Este é um cenário dos pesadelos, vindo diretamente de um drama blockbuster: um casal que quer ter um filho visita uma clínica de fertilidade para tentar sua sorte com fertilização in vitro, e acidentalmente são engravidados pelo esperma errado.
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Em um fascinante caso legal em Singapura, a Suprema Corte do país decidiu que essa situação não constitui apenas negligência médica. A clínica de fertilidade, decidiu o tribunal recentemente, deverá pagar aos pais 30% dos custos de criação de sua criança por causa de uma perda de “afinidade genética”. Em outras palavras, a clínica deverá pagar aos pais pensão alimentícia não apenas por terem cometido um terrível erro médico, mas porque a criança acabou com os genes errados.
Em um momento em que a ciência avança rapidamente e a tecnologia coloca no campo da realidade coisas como embriões geneticamente projetados para evitar doenças, o caso abre um precedente intrigante. Primeiro, ele coloca um valor monetário na quantidade de DNA que uma criança compartilha com seus pais. E sugere que a composição genética básica de uma criança pode na verdade estar “errada”.
“(O caso) Sugere que a criança em si tem algo de errado, geneticamente, e que isso tem valor monetário atrelado a si”, Todd Kuiken, pesquisador sênior do Genetic Engineering and Society Center, na Carolina do Norte, disse ao Gizmodo. “Eles ligaram danos à composição genética da criança, em vez do erro. Essa é a parte que torna (a situação) desconfortável. Isso pode te levar a uma série de direções complicadas.”
No caso em questão, o casal passou por um procedimento de fertilização in vitro bem-sucedido no Thomson Medical Centre, em Singapura, e deu à luz uma bebê saudável em 2010. Pouco tempo depois, no entanto, o casal suspeitou que algo estivesse errado. As características de sua filha pareciam marcadamente diferentes de suas próprias e daquelas de seu primeiro filho. Um teste genético confirmou, pouco depois, que sua filha estava relacionada à mãe, mas não ao pai. O centro médico então confirmou o erro: o esperma de um doador anônimo havia sido acidentalmente usado para inseminar o óvulo da mãe. O casal era de ascendências chinesa e alemã. Mas o pai genético da filha do casal era indiano.
O casal entrou com um processo contra o centro médico, buscando a reparação dos danos, incluindo os custos de criação da criança até seus 21 anos. O tribunal enfim reconheceu esses danos, estabelecendo um novo padrão legal. O fato de sermos relacionados a nossos filhos ou não, estabeleceu o tribunal, é altamente valioso na sociedade — é, afinal de contas, a razão pela qual tantas pessoas gastam tanto tempo e dinheiro em procedimentos de fertilização in vitro, em primeiro lugar.
De maneira interessante, o tribunal decidiu estabelecer uma nova categoria de perda, a de afinidade genética, para evitar enviar a mensagem de que o nascimento da criança em si foi um erro, uma base sobre a qual tribunais frequentemente negam alegações de nascimento prejudicial. Esses casos frequentemente surgem quando, digamos, um dos pais foi esterilizado, mas o casal engravida mesmo assim. Em um caso de “fertilização prejudicial” em Nova York, a Suprema Corte Estadual decidiu que “não pode ser dito, por motivos de política pública, que o nascimento de uma criança saudável constitui um dano reconhecível perante a lei”.
No caso de Singapura, no entanto, o tribunal discordou. Os pais têm um direito legal de compartilhar traços como a cor do olho ou o tom de pele com seus filhos, decidiu. O tribunal tomou essa decisão com base em um artigo de revisão de lei obscuro de 1999 que argumenta que “pais têm um interesse em ter crianças com quem compartilham traços simbólicos de identificação”. Isso, por si só, levanta vários tipos de questões.
“Isso significa que crianças adotadas são mais ou menos valiosas?”, questionou Kuiken. “Ou você pode imaginar um cenário de divórcio em que a pensão alimentícia é determinada pela porcentagem de genes que um pai compartilha com a criança. Ou a culpa é colocada em um dos pais pela criança herdar uma doença em particular.”
De acordo com Eleonore Pauwels, especialista em política científica do Wilson Center, a decisão define parentesco como algo que se resume à superfície. “Definir alguém por seu genótipo é a maneira mais reducionista de se olhar para uma identidade”, disse Pauwels ao Gizmodo. “Afinidade genética é um conceito tão superficial. Ele questiona a própria base do que torna alguém pai.”
Mas os problemas que essa decisão judicial levanta se estendem além da afinidade genética. Ao criar essa nova categoria de perda, o tribunal buscou evitar sugerir que houvesse algo inerentemente errado com o nascimento da criança, mas a decisão, ao mesmo tempo, sugere que traços genéticos específicos são mais valiosos que outros.
Pauwels disse que, para ela, isso lembra uma citação específica no filme de ficção científica Gattaca, de 1997: “Eles costumavam dizer que uma criança concebida no amor tinha uma chance maior de felicidade. Eles não dizem mais isso”.
“Isso prepara o terreno para muito mais discriminação personalizada, a nível de genoma”, ela disse.
E se, por exemplo, uma mãe descobrisse que ela tinha uma doença mitocondrial devastadora, passou pela controversa técnica “filho de três pais” para evitar passar esse DNA para sua criança, e isso falhasse? Ela poderia processar pelo DNA da criança — a sua existência — estar incorreto? Indo mais além, se a ciência e a lei permitirem aos pais selecionar traços genéticos específicos, você poderia entrar com um processo se seu filho tivesse a cor de olho errada ou um nível de QI abaixo do esperado? Se você projetasse uma criança e ela acabasse tendo mais “afinidade genética” com um pai do que com outro, isso constituiria algum tipo de perda?
“Isso abre uma caixa perigosa quando começamos a falar de editar o genoma humano”, afirmou Kuiken. “Uma decisão como essa deposita valor na composição genética de uma criança.”
Obviamente, os pais no caso de Singapura foram a parte prejudicada em um erro médico devastador. Mas ao decidir que os genes de sua criança acabaram com uma garantia de recompensa financeira em um tribunal de justiça, o tribunal está colocando valor em seus genes, intencionalmente ou não. E esse é o princípio de um declive muito escorregadio.
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