, revistas ESPN e Sustenta! e uma lista longa de blogs, sites e podcasts.

fique por dentro
das novidades giz Inscreva-se agora para receber em primeira mão todas as notícias sobre tecnologia, ciência e cultura, reviews e comparativos exclusivos de produtos, além de descontos imperdíveis em ofertas exclusivas