Craque no laboratório e no futebol, biomédica estuda ação de toxina do veneno da cascavel contra o câncer
Reportagem: Aline Tavares/Instituto Butantan
Desde os tempos de criança em São Roque, interior de São Paulo, Camila Lima Neves é movida por duas paixões: futebol e biologia. Participava dos campeonatos na escola ao lado de sua irmã gêmea, Carla, e achava incrível quando a professora desenhava células na lousa. Não é à toa que, quando perguntada sobre o futuro após o Ensino Médio, dizia: “Eu me vejo dentro de um laboratório, com jaleco, mexendo com células”. No Instituto Butantan, conseguiu obter o melhor dos dois mundos: ser cientista e, de quebra, representar a instituição no time de futebol nos Jogos Sindusfarma – campeonato que reúne colaboradores de empresas do setor farmacêutico.
Formada em Biomedicina pela Faculdade Mario Schenberg (atual Faculdade Lusófona), Camila tem 34 anos, fez iniciação científica, mestrado e doutorado no Laboratório de Fisiopatologia do Butantan, sob orientação da pesquisadora científica Sandra Coccuzzo, e foi contratada há dois anos como tecnologista de laboratório. Em suas pesquisas, estuda os efeitos anti-inflamatório, imunomodulador e antitumoral da crotoxina, toxina extraída do veneno da cascavel.
Nascida na Zona Leste de São Paulo, na região do Sapopemba, Camila se mudou com a família para São Roque aos 4 anos. Sua mãe, vinda do Ceará, é dona de casa e não chegou a fazer uma graduação, mas sempre incentivou as filhas gêmeas a estudar. As duas estudaram em escola pública e concluíram o Ensino Médio em 2006. No ano de 2008, Camila ingressou em um curso técnico de informática em Sorocaba (SP), cidade vizinha.
A rotina virou de cabeça para baixo a partir de 2009, quando a jovem entrou no curso de Biomedicina na Faculdade Mario Schenberg, em Cotia (SP). Ela transitava entre as três cidades diariamente: de manhã, ia para o curso de informática em Sorocaba; à tarde, retornava para casa em São Roque; e, à noite, ia para a faculdade em Cotia, de ônibus. Cada trajeto durava em torno de uma hora e meia.
No primeiro ano da graduação, conseguiu um estágio no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), onde fez dois projetos de iniciação científica: um sobre uma estrutura intracelular durante o desenvolvimento embrionário do ouriço-do-mar e outro sobre um potencial tratamento para câncer de pele. Ainda morando em São Roque, Camila passava a manhã e a tarde na USP, em São Paulo, ia para a faculdade e depois voltava para casa. “Eu praticamente só ficava em casa para dormir; era uma rotina extremamente cansativa. Foram cerca de quatro anos nesse ritmo”, conta.
A mudança veio quando a estudante se deparou com uma oportunidade inesperada no último ano da faculdade, em 2013. Uma professora que tinha lhe dado aula no começo da graduação, Tatiane Lima, a convidou para ser sua aluna de iniciação científica no Instituto Butantan. Na época, Camila estava trabalhando na clínica de acupuntura de uma amiga.
“Contei para minha amiga sobre a oportunidade e disse que não sabia o que fazer. Ela perguntou o que meu coração queria. Eu respondi: meu coração quer a pesquisa”
Ciência contra o câncer
Foi na iniciação científica no Butantan que Camila teve contato pela primeira vez com o estudo de venenos. Entre os anos de 2013 e 2016, a biomédica se dedicou a um projeto que analisava o efeito anti-inflamatório da crotoxina sobre os neutrófilos, um tipo de célula de defesa, e deu continuidade à pesquisa em um Programa de Aprimoramento Profissional, da antiga Fundação do Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP).
Assim como no futebol, em que já é tetracampeã, Camila não perdeu tempo: logo em seguida, mudou-se para São Paulo e engatou o mestrado e o doutorado, junto a linha de pesquisa da Sandra Coccuzzo. O período foi dedicado a pesquisar como a crotoxina interfere na função dos monócitos e macrófagos, outras células do sistema imune, e como isso pode ajudar a combater o câncer.
Seus esforços no mestrado renderam um artigo publicado recentemente na Toxins, uma revista científica de alto impacto. A biomédica avaliou o efeito da toxina sobre os macrófagos de animais com tumor ascítico, um tipo de tumor líquido que acomete a região abdominal, e quantificou as células tumorais e de defesa após o tratamento.
“As células tumorais estavam diminuídas, pois entravam em apoptose [morte celular]. Além disso, havia uma maior quantidade de células de defesa secretando substâncias pró-inflamatórias e ajudando os macrófagos a combaterem o tumor”
Pioneiro ao avaliar a eficácia da crotoxina para tratar um tumor líquido, o trabalho foi motivo de grande orgulho para Camila. No doutorado, que deve ser submetido para publicação em breve, ela investigou o mecanismo de ação por trás desse efeito – ou seja, identificou as proteínas envolvidas na resposta inflamatória e antitumoral.
