O pastor Marco Feliciano, deputado federal pelo PSC (Partido Social Cristão) de São Paulo, apresentou na quinta-feira, dia 13 de novembro, um projeto de lei que institui o criacionismo em todas as escolas brasileiras, sejam elas públicas ou privadas. Esta é a redação da lei:
Art. 1º Fará parte da grade curricular nas Redes Públicas e Privadas de Ensino, conteúdos sobre criacionismo.
- 1º – Os conteúdos referidos neste artigo devem incluir noções de que a vida tem sua origem em Deus, como criador supremo de todo universo e de todas as coisas que o compõe.
- 2º – didaticamente o ensino sobre criacionismo deverá levar ao estudante, analogamente ao evolucionismo, alternância de conhecimento de fonte diversa a fim de que o estudante avalie cognitivamente ambas as disciplinas.
Art. 2º O chefe do Poder Executivo regulamentará esta lei.
Art. 3º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Para justificar a nova lei, Feliciano – o polêmico ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara – afirma:
“Hoje mais do que nunca o “cientificismo” que muito nos ajuda, tem rejeitado qualquer conceito ou ensino de origem divina como se fosse possível submeter à autenticidade do Criador em laboratório de experimentos humanos. (…)
Ocorre que por força da fé, dos costumes, das tradições e dos ensinos cristãos, a maioria da população brasileira crê no ensino criacionista, como tendo sua origem em Deus, criador supremo de todo universo e de todas as coisas que o compõe, como animais, plantas, o próprio homem.
Este ensino tem como fundamento o livro de Gênesis contido no livro dos livros, a saber, a Bíblia Sagrada que é a verdadeira constituição da maioria das religiões do nosso país.
De acordo com a nossa Constituição Federal, mais precisamente em seu artigo 5º onde trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, nos incisos VI e VIII do citado dispositivo legal “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, (…) ninguém será privado de direitos por motivo ou de convicção filosófica ou política.”
Assim sendo ensinar apenas a teoria do evolucionismo nas escolas, é violar a liberdade de crença, uma vez que a maioria das religiões brasileira acredita no criacionismo, defendido e ensinado na Igreja Católica, que ainda hoje é maioria no país, pelos evangélicos e demais denominações assemelhadas.
As crianças que frequentam as escolas pública tem se mostrado confusas, pois aprendem nas suas respectivas escolas noções básicas de evolucionismo, quando chegam a suas respectivas Igrejas aprendem sobre o criacionismo em rota de colisão com conceitos de formação escolar e acadêmica.
Ensinar apenas o EVOLUCIONISMO nas escolas é ir contra a liberdade de crença de nosso povo, uma vez que a doutrina CRIACIONISTA é a predominante em todo o nosso país.”
Se você quiser ler o projeto inteiro, ele está aqui. Agora, vamos a alguns pontos relevantes.
O projeto pode ser aprovado?
A Câmara dos Deputados do Brasil (foto: Jose Cruz/Agência Brasil)
Qualquer projeto submetido à Câmara dos Deputados passa por uma série de avaliações. Esse filtro submete o texto a uma série de provas. O projeto passa por comissões específicas e é avaliado por um relator. Os testes checam algumas coisas:
1) O projeto é constitucional? Ele está dentro do sistema jurídico brasileiro?
2) Já existe uma lei parecida em vigor?
3) A justificativa da legislação se sustenta?
Se ele cumprir todos esses requisitos à risca, vai adiante. Claro que, às vezes, no meio do caminho, um projeto pode avançar porque há um acordo de partidos.
Mas, no final das contas, esses projetos precisam ser votados pelos deputados, depois pelos senadores e, finalmente, podem ser sancionados (ou rejeitados) pela presidência da República. Se, mesmo assim, ele tiver algum problema, você pode ir até o STF (Supremo Tribunal Federal) e contestar a constitucionalidade da lei. É muita coisa em muito tempo. Coisa para muitos anos, na verdade. Afinal, projeto de lei mexe com a vida de todo mundo.
Então, exceto se acontecer alguma coisa muito séria, a ponto de o projeto atropelar todo mundo em regime de urgência, Feliciano só vai ter feito uma coisa. Ele vai ter colocado o debate do criacionismo na agenda de discussões do país. Agora, cabe à sociedade se debate ou não a história. Porque o que está em jogo é a manutenção do Estado laico.
Então por que dar atenção a isso?
É duro, mas às vezes a gente tem de falar deles – os parlamentares que curtem passar muito tempo nos holofotes. É o caso de Feliciano. É duro porque a gente nunca sabe se deputados assim puxam as discussões porque acreditam nelas ou porque alguns assuntos têm um potencial enorme de fazer barulho pelo barulho – e dar ainda mais holofotes para eles.
Marina Silva negou ser criacionista com um bom argumento (Elza Fiúza/Agência Brasil)
Feliciano é um deputado bastante polêmico e barulhento. Ele fez um enorme barulho em cada um dos seus atos. Mas, é bom que se diga, ele não está sozinho nessa. Muitos dos deputados que se opõem a Feliciano também curtem um show. O problema de deputados assim é que as discussões acabam se concentrando muito mais na pessoa do que nas ideias. Vira uma polarização maluca em que defensores e detratores gritam em vez de argumentar. No final, isso inviabiliza o debate. Ninguém curte entrar num debate que vai lembra luta livre no gel.
Mas, neste caso, vale falar porque o projeto parece vir, mesmo, das convicções do deputado. Ele é evangélico e existe uma corrente de evangélicos e católicos, no Brasil, nos EUA e na Europa, que defende o criacionismo nas escolas. Entre os norte-americanos, já é assunto velho. No Brasil, a discussão vem ganhando força timidamente nos últimos anos. A ex-candidata à Presidência da República, Marina Silva, foi acusada de ser criacionista nas duas eleições das quais participou. Marina é evangélica, e negou ser criacionista com um belo argumento, aliás:
“(…) nunca defendi essa tese e nem me considero criacionista. Porque o criacionismo é uma tentativa de explicação como se fosse científica para responder a questão da criação em oposição ao evolucionismo. Apenas acredito em Deus.”
Você pode checar a resposta dela aqui. Dá para dizer que, com as acusações a Marina, o debate realmente esquentou. Faz sentido.
O criacionismo é um assunto bem sério. Ele não é apenas um debate sobre o que vai ou não ser ensinado nas escolas. É um debate que envolve verdade científica, liberdade de expressão, liberdade religiosa e laicidade do Estado. É realmente um debate trava-cabeça e que, se for levado ao limite, trava a sociedade.
Liberdade de expressão, liberdade de religião
Nos EUA, a liberdade de expressão e o Estado laico surgiram, basicamente, para evitar perseguição religiosa. A primeira emenda da Constituição americana garante, ao mesmo tempo, liberdade de culto e liberdade de expressão. Na época, fazia sentido. Vários dos primeiros imigrantes à América do Norte tinham deixado a Europa por causa de perseguição religiosa. Eles não estavam a fim de reeditar o problema no novo mundo.
Mas não bastava garantir que você pudesse ter a religião que quiser. Era preciso garantir que você pudesse falar da sua religião abertamente, sem ser proibido pelo Estado. Foi isso que a primeira emenda fez. E, na prática, estabeleceu uma das legislações mais abrangentes de liberdade de culto e de expressão do mundo. Portanto, cuidado na hora de chamar todos os religiosos de obscurantistas. Esse mundo da internet em que todo mundo fala o que quer sem censura prévia deve um bocado a devotos de séculos atrás.
No Brasil, a liberdade de crença e o Estado laico são frutos da Proclamação da República, com a Constituição de 1891. Os militares que derrubaram a monarquia não admitiam a união entre Igreja Católica e Estado. Eles cortaram os laços de séculos que uniam religião e governo e permitiram, finalmente, que as religiões tivessem um tratamento igualitário garantido por lei (embora a lei muitas vezes demore para pegar – quem tem familiares que praticam a umbanda e o candomblé provavelmente terão histórias de perseguição muito tristes para contar). Já a liberdade de expressão é mais recente. Com um histórico de ditaduras na sua conta, o Brasil só abraçou esse direito fundamental sem meio termo com a Constituição de 1988. E isso, claro, permitiu um mundo de coisas.
Mais religiões puderam se expressar sem medo de repressão. Associações de ateus também. A sociedade ficou mais complexa e mais plural, como cabe a uma sociedade que abraçou a democracia. É nesse contexto que o projeto de Feliciano entra. Ele olha para uma sociedade complexa e aplica um simplismo como solução. O argumento é de pluralidade e respeito à liberdade religiosa. Mas, no final das contas, serve apenas para impor o que uma parte da sociedade pensa para os outros.
Afinal, vamos supor que eu tenha uma escola budista. Vou ter de ensinar o criacionismo cristão? É ai que começa o trava-cabeça. Por que o direito de crença de uns acabaria valendo mais do que outros. E ai dá problema.
Criacionismo x Evolucionismo
O evolucionismo, a teoria de Charles Darwin, é uma das ideias mais discutidas e menos compreendidas do planeta. Basicamente, ela diz que os seres vivos não são estáticos. Nós mudamos ao longo das gerações, por uma série de fatores que ainda não estão absolutamente claros para todos os cientistas.
Darwin se baseou em evidências para propor a teoria. Ao longo dos anos, várias pessoas entenderam essa teoria como quiseram – e surgiu um mundo de absurdos. O evolucionismo foi usado para justificar colonialismo na África, por exemplo. Vários malucos defenderam a ideia de que os africanos eram menos evoluídos do que os brancos porque seriam parentes mais próximos dos macacos (olha o tamanho do absurdo – mas é sempre bom saber que esses absurdos existiram para não repeti-los). Logo, poderiam ser escravizados. Também surgiu o evolucionismo das sociedades e das ideias. À esquerda e à direita, as pessoas defendiam a tese de que sua versão de mundo era mais evoluída do que a do rival. Evolucionismo foi confundido com superioridade. Deu ruim, como mostram os projetos assustadores dos nazistas de melhora seletiva da sociedade.
Saiba mais: As cinco principais ideias erradas sobre evolução, de acordo com cientistas
Ciência em debate: Dez conceitos científicos que as pessoas deveriam parar de usar do jeito errado
O que se sabe, hoje, é que os seres vivos se adaptam ao meio – não significa necessariamente que eles se tornem melhores. Nós, urbanos de São Paulo, provavelmente não aguentaríamos meia semana nas condições de vida dos nossos ancestrais #carasdurões. Os mecanismos de mudança, de adaptação, de transformação não são absolutamente claros. Os cientistas, nos últimos anos, têm enfatizado isso. Há uma tendência clara de mudança, que se comprova em vários experimentos. Agora, não significa que a gente já sabe tudo ou saiba claramente em que direção estamos indo. Na verdade, só temos uma certeza: nosso desconhecimento é maior do que o nosso conhecimento. Darwin apontou um caminho, que vem se mostrando acertado. Não criou um manual de regras sobre como o mundo funciona.
Esse é o nó do criacionismo. Ele substitui a cautela e os testes por uma certeza absoluta contida no livro mais importante de uma religião do planeta – mas o mundo tem várias religiões. É uma imposição que lembra os piores momentos da ciência. É sempre bom lembrar que a ciência já teve uma pretensão ao absolutismo que foi bem complicada (várias barbaridades cometidas ao longo do século foram feitas por cientistas ou em nome da ciência).
Só que a ciência vem perdendo a arrogância ao longo dos últimos anos (embora, claro, existam cientistas chatos – como em todas as profissões). Já os criacionistas, não. Eles vêm com um mundo de certezas prontas baseadas no bíblico do Gênesis. E, para impor suas crenças ao conjunto da sociedade, muitos usam o argumento de que ensinar o evolucionismo é uma perseguição religiosa.
O que eles não falam é que nem todos os religiosos concordam com eles. Vários cientistas têm fé e não são criacionistas. Darwin mesmo deve muito da sua teoria a várias pessoas que vieram antes dele, e que eram religiosas. De novo: ter fé não é ser obscurantistas. Você pode ser cientistas e obscurantista, por exemplo, como eram as pessoas que defendiam a eugenia no começo do século 20.
Um exemplo recente de abordagem tranquila sobre o assunto veio do Vaticano. Há pouco tempo, no final de outubro, o papa Francisco deu uma declaração dizendo que não há incompatibilidade entre evolucionismo e religião. O papa afirmou que não gosta da ideia de que Deus é um mago que saiu por ai criando todas as coisas. Além disso, ele explica, a “evolução da natureza não é incompatível com a noção de criação, pois exige a criação de seres que evoluem”. Você pode concordar ou discordar do papa, mas é uma declaração bem mais serena do que a aposta numa disputa barulhenta sobre como o mundo foi criado. O papa mantém Deus na história, mas não pega o livro do Gênesis e o transforma num estudo de laboratório sobre como o mundo foi criado. Até porque as coisas, mesmo dentro das religiões, não é pacificada.
