Por que somos contra as franquias no serviço de banda larga fixa

Que os usuários continuem se mobilizando e que consigam pressionar empresas e autoridades para uma proposta mais adequada.

O Gizmodo Brasil é contra o estabelecimento de franquia de internet para o serviço de banda larga fixa. Acreditamos que a medida tornará a internet menos democrática e que tudo parece ter sido decidido no “tapetão”. A melhor maneira de não frear o desenvolvimento da rede é deixá-la ilimitada.

Entendemos que a discussão sobre como lidar com o grande aumento do uso de dados nos últimos anos é pertinente, pois as pessoas têm usado serviços de vídeo, jogado games online e a Anatel (Agência Nacional das Telecomunicações) obriga que operadoras entreguem um mínimo de velocidade, sob pena de multa.

Mas é preocupante a forma como a Anatel vem tratando o assunto. O presidente do órgão, José Rezende, declarou que “a era da internet ilimitada acabou” e gerou comoção nas redes sociais. Também teve impacto negativo o comentário de Rezende sobre quem “fica jogando o tempo todo” e acaba gastando um volume de banda muito grande.

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Para dar razão às operadoras, a agência reguladora se apoiou na resolução nº 614/2013, que prevê a franquia, e deixou o jogo rolar – até que as pessoas começaram a reclamar e o Ministério Público Federal cobrou explicações, fazendo com que o órgão suspendesse as franquias por tempo indeterminado.

Chama a atenção também o fato de as empresas quererem implementar esse modelo de negócio no país, sendo que, segundo a ITU (agência de telecomunicações da ONU), 70% dos países têm internet ilimitada até mesmo nos pacotes mais básicos.

Outro agravante é o fato de o Brasil ainda ser um país pouco maduro no que diz respeito à democratização do acesso: apenas 33% dos domicílios têm esse tipo de conexão*, de acordo com os últimos dados da pesquisa TIC Domicílios.

O governo brasileiro tem culpa nesse processo, como observou recentemente Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, em artigo na Folha. As autoridades não perceberam o quanto a internet ajuda na evolução de todos os setores da economia e deixaram de lado a construção de uma infraestrutura decente. Lembra do PNBL (Plano Nacional de Banda Larga)? Parece que não deu muito certo.

O governo lançou em 2010 o programa para tentar conectar 35 milhões de pessoas até 2014, desses conseguiu apenas 22,9 milhões. Recentemente, foi sinalizado que era necessário fazer um novo plano que levasse fibra óptica a vários municípios. Estava previsto para ser apresentado em março. Ficou só na promessa.

Com tudo isso, infelizmente, fica uma brecha para as operadoras alegarem que as redes estão congestionadas e que as franquias seriam uma forma de tornar o negócio sustentável.

Consequências

Mais do que incomodar os usuários de banda larga, a medida pode provocar consequências graves. Autorizar as operadoras a migrarem para um modelo de franquia pode tornar a internet ainda menos democrática no país. Ou seja, quem tem mais dinheiro vai acabar pagando por um serviço de internet ilimitada, enquanto a maioria precisará recorrer a pacotes mais baratos e com restrições.

O impacto disso não é apenas deixar de ver Netflix, como também deixar de ter atualizações de software, tanto de dispositivos móveis como de computadores. Na ânsia de economizar a franquia, não duvidamos que usuários desliguem atualizações automáticas, tornando-se mais vulneráveis a brechas de segurança.

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Serviços de streaming, como Netflix, podem ser privilégio para poucos

A situação é ainda pior fora de grandes centros. A banda larga fixa chega a 100% dos municípios, mas pode custar uma fortuna por velocidades baixas – e esses clientes ainda teriam que lidar com uma franquia pequena. Ver vídeo por streaming, por exemplo, seria um luxo em locais sem uma franquia de dados considerável.

Novas tecnologias dependem de velocidade de banda e consumo de dados. O próximo passo em tecnologia de TV é o 4K. A reprodução de um vídeo com essa qualidade exige 25 Mbps e muitos dados. O Netflix, por exemplo, estima que em uma hora são gastos 7 GB em vídeos com essa qualidade. Quem tem um plano limitado precisará calcular quanto poderá assistir, e ter um controle bem detalhado do consumo.

Outra tecnologia que pode ter o desenvolvimento freado é a realidade virtual. Ainda em fase beta, ela é vista como a próxima grande plataforma para empresas como o Facebook e estúdios que já estão desenvolvendo games compatíveis com a funcionalidade. Pode haver sistemas melhores de compressão de arquivos no futuro, mas a curto prazo pode atrapalhar a evolução de iniciativas de realidade virtual no mercado. Inclusive, isso poderia fazer desenvolvedores locais pensarem ainda mais no mercado externo como foco, o que deixaria o país de fora da inovação.

Estabelecer um limite para internet também é problemático no que diz respeito à neutralidade de rede: forçar empresas gigantes a pagarem as operadoras para que seus serviços fiquem fora dessa franquia, como já acontece no ambiente móvel. Isso pode, por exemplo, inibir a criação de um concorrente para o Netflix.

De fato, as teles estão claramente insatisfeitas com serviços que dependem da internet, e que lucraram durante todos esses anos com a infraestrutura das operadoras. Antes, as teles forneciam serviços de voz e SMS. Aí vieram WhatsApp, Telegram e afins e ofereceram o mesmo usando a internet.

As empresas que fornecem link de internet estão no mercado de TV por assinatura; no entanto, serviços como Netflix e YouTube têm crescido exponencialmente e, mais uma vez, oferecem um serviço acessível que usa a internet. A franquia é uma forma de barrar esses concorrentes e a evolução tecnológica.

O que fazer?

Em um cenário ideal, a melhor alternativa é que todos os planos de internet fixa sejam ilimitados, pois só assim os usuários conseguem explorar a rede em sua totalidade. É muito mesquinho dizer que a culpa é apenas de quem joga online, como sugeriu o presidente da Anatel. As franquias parecem ser uma forma de punir uma minoria, obrigando toda a massa de usuários a ter de se readequar.

Em um cenário catastrófico em que as operadoras implementem planos com franquias, é importante primeiro que haja opções ilimitadas e sem preços abusivos. Além disso, é necessário considerar algumas questões pontuais, como locais onde há apenas um fornecedor de banda larga fixa. Nessas regiões, é injusto ter uma internet com limites. Isso é comum em cidades pequenas em que uma conexão de baixa velocidade costuma ser cara. É o mínimo que se pode fazer para compensar a falta de concorrência.

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Anatel suspendeu franquias de internet por tempo indeterminado. Crédito: Flickr/Anatel Informa.

Outro ponto é a tentativa de implementar tudo sem se comunicar minimamente com os consumidores e sem uma discussão séria, que até o Conselho da Anatel reconheceu que não houve. Como implementar franquias sendo que mal sabemos ao certo quanto usamos por mês?

Mesmo assim, ainda consideramos a opção com franquia a pior para o país. É tirar por antecipação o direito a uma internet plena a milhares de pessoas que ainda nem se conectaram.

Que os usuários continuem se mobilizando e que consigam pressionar empresas e autoridades para uma proposta mais adequada. Este editorial é a nossa parte nesta briga e também um compromisso de que faremos o pudermos para que isto não seja decidido no tapetão.


Nos próximos dias, o Gizmodo Brasil publicará textos com a opinião das partes envolvidas no debate sobre implementação de franquia em internet fixa.

Foto por annca/Pixabay

*A proporção de domicílios com acesso à internet em 2014 era de 50%. Desses domicílios, 67% tinham banda larga fixa.

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