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Do veneno ao frasco: entenda como são fabricados os soros hiperimunes do Butantan

Centenário, produto ainda é considerado o mais eficaz no tratamento de picadas por animais peçonhentos; Instituto é o único apto a fornecer antivenenos ao Ministério da Saúde

Do veneno ao frasco: entenda como são fabricados os soros hiperimunes do Butantan

Reportagem: Natasha Pinelli/Instituto Butantan

Todos os anos, milhares de brasileiros são picados ou atingidos acidentalmente por algum tipo de animal peçonhento – serpentes, aranhas, escorpiões e lagartas. Segundo o DataSUS, do Ministério da Saúde, só em 2022 foram mais de 280 mil casos registrados. E é no Centro Bioindustrial do Butantan, no meio da cidade de São Paulo, que são fabricados os medicamentos mais eficazes para o tratamento de possíveis agravos provocados por esses tipos de acidentes: os soros hiperimunes.

A fim de atender as necessidades de saúde pública do país, desde 1901 o Instituto é responsável pela produção dos assim chamados antivenenos. O produto é essencial para neutralizar o veneno que entra na circulação sanguínea e evitar que haja evolução para quadros mais graves, reduzindo o risco de sequelas e, o mais importante, salvando milhares de vidas.

Mas, se no passado os soros eram feitos quase que de forma artesanal, hoje sua cadeia de fabricação é altamente avançada, com equipamentos de ponta, processos bem consolidados e mais de 150 colaboradores envolvidos nas etapas produtivas.

Tudo começa com a extração do veneno daqueles animais peçonhentos considerados de “interesse médico”, ou seja, que têm potencial para causar acidentes classificados como moderados ou graves. No Brasil, é o caso das jararacas, cascavéis, corais-verdadeiras e surucucus-pico-de-jaca; das aranhas marrom e armadeira; dos escorpiões amarelo, marrom e preto; e da lagarta Lonomia.

Depois desse procedimento, as substâncias são atenuadas e transformadas em antígenos utilizados na imunização de cavalos devidamente tratados para esse fim. Isso porque os equinos produzem em boa quantidade anticorpos capazes de combater as toxinas presentes nos venenos, e que serão usados como matéria-prima para a produção dos soros hiperimunes – também conhecidos como imunoglobulinas equinas.

Atualmente, o Instituto Butantan produz oito tipos de antivenenos. Além daqueles para o tratamento de picadas por bichos peçonhentos, há soluções para o combate do botulismo, raiva, tétano e difteria, totalizando 12 opções de soros hiperimunes. A instituição também é a única no país que tem sua linha de produção de soros certificada em Boas Práticas de Fabricação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e em condições de fornecer o produto ao Ministério da Saúde.

Cerca de 600 mil frascos são enviados ao órgão federal todos os anos, e é responsabilidade da pasta repassar o produto aos estados. Esses, por sua vez, encaminham os soros aos municípios, fazendo com que o tratamento aos agravos por picadas de animais peçonhentos esteja disponível pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sem qualquer custo a quem necessite.

A seguir, entenda o funcionamento da engrenagem que garante a fabricação desse produto centenário e indispensável para a saúde da população do Brasil:

O soro antiaracnídico do Butantan é indicado no tratamento do envenenamento por aranha-armadeira, aranha-marrom ou pelos escorpiões amarelo, marrom ou preto

Etapa 1: extração do veneno
Baseado na epidemiologia dos acidentes que ocorrem em território nacional, o Butantan mantém plantéis de jararaca, cascavel, coral-verdadeira e surucucu-pico-de-jaca para a produção dos soros. Mensalmente, é feita a extração de cada um desses quatro grupos de serpentes. A coleta é rápida e indolor, e as serpentes que passaram pela ação só vão repeti-la após um intervalo mínimo de dois meses. Em 2022, foram realizados mais de 3.000 procedimentos, gerando um volume de quase 30 gramas de veneno no total.

Já a rotina de extração de aranhas e escorpiões varia de 30 a 90 dias. Para estimular a liberação do veneno, utiliza-se um aparelho elétrico que não afeta a saúde do animal. No caso dos escorpiões, a substância é coletada diretamente em um tubo, enquanto a das aranhas é recolhida com o auxílio de uma pipeta. Anualmente, cerca de 120.000 extrações são realizadas com esses aracnídeos.

Por fim, há o veneno das Lonomias. Coletada sob demanda, a substância é obtida por meio de um “extrato” de cerdas da lagarta, que precisam ser cortadas, maceradas e, depois, separadas para obtenção da substância na forma líquida.

A produção dos soros hiperimunes envolve a obtenção de plasma de cavalos imunizados com antígenos produzidos a partir de venenos, toxinas ou vírus

Etapa 2: obtenção do plasma hiperimune
Os venenos extraídos são encaminhados para um laboratório, onde são liofilizados e armazenados até o momento de serem utilizados na imunização dos cavalos – que antes de seguirem para essa etapa, passam por uma avaliação clínica detalhada. Seguindo o planejamento de produção, estabelecido conforme as demandas do Ministério da Saúde, esses venenos são encaminhados à Fazenda Joaquim, localizada a cerca de 50 km da cidade de São Paulo.

