Quando olhamos para nosso passado e como a experiência humana foi moldada, é fácil notarmos a existência de um sistema de trocas, seja em âmbito econômico ou comportamental. Com novos modelos ideológicos, sociais e culturais, diversas pessoas se tornaram mais ansiosas, valorizando a individualidade e com pouca consciência de que existem empresas que estão lucrando de forma descomunal com suas informações, seja pelo clique em um site ou mesmo uma câmera de segurança instalada em seu condomínio.
É com esta premissa que “A Era do Capitalismo de Vigilância”, de Shoshana Zuboff, lançado em fevereiro pela editora Intrínseca com tradução de George Schlesinger, nos aproxima dos diversos estudos realizados durante anos pela Ph.D. em psicologia social e professora emérita da Harvard Business School. O termo, cunhado pela autora e trabalhado ao longo de 800 páginas, surgiu de um texto publicado em 2015 e que recebeu o prêmio de “Melhor Artigo Científico” durante a Conferência Internacional sobre Sistemas de Informação, realizada pelo Laboratório de Gestão da Tecnologia e Sistemas de Informação (TECSI).
Zuboff define o capitalismo de vigilância como “uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como matéria-prima gratuita para práticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e vendas”. Em outras palavras: não é que somos “o produto” das redes sociais, como dizem alguns — mas sim uma fonte inesgotável de dados, que são usados como matéria-prima para empresas preverem comportamentos e, com isso, lucrar. É uma nova fase do capitalismo.
A era do capitalismo de vigilância
Shoshana ZuboffUma compra feita na Amazon, uma postagem em seu feed no Facebook e até o Pokémon Go geram tantos dados que as empresas nem sabem lidar com todo o seu potencial ainda. No capitalismo de vigilância, tudo se transforma em um ciclo de extração, predição e venda de dados, formando o que a autora define como um nova lógica econômica, “uma ameaça tão significativa para a natureza humana no século XXI quanto foi o capitalismo industrial para o mundo natural nos séculos XIX e XX”.
A partir desta nova fórmula de poder, surgiu o “instrumentarismo”, uma forma de poder exercido por empresas como Google e Facebook para poder moldar comportamentos em busca de predição, monetização e controle. É uma evolução do “totalitarismo”, concebido pelos estados fascistas — já que, nesse caso, não é preciso de exércitos e poder bruto, mas sim uma arquitetura tecnológica cada vez mais ubíqua que vai tomando o espaço dos nossos cotidianos.
Leitura densa, mas de fácil compreensão
Como forma de instruir o leitor na história da implementação do capitalismo de vigilância, partindo da Revolução Industrial até a ascensão do Google e outras grandes empresas nestas últimas duas décadas, Zuboff destina mais da metade da obra em exemplificações e contextos históricos.
A apresentação dos panoramas históricos é completa e de linguagem acessível, mesmo quando a autora opta por utilizar termos específicos, que são bem contextualizados e explicados. De nenhuma forma isto torna a leitura redundante ou desinteressante. Mesmo assim, aconselho a ir aos poucos, já que são muitas informações para absorver de uma vez.
Como já se passaram mais de três anos desde sua primeira publicação e as novidades do capitalismo de vigilância são diárias, o livro pode parecer um pouco datado. O caso mais recente analisado no livro foi da empresa britânica Cambridge Analytica, que usou ilegalmente dados de milhões de perfis do Facebook para influenciar a eleição americana e o plebiscito do Brexit em 2016. Para a autora, este episódio apontou de forma mais clara como esta nova tática capitalista opera: produzindo ignorância por meio do sigilo meticuloso de indivíduos conscientes.
Se analisarmos o contexto no qual estamos vivendo hoje, em meio a uma pandemia, é fácil notar exemplos mais próximos de nossa vivência, como a luta contra a desinformação, especialmente das vacinas, e a crescente dependência da tecnologia, que busca criar ferramentas de aproximação em meio ao isolamento social.
Chega a ser chocante pensar que todo este assunto já era algo a ser pensado na década de 1980, quando a autora lançou a obra “In the Age of the Smart Machine”, livro em que abordou os novos “meios de trabalho” de uma farmacêutica, que resultou em metodologias abusivas contra seus funcionários, como na divulgação de experiências pessoais que deveriam ser privadas. Como Zuboff diz, o tempo passa e as técnicas só mudam de estrategistas. Se antes os capitalistas eram os donos de maquinários industriais, hoje são aquelas que produzem as ferramentas que me ajudaram a produzir essa resenha. Não existe o livre-arbítrio em rolar a timeline do seu Twitter ou Instagram.
Como a autora deixa claro na conclusão da obra, muitas perguntas ainda serão respondidas, principalmente pelas gerações futuras, que já estarão mais avançadas quanto às novidades tecnológicas disponíveis. Em uma analogia à derrubada do muro de Berlim, Zuboff acredita que seu livro, assim como os diversos autores discutidos no livro e os trabalhos que estão sendo desenvolvidos ao longo destas duas décadas, poderão criar uma ruptura para que as pessoas reivindiquem o seu futuro digital, com conhecimento sobre a dinâmica do sistema e como a democracia é uma aliada na busca pelo equilíbrio. O tempo dirá.
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