Não é raro que a história do Dia Internacional da Mulher seja contada do jeito errado: a versão mais comum afirma que em 8 de março de 1857, cerca de 130 operárias de uma fábrica de tecidos em Nova York teriam feito uma greve um busca de melhores condições de trabalho e que o cruel dono do negócio as teria trancado na confecção e ateado fogo em tudo para que as rebeldes morressem carbonizadas. Parece sangrento demais, mas o mais absurdo é que a história real não é tão diferente assim: o incêndio na fábrica de tecidos realmente aconteceu, mas no dia 25 de março de 1911, e matou 146 pessoas — 123 mulheres e 23 homens. Ele ocorreu na sede da Triangle Waist Company e a história de que as portas estavam trancadas também é verdadeira: naquela época, trancar as portas das fábricas era uma prática comum para controlar a saída dos funcionários, já que todas os pertences pessoais deles eram revistados no intuito de evitar o roubo de materiais e também para impedir que os empregados dessem aquela paradinha estratégica trabalho para fumar ou descansar. As investigações da época concluíram que o fogo começou por causa de uma bituca de cigarro mal apagada e os donos da fábrica foram processados pelo expediente de manter as portas trancadas.
Embora esse incêndio não deixe de ser um dos marcos que precedeu a existência de um Dia da Mulher, a data já existia desde o início do século XX. Em 1908, mais de 15.000 mulheres foram às ruas de Nova York para uma manifestação para exigir jornadas de trabalho menores, salários dignos e o direito ao voto. No ano seguinte, o Partido Socialista dos EUA passou a comemorar o Dia Nacional da Mulher em 28 de fevereiro. Em 1911, o Dia da Mulher se tornou internacional e alguns países, como Áustria, Dinamarca e Alemanha, passaram a comemorá-lo em 19 de março. Em 1913, as mulheres russas fizeram uma campanha contra a Primeira Guerra Mundial e transferiram a data para 8 de março, e desde então esse tem sido o Dia Internacional da Mulher.
A mulher e a tecnologia
Contra tudo e contra todos, as mulheres desempenharam um papel fundamental na história da tecnologia. Ada Lovelace desenvolveu o primeiro algoritmo a ser processado por uma máquina. Grace Hopper foi a criadora daquele que é considerado o primeiro software de computador. A irmã Mary Kenneth Keller (sim, uma freira!) foi a primeira norte-americana a conseguir um PhD em Ciência da Computação e participou da criação da linguagem BASIC. Felizmente, vivemos uma época em que não é difícil encontrar exemplos de mulheres em altos cargos de grandes empresas relacionadas com tecnologia: Marissa Mayer atualmente é CEO da Yahoo e anteriormente foi a vigésima funcionária a ser contratada pelo Google, onde trabalhou por muitos anos. Meg Whitman é CEO da Hewlett-Packard, com passagens anteriores pela Disney, DreamWorks, Procter & Gamble e pela Hasbro. Sheryl Sandberg é COO do Facebook. Passando os olhos pelos currículos estarrecedores dessas mulheres, pode parecer que estamos reclamando de barriga cheia, mas isso não é verdade. O fato de Sandberg ter escrito um livro chamado Faça Acontecer, que carrega o subtítulo Mulheres, Trabalho e a Vontade de Liderar nos dá a pista de uma realidade que está aí para quem quiser ver: o mercado de tecnologia ainda é um setor dominado pelos homens. Isso está mudando? Sim. A paridade entre homens e mulheres já é a ideal? Longe disso.
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Na introdução de Faça Acontecer, Sheryl diz o seguinte:
“(…) Mas não é por saber que as coisas podiam ser piores que deixaremos de tentar melhorá-las. Quando as sufragistas marchavam pelas ruas, imaginavam um mundo de verdadeira igualdade entre homens e mulheres. Passado um século, ainda temos que forçar a vista para tentar enxergar melhor essa imagem.
A verdade nua e crua é que os homens ainda comandam o mundo. Isso significa que, quando se trata de tomar as decisões mais importantes para todos nós, a voz das mulheres não é ouvida da mesma forma. Dos 195 países independentes do mundo, apenas dezessete são governados por mulheres. As mulheres ocupam apenas 20% das cadeiras dos parlamentos no mundo. Nas eleições de novembro de 2012 nos Estados Unidos, as mulheres conquistaram um número de assentos no Congresso que ultrapassa todos os anteriores, alcançando 18%. No Brasil, 9,6% das cadeiras no Congresso são ocupadas por mulheres.
A porcentagem de mulheres em papéis de liderança é ainda menor no mundo empresarial. Entre os diretores executivos das quinhentas empresas de maior faturamento nos Estados Unidos, apontadas pela Fortune, as mulheres correspondem a magros 4%. Nos Estados Unidos, elas ocupam cerca de 14% dos cargos de direção executiva e 17% dos conselhos de diretoria, números que quase não mudaram em relação à última década. Essa defasagem é ainda pior para as mulheres não brancas, que ocupam apenas 4% do alto escalão das empresas, 3% dos conselhos diretores e 5% das cadeiras do Congresso. Por toda a Europa, as mulheres ocupam 14% dos conselhos de diretoria. No Brasil, as mulheres ocupam cerca de 14% dos cargos executivos na quinhentas maiores empresas do país. Na América Latina como um todo, apenas 1,8% das maiores empresas tem mulheres na direção executiva.”
Mais adiante, Sheryl afirma que parece que a revolução empacou. Em seguida, ela fala sobre os obstáculos concretos que as mulheres encontram no mercado de trabalho: o machismo descarado ou sutil, a discriminação e o assédio sexual. Para completar, ela diz que não nos bastam as barreiras externas levantadas pela sociedade; ainda somos tolhidas pelas nossas barreiras internas — resultado de anos e anos sendo criadas como mocinhas que recuam, que devem falar usando rodeios, que iniciativa é coisa de homem e que jamais devemos mostrar a envergadura que realmente temos — isso pode deixar os homens assustados.
Meninas e rapazes: acho que chegou a hora do susto e acredito que somos civilizados o suficiente para que ninguém morra dele.
A história do Mercado de TI no Brasil
Em 1960, a PUC-Rio foi a primeira universidade do país a criar um Departamento de Informática. Em 1968, a UNICAMP lançou o Bacharelado em Ciência da Computação, primeiro curso de nível superior relacionado da tecnologia no Brasil. O Instituto de Matemática e Estatística da USP abriu vagas para o mesmo curso em 1974. Se você teve a oportunidade de ver um curso de Ciência da Computação ou de Sistemas de Informação na última década, sabe que o número de mulheres cursando essas faculdades é baixíssimo. Mas o aspecto mais curioso aqui é o seguinte: quando as turmas de cursos com foco em tecnologia começaram a ser criadas em nosso país, a maioria dos estudantes dessas fileiras eram mulheres. Assim sendo, boa parte dos pioneiros em computação no Brasil eram mulheres. Mas por que razão a situação se inverteu tão drasticamente? A resposta é bem simples: as mulheres estudavam tecnologia quando a profissão era nova no país e ainda não dava dinheiro. Mais tarde, quando a formação nessa área se tornou mais valorizada, os homens passaram a buscar essas cadeiras.
Vamos aos números
Segundo o PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2009, apenas 20% do universo de cerca de 520 mil pessoas que trabalhavam com Tecnologia da Informação no Brasil eram mulheres.
Nesse mesmo Censo, averiguou-se que as mulheres perfaziam somente 15% do corpo discente dos cursos relacionados a carreiras na área de Tecnologia da Informação.
O número de alunas que se formam nesses cursos mostra um fracasso retumbante: 79% das mulheres que ingressam para cursar essas faculdades abandona o curso no primeiro ano.
Em 2010, o salário das mulheres que trabalhavam em TI era 34% menor que o dos homens.
Quando se trata de cargos de gerência, a diferença aumenta ainda mais: o salário das mulheres fica 65% menor que o dos homens.
A área de tecnologia não é a grande vilã da paridade salarial no Brasil. Ela apenas acompanha a desