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Deveríamos mesmo comemorar o Dia do Orgulho Nerd?

Se você checou suas redes sociais hoje, deve ter visto que 25 de maio é o Dia da Toalha ou o aniversário da estréia de Star Wars. E, não coincidentemente, é o “Dia do orgulho nerd”, como foi instituído na Espanha por um manifesto há alguns anos. O que isso quer dizer exatamente? Faz sentido […]

Se você checou suas redes sociais hoje, deve ter visto que 25 de maio é o Dia da Toalha ou o aniversário da estréia de Star Wars. E, não coincidentemente, é o “Dia do orgulho nerd”, como foi instituído na Espanha por um manifesto há alguns anos. O que isso quer dizer exatamente? Faz sentido o “conceito” de nerd hoje em dia? Se odiamos estereótipos, por que muitos de nós nos apegamos – com orgulho – a este?

Não vejo muito sentido. Para a maior parte das pessoas (há pessoas além dos que te seguem no Twitter e que lêem o Giz, aparentemente), nerd é uma maneira pejorativa de se referir a outra. Alguém  virá com a história de que na verdade “nerd é um cara que se aprofunda em alguma coisa” ou alguém mais inteligente que entende piadinhas de física, estudou mais e “vai ser seu chefe amanhã”. Esta é uma outra camada de sofisticação do conceito de nerd, que tem essas características “boas”. Mas os “não-nerds” vêem nerds como algo intrinsicamente ruim. Eu entendo o espírito do “Dia do Orgulho”, que é resgatar a beleza nérdica. Mas o meu problema é com a palavra.

A palavra, que não tem origem clara mas começou a ser usada no sentido atual na segunda metade do século passado nos EUA, é razoavelmente bem definida em inglês. No Oxford, a primeira definição de nerd é “uma pessoa que não tem habilidades sociais ou é estudioso a ponto de ser chato”. Para o Merriam-Webster, nerd é uma pessoa “sem muito estilo, não-atraente, ou socialmente inepta; especialmente: alguém muito fortemente devoto a objetivos acadêmicos ou intelectuais”. “Geek” é quase sempre um sinônimo nos artigos consultados.

Quem tem orgulho de não ter habilidades sociais? Aparentemente alguns nerds. O “manifesto” que deu origem ao dia do orgulho tem alguns direitos e deveres. Entre os direitos, o de “ter poucos (ou nenhum) amigos; direito de não ter de sair de casa; direito ao sobrepeso (ou subpeso)”. Há motivo de orgulho aí? Uma coisa é se sentir bem consigo mesmo, com a sua aparência e amizades. Isso é fundamental para a felicidade. Mas orgulho, de achar que isso é melhor? Isso é estranho para a sociedade e não sei se vai ajudar. Porque o termo nerd é carregado de conotações pejorativas, e repeti-lo não vai ajudar. Seria como pedir ao movimento LGBT instituir o “Dia do orgulho bichinha“.

Orgulhar-se de coisas indesejáveis é especialmente estranho porque quanto mais repetimos o termo nerd associado a esse tipo de orgulho, mais os “não-nerds” acham motivos para ridicularizar os nerds. Para nós, pessoas crescidas e razoavelmente equilibradas, isso faz pouca diferença. Os nerds que chegaram à fase adulta e brincam com a coisa, se orgulham e tal, provavelmente já superaram a fase do bullying escolar, nem se relacionam com esses chatos ou “dão um block” no Twitter. Mas nerd que é nerd, na acepção do termo, sofre. Ou sofreu (mais neste brilhante e desbocado texto). E a repetição do termo, o reforço do estereótipo, pode ser extremamente danosa para as crianças. É delas que temos de cuidar.

 

Nerds e crianças

A questão é muito bem explorada em Nerds: how dorks, dweebs, techies, and trekkies can save America. O livro foi escrito em 2007 por David Anderegg, PhD em psicologia infantil, e se aprofunda um bocado no tema importante, mas que tem quase zero citações acadêmicas (procurando no Google Academic, não achei um estudo relevante em PT-BR).