É lá que os venenos congelados são diluídos e também podem receber um componente adjuvante que aumenta a resposta imunológica dos animais, dando origem aos antígenos. O esquema de imunização dos equinos varia de acordo com cada serviço (tipo de veneno a ser aplicado e, consequentemente, do soro a ser produzido), podendo abranger de duas a quatro doses, com intervalos de uma semana.

Quando os cavalos atingem o pico de produção de anticorpos, é feita a coleta do plasma por via automatizada – a chamada plasmaférese. O processo permite a retirada da parte líquida do sangue do animal, que contém as imunoglobulinas capazes de ajudar o organismo a se recuperar diante de possíveis casos de envenenamento. Para isso, o animal é conectado a um sistema que separa o plasma das hemácias, que são imediatamente devolvidas ao organismo do equino. Passadas de três a quatro horas, o processo termina e os cavalos recebem uma nova avaliação veterinária. Depois de liberados, eles são encaminhados aos piquetes para um descanso mínimo de 30 dias, até que se inicie um novo ciclo de imunização e coleta de plasma.

Em 2022, 38.000 litros de plasma foram coletados.

O volume de plasma obtido é submetido a processos industriais de purificação e formulação

Etapa 3: processamento do plasma
Após a realização de testes de controle de qualidade, as bolsas de plasma coletadas permanecem armazenadas entre 2°C e 8°C, até serem encaminhadas à planta industrial do Butantan na capital paulista, onde será realizado o processamento dos plasmas hiperimunes. Na chegada, o material passa por inspeção visual e assepsia, para depois ser acondicionado em câmara fria.

Em ambiente controlado, as bolsas são cortadas e o conteúdo despejado em um tanque até acumular de 200 a 300 litros de plasma. O líquido é bombeado para uma sala onde começa o processo de precipitação seguido de uma centrifugação, permitindo assim a separação da proteína de interesse. A massa resultante dessas etapas é bombeada para um outro tanque, onde ocorre a diluição e a clivagem da proteína.

Uma nova centrifugação é feita para eliminação de outras substâncias que não são interessantes para o processo. Depois, acontece a diálise. Nessa fase, o produto passa por um equipamento de ultrafiltração, também para a retenção de partículas que não são desejáveis. Por fim, ocorre uma etapa adicional de purificação por meio de um equipamento de cromatografia industrial.

Seguem-se os estágios de concentração, em que o produto final representará um percentual variável do volume de plasma inicial; e uma última filtração para redução da carga microbiana. O material é acondicionado em câmara fria, até ser enviado para a formulação e o envase. Em 2022, foram produzidos cerca de 2.000 litros de soro concentrado.

No último ano, o Butantan forneceu mais de 600 mil frascos de imunoglobulinas ao Ministério da Saúde

Etapa 4: formulação, envase e acondicionamento
Dependendo do resultado de potência obtido, o produto pode ser submetido à formulação, que consiste na diluição e ajustes de componentes até um valor próximo do exigido pelo controle de qualidade. A formulação também é necessária no caso dos soros combinados, quando dois antivenenos concentrados são misturados e dão origem a um único produto capaz de neutralizar dois tipos de venenos ou toxinas – como o soro antibotrópico e antilaquético, indicado no envenenamento por serpentes dos gêneros Bothrops ou Lachesis (surucucu-pico-de-jaca); e do soro antibotrópico e anticrotálico, para acidentes por serpentes do gêneros Bothrops ou Crotalus. Para garantir a isenção de todo e qualquer microrganismo, o produto passa por mais uma filtração, seguida por etapas de homogeneização.

No envase, os frascos utilizados são previamente lavados e submetidos a um processo de despirogenização a fim de eliminar qualquer microrganismo que possa estar contido nos vidros. Os frascos são preenchidos com o produto final e recebem uma tampa de borracha, que é lacrada por meio de um sistema de recrave. Por último, é feita uma inspeção visual automática por um sistema de 10 câmeras capazes de identificar qualquer tipo de partícula. Só então o frasco segue para a rotulagem e o acondicionamento nas caixas, quando também é inserida a bula do medicamento.

Atualmente, o Butantan é a única instituição apta a fornecer soros hiperimunes ao Ministério da Saúde

Etapa 5: qualidade
A fabricação de soros hiperimunes do Butantan está em conformidade com as Boas Práticas de Fabricação (BPF) estabelecidas pela ANVISA. No geral, mais de 30 testes de controle de qualidade são realizados ao longo de toda a cadeia produtiva de cada um dos 12 soros hiperimunes. Há inspeções fisicoquímicas, como análise de proteínas, cloreto, pH, aspecto visual e vedação; microbiológicas, como contagem de bactérias, fungos e leveduras; e biológicas, como atividade imunogênica e potência in vitro ou in vivo. Por fim, toda a documentação de registro de produção do lote, nas suas diferentes etapas, é conferida e aprovada antes da liberação do produto ao Ministério da Saúde.

 

* Este conteúdo contou com a colaboração da diretora técnica de produção de soros do Instituto Butantan, Fan Hui Wen.

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