O estudo do mestrado publicado também ganhou notoriedade na mídia, o que ajudou a jovem a enfrentar um medo antigo: falar em público. Embora seu jeito animado e brincalhão não faça transparecer, Camila se considera uma pessoa tímida, mas encontrou nas entrevistas uma oportunidade de compartilhar seu trabalho com a sociedade.
“É um desafio transformar a linguagem científica em uma linguagem acessível. Isso é algo que me motiva muito: falar sobre meu trabalho de uma forma clara que possa atingir todas as pessoas”
Moldando futuros “jogadores”
Após a dedicação de quase dez anos na iniciação científica, mestrado e doutorado, Camila conquistou uma vaga de tecnologista de laboratório no Butantan. Além de continuar contribuindo com o estudo da crotoxina, a biomédica auxilia alunos e pesquisadores com experimentos e é responsável pela manutenção da sala de cultura de células.
Para Camila, é gratificante poder ajudar alunos de estágio e de pós-graduação e acompanhar seu desenvolvimento, da mesma forma que sua professora a apoiou desde o primeiro dia no Butantan.
“Tenho muito a agradecer à Tatiane Lima, porque ela contribuiu com todo o meu crescimento e o conhecimento que hoje consigo passar para os alunos”
Para Camila, não é difícil imaginar o que passa na mente agitada dos estudantes, já que há pouco tempo ela estava no mesmo lugar. Correr para cumprir todos os prazos, manter-se financeiramente com bolsa e ainda viver uma pandemia e um lockdown durante o doutorado não foram tarefas fáceis.
“Lembro muito bem quando foi anunciado o segundo lockdown. Eu estava saindo da sala de cultura após um teste e, quando olhei a plaquinha, vi que não tinha dado o resultado que esperava. E são experimentos que a gente passa desde de manhã até a noite fazendo. Naquele momento, eu soube que o laboratório ia fechar de novo e desabei de chorar, porque já estava chegando perto do meu prazo”, conta.
Mas, como diz Camila, no final tudo sempre dá certo, especialmente quando se tem colaboração científica. Ela conseguiu obter outro modelo celular para trabalhar, com a contribuição de uma pesquisadora de outra instituição, e alcançou os resultados para os quais se dedicou de domingo a domingo, faltando um ano para defender sua tese.
Em todo esse processo, a tecnologista ressalta o papel de sua orientadora de mestrado e doutorado, Sandra Coccuzzo, que lhe deu a oportunidade de tocar os experimentos sozinha e contribuiu de diversas formas para seu amadurecimento como cientista.
“Costumo dizer que a Sandra é uma mãe científica: ela sempre incentiva muito os alunos. É como se dissesse ‘eu nunca vou desistir de vocês’. E, de fato, ela nunca desistiu de mim”
Experimentos, cafezinho e futebol
Quando tira o jaleco no fim do expediente, Camila sai do laboratório pensando: “Quero meu cafezinho e não quero guerra com ninguém”. O café traz uma memória afetiva da casa da mãe, em São Roque, e ela adora explorar as diferentes cafeterias e padarias da cidade. À noite, dedica-se ao estudo do inglês e aos cuidados da casa – principalmente cozinhar com sua noiva, Monique, também biomédica, com quem troca experiências de trabalho. “Muitas vezes, acabamos comentando sobre experimentos que estamos fazendo e cada uma contribui com suas ideias”, diz.
O reconhecimento recebido hoje por seu trabalho nem sempre foi realidade. Durante a pós-graduação, Camila escutou com frequência da família a pergunta: “E aí, você já está trabalhando?”. A biomédica sempre fez questão de se referir ao mestrado e doutorado como trabalho, e hoje os familiares reconhecem que a carreira da pesquisa é um investimento de longo prazo – e de suma importância.
“Minha irmã está muito contente com minhas aparições na mídia, com as entrevistas que eu tenho dado sobre meu estudo. Ela divulga tudo no grupo da família”
Na banca de mestrado, a sala ficou lotada com a presença da mãe, da irmã e de todos os colegas e amigos do Butantan – do laboratório ao campo. Todo o carinho e apoio que Camila recebe refletem a pessoa que os amigos descrevem: alto astral, divertida, engraçada, focada e amante do que faz. Também é conhecida como “vereadora do Butantan”, já que sempre cumprimenta alguém por onde passa.
Aos finais de semana, costuma ir para o interior visitar a mãe. Quando não está fazendo experimentos dentro do laboratório, está no campo driblando adversárias e de olho no gol. Do tipo de pessoa que “topa tudo”, também já participou do time de vôlei do Butantan e até do kart, e mantém um cantinho em casa dedicado às medalhas.
Em relação ao futuro, a resposta para a pergunta que lhe fizeram após o Ensino Médio segue a mesma: Camila deseja continuar na pesquisa, produzindo novos conhecimentos e apoiando futuros cientistas em sua jornada. Ela acredita que é somente a partir da união de forças que o trabalho desenvolvido no interior dos laboratórios pode chegar à população. Para os estudantes, reforça que promover a colaboração científica e estabelecer contatos é essencial.
“Para um aluno de pós-graduação, é muito difícil pensar: ‘Será que esse trabalho que estou fazendo vai atingir a sociedade um dia?’. Os desafios da carreira podem gerar uma certa bagagem emocional, mas também são aprendizados. Você não pode parar!”