Anderegg explica que para crianças o mundo é preto ou branco. Quando você é moleque, existem dois tipos de animais, os com pelo (ursos, gatos e cachorros) e os sem pelo (peixe, barata, formiga). Depois de dividir o mundo, as crianças atribuem valores absolutos a cada grupo (com pelo=fofo, sem pelo=nojento), muitas vezes sem um motivo aparente. Crianças gostam de azul ou vermelho mas ODEIAM roxo ou preto. Crianças têm números preferidos. Anderegg elabora o conceito do maniqueísmo infantil e explica que, em momentos de histeria coletiva regredimos ao comportamento mais primário, de cérebro em formação: depois do trauma de 11 de setembro, por exemplo, os americanos passaram um tempo achando que toda pessoa do Oriente Médio era “do mal”.

E o conceito de nerd, onde entra nisso? Anderegg passou bastante tempo – mais de 20 anos – entrevistando crianças com problemas de relacionamento na escola. Nenhuma associava nerd a algo bom. Os que mostravam o comportamento estereotípico de nerd (bons em matemática mas não-sociáveis) se odiavam. Ninguém queria ser nerd, porque isso significa ser excluído e ridicularizado pelos “não-nerds”, ou populares. Crianças são cruéis, e para elas, chamar alguém de nerd é como chamar de “gay”. Os bullies não têm noção direito do que significa o termo (crianças não estão acostumadas a ver casais gays), mas atribuem um valor ruim a isso. Mil “dias do orgulho nerd” não vão mudar o conceito para a molecada, desculpe. E não há grandes causas para serem conquistadas pelo “movimento”, como existe por exemplo para a militância homossexual.

 

Anti-intelectualismo

Nerd é um conceito extremamente americano, que é até meio alienígena em outras culturas. O nerd é o sujeito antagônico ao “jock”, outro conceito bem típico da terra do bacon, mas que nos acostumamos de tanto ver Sessão da Tarde. O “jock” é o cara que se dá bem com todo mundo, é comparativamente meio burro e, mais importante que tudo, é atlético – esportes no colégio e universidade são bastante importantes pro povo dos EUA. Por mais que tenhamos histórias de sucesso de nerds típicos como Bill Gates ou Zuckerberg, estes não são modelos para as crianças. Todos querem ser “jocks”: a menina, que quer ser cheerleader, sonha em ficar com o quarterback. Aqui no Brasil, em menor grau, a coisa acontece também: pergunte quem o brasileiro prefere ser – Miguel Nicolelis e Marcos Pontes OU Neymar? (e você, se achando nerd, teve que googlar o nosso maior candidato a Nobel, shame on you.)

Isso acontece porque a nossa sociedade valoriza muito mais a imagem, o físico. Mas também porque, bem, quando somo adolescentes, com hormônios à flor da pele, o que importa mesmo é a atenção do sexo oposto e a aceitação social. Faz sentido o “orgulho nerd” aí? Explica Anderegg:

Em uma cultura hipersexualizada, quando as crianças aprendem que nerds são a) bons em ciências e matemática e b) esquisitões e não-sexies, eles podem perder o interesse em ciência e matemática.

Ao “se orgulhar” das habilidades intelectuais E falta de traquejo social, os nerds estão apenas reforçando o estereótipo. E o que tem acontecido nos EUA é que o sentimento anti-nerd é tão forte que há crianças que decidem se esforçar menos no colégio para serem mais cool. O resultado: as notas caem e há cada vez menos americanos na pós-graduação e mais indianos, sul-coreanos e chineses em postos acadêmicos. Não à toa: em outros lugares do mundo não-contaminados por essa cultura, a coisa é diferente. Nos filmes de Bollywood, o galã é necessariamente o cara inteligente – ser atlético é apenas tolerado. Mesma coisa para a cultura japonesa. A ideia de que há uma dicotomia entre sucesso social e intelecto é bizarra para eles. Sim, há os otakus, os mais nerds dos nerds, mas essa é a exceção.