Ao longo dos séculos, vários teólogos e especialistas em estudos bíblicos vem afirmando que o livro do Gênesis não é uma descrição de como Deus criou o mundo, mas um conjunto de metáforas e imagens que guiaram os primeiros judeus no seu esforço de dar sentido ao mundo em que viviam. Alguns teólogos dizem ainda que os livros bíblicos são inspirações que Deus deu aos homens. Mas os homens, no final das contas, é que escreveram os livros. Não dá para colocar tudo na conta divina.
E o que é o criacionismo?
Há várias linhas criacionistas. Nenhuma corrente tão forte na sociedade é uma coisa só. Mas, grosso modo, é a ideia de que Deus criou todas as coisas de acordo com a narrativa do livro bíblico de Gênesis. E ai você já deve ter visto o problema, né? Ele trava a cabeça e a sociedade. Não dá para fazer isso sem violentar um mundo de gente.
O ensino do criacionismo viola a laicidade do Estado porque, no final das contas, volta a misturar Estado e religião. É a visão do judaísmo e do cristianismo de como o mundo foi criado aplicada à sociedade inteira. É basicamente o mesmo nó do ensino religioso. Vamos ter ensino criacionista budista? Hinduísta? Da umbanda ou do candomblé? O criacionismo, da forma como é colocado no projeto de lei de Feliciano, viola uma das características mais importantes da democracia.
A democracia é, ao mesmo tempo, o regime das maiorias e das minorias. É das maiorias porque elas votam e escolhem seus representantes. Mas é, ao mesmo tempo, o regime em que as minorias podem viver em paz sem ser massacradas pelas maiorias. Afinal, a democracia trata todos os cidadãos como iguais. Impor o ensino criacionista nas escolas da forma como Feliciano propõe é ditar a visão de mundo cristã para o conjunto da sociedade. Esse é o problema.
O respeito às religiões
Para escrever o último capítulo desse texto, é bom dizer que venho de uma família bem plural. Tenho tios católicos, uma tia mórmon, uma tia evangélica, um primo da umbanda, um primo ateu, tios e primos espíritas. De um lado da família, tenho ascendentes judeus recém-descobertos. A gente vive o pluralismo religioso nos encontros de família. Cada um acredita naquilo que lhe faz bem. As pessoas são livres para crer e para ensinar o que quiserem aos seus filhos. Nem sempre dá certo, claro. Imagine como é para uma tia católica ver um sobrinho sem o sacramento do batismo. Mas a vida é assim. As pessoas acreditam e se identificam com o que querem.
Essa liberdade de crença é uma das coisas mais bonitas do Estado laico. Ela permite que as religiões vivam em equilíbrio, sem impor suas visões e vontades umas às outras. O Estado laico não é contra as religiões. O Estado laico é a favor das religiões porque permite que elas professem o que acreditam sem que a mão pesada do governo venha contra elas. No Brasil, você pode ensinar ao seu filho que Deus criou todas as coisas exatamente como propõe o livro de Gênesis. Pode matricular seu filho numa escola que ensine o criacionismo. Mas não pode querer, felizmente, que todas as crianças do país tenham a mesma educação que você dá aos seus filhos.
Por isso o projeto de Feliciano tem de ser levado a sério. O argumento de que a maioria cristã justifica o ensino de criacionismo é um atentado à convivência civilizada entre as religiões no Brasil. É um retrocesso que nos devolve ao final do século 19. O evolucionismo, assim como outras teorias, vem sendo testado e refinado na medida em que as evidências vêm à tona. E não só ele. Ao longo das últimas décadas, a química, a biologia, a física, todas as ciências passaram por mudanças e ajustes de paradigmas. A ciência é cada vez mais aberta às evidências.
Além disso, várias escolas religiosas já ensinam criacionismo nas suas aulas. Elas não são proibidas de fazer isso. Também há várias escolas privadas que têm aulas de ensino religioso. O ponto é que os pais escolhem se querem ou não que os filhos tenham essas aulas nessas escolas. O que muitos criacionistas querem é que isso não seja mais opcional, mas obrigatório. É esse o teor do projeto de Feliciano: obrigar todas as escolas do país a ensinar o criacionismo.
O projeto de impor o criacionismo, além de impor uma visão de uma parte da sociedade para a sociedade inteira, ainda interrompe esse esforço histórico de aceitar que o mundo, felizmente, não é um monumento estático. Ele trava o mundo, e por isso que a gente precisa levá-lo a sério.
Na foto principal, o deputado Marco Feliciano (imagem de Jose Cruz/Agência Brasil)