No Brasil nós nos importamos um bocado com bobagens americanas. Essa é uma — e talvez das mais danosas — delas. Ao nos orgulharmos de coisas não desejáveis para crianças (falo do estereótipo nerd), estamos dando combustível aos não-nerds e anti-intelectuais que vão jogar mais um moleque com óculos fundo-de-garrafa na privada porque, bem, ele é franzino (ou gordo) e senta na frente. E isso pode causar ainda mais problemas de educação que já temos. É verdade que antes de haver o conceito de “nerd” no Brasil, havia o de CDF. Mas são coisas diferentes. O CDF só era irritante por ser muito mais inteligente e estudioso que a gente (e porque queria agradar o professor). Mas ele não era necessariamente gordo, fedido e sem senso estético, como nos leva a crer o conceito de nerd. Eles eram toleráveis para a galera do fundão – o povo lá de trás não queria papo, mas sabia que a menina que anotava tudo iria ser bem-sucedida.

 

Mas e o “Nerd Power”?

Alguém aí vai me dizer que ser nerd está na moda. Que essa “tribo” é cool agora. “A Rede Social” foi um sucesso, Big Bang Theory tem uma audiência enorme (as pessoas estariam rindo com ou DE nerds?), filmes de super-heróis são as maiores bilheterias de Hollywood.

E daí?

Isso só quer dizer que a cultura nerd foi assimilada, virou mainstream. Videogame já foi algo de nerd. Assim como hardcore foi de gueto ou “vale-tudo” só interessava aos bombadões. Se alguém ouvir metal e fumar maconha de manhã, jogar videogame de tarde e comentar no Twitter a luta do MMA que ele está vendo com os amigos de noite o que ele é? Um metaleiro? Maconheiro? Nerd? (Na verdade estou descrevendo um amigo de verdade, acredite.)

Importa? Pra quem? Não sei.

Certamente para um pedaço da imprensa que ainda curte os rótulos, porque são fáceis. A revista Info desse mês rebola e faz um esforço enorme para definir a “categoria” de maneira simpática, jogando todo mundo que vive diretamente com tecnologia (que abarca hoje basicamente todas as pessoas do mundo que têm smartphones, por exemplo) até, na prática, descobrir que não há sentido na categorização. Em determinado momento do texto, diz: “Com a ampliação do uso do termo, ficou mais fácil identificar o lado nerd de pessoas que aparentemente nada têm a ver com a cultura nerd.”

Se todo mundo “tem seu lado nerd”, sobra então a “cultura nerd”. Será que ela é uma subcultura, algo de nicho? Aliás, como categorizar um nerd? Acho Star Trek um porre, rio de duas piadas de Big Bang Theory, no máximo, joguei umas três sessões de RPG, tenho preguiça de instalar/customizar coisas nos meus gadgets e meu videogame hoje serve mais para Rock Band e Fifa que qualquer outra coisa. Não li Senhor dos Aneis, Guia dos Mochileiros das Galáxias ou qualquer coisa de fantasia. Mas eu posso escolher outros 150 pontos que me “enquadro” na categoria, do ponto de vista “cultural”. Pra que criar a categoria, então?

Senhor dos Aneis ganhou o Oscar de melhor filme em 2004, meu povo. Game of Thrones é a grande série do ano. Portal 2, o mais nerd dos jogos nerds, vende como água. Todo mundo passa o dia ligado na internet. Milhões de brasileirinhos que não sabem falar português e certamente vão mal em matemática jogam videogame a tarde inteira – e, depois, agridem meus olhos em fóruns. Todo mundo é nerd e ninguém é, quando isolamos a tal “cultura”.

Porque a “cultura nerd” é cada vez mais mainstream. E isso é bom! Sempre vai haver opções para quem quiser se aprofundar mais nos assuntos nerds (Anderegg tem um genial capítulo entitulado “Simarillion” sobre o assunto no livro), mas o fato é que os “signos” comumente atribuídos aos nerds são hoje quase universalmente compreendidos. E, se não forem, estão a uma googlada de distância. A resistência é fútil e a diferenciação forçada, inútil. Quer ficar repetindo “lambda lambda” e “bazzinga” e achar idiota quem comenta “chupa porcada” depois de uma partida de futebol? Bom pra você.

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Se a cultura nerd é tão abrangente, o conceito de “quem se aprofunda demais em algo” é ainda mais. E os hipsters fãs de Lost, que alimentaram uma mitologia de dar inveja a qualquer nórdico? Os malucos obsessivos em busca de fazer o café ou a cerveja perfeita? Os caras que não só jogam futebol, comentam as peladas, assistem mesas-redondas, mandam e-mail pro PVC e tentam formar o time perfeito no Cartola FC? O que são? Com o excesso de informação da internet, todo mundo pode ser nerd (ou geek, como preferem os que acham que o termo nerd tem muita conotação negativa) em alguma coisa.

 

E o que eu faço com essa minha coleção de ______?

Apesar de parecer que não até agora, eu entendo o conceito do Dia do Orgulho Nerd.

Há algumas semanas, eu e 5 bravos amigos jogamos uma partida de Here I Stand, um dos mais sensacionais jogos de tabuleiro inventados. O livro de regras tem mais de 40 páginas, cada um assume uma facção durante a Reforma Protestante do século XVI, com diferentes objetivos. Há guerras, debates religiosos e muita diplomacia. Foram cerca de sete horas de partida. Nos divertimos, rimos horrores. Há algo mais nerd que isso? Haveria, se estivéssemos caracterizados como as figuras medievais (ótima ideia para a próxima sessão!).

Então, eu entendo. O Dia do Orgulho é a hora de olhar para essa mesa cheia de pecinhas e achar normal, ignorar qualquer idiota que ache que, passar uma tarde – e noite – de sábado na companhia de outros caras e não “nabaladapegandotodasuhúúú” é coisa de perdedores, gente diferente. Eu entendo a revanche. E é legal que possamos relembrar coisas caras a nós, como o amor por qualquer mundo fantástico que seja ou expressão perdida em um filme que eu e amigos igualmente conhecedores da coisa entendam e riam. É um dia de piadas internas.

Mas, honestamente, quando você está bem consigo mesmo e seus gostos, você não precisa bater no peito, forçar a barra e separar bem os dedos médio e anular, ou ler um manifesto em um dia específico. Minha namorada não achou bizarra a partida – e ouviu com interesse quando relatei a minha aliança com o Papado contra os Otomanos (é o amor da minha vida!). Eu postei a foto de Here I Stand no meu Flickr e ninguém me xingou de “nerd”. Porque eu não tenho exatamente orgulho. E me incomoda, aliás, o orgulho babaca de achar que porque eu aprendi meia dúzia de coisas sobre o papel da Casa de Habsburgo na Espanha eu sou mais inteligente que os demais. Que os hobbies nerds são melhores. Eu adoraria jogar futebol muito melhor do que jogo, por exemplo, gostaria de comer menos porcaria e ser mais atlético. Ou gostaria de ler muito mais.

Eu não me orgulho das nerdices mas também não tenho vergonha. Eu tenho minhas camisetas nerds (adoro-as, inclusive), meu Cylon amigo e dezenas de gadgets. Mas, como vários dos amigos que participaram da nossa conversa de fim de semana, é um identificador normal, que mostra mais simpatia por um assunto que qualquer coisa, como um uniforme de time de futebol. Minhas camisetas não são minha armadura. Há uma mania infantil de colocar as pessoas em caixinhas, em estereótipos. Nós temos que lutar contra isso.

Então, que bom que somos adultos e podemos achar graça e “comemorar” o nerd. Mas seria bom se o termo, e toda sua carga negativa, desaparecesse – e acho que a única maneira é simplesmente deixar de usá-lo. Quero que meu filho e os seus coleguinhas achem normal jogar videogame e especialmente tirar notas altas, sem ganhar um nome específico por isso. É disso que precisamos ter orgulho, e não de nos discuidarmos da aparência e saber o nome de todos os ETs de Star Wars.

Mas essa é a minha opinião. O que vocês me dizem, camaradas?

Outras opiniões:
Tarja Preta
Wired
Felipe Santoro for Dummies
Rodrigo Ghedin

Nota do editor: Este texto foi originalmente publicado no dia 25 de maio de 2011, e ele continua sendo a nossa bíblia quando o assunto é o termo “nerd”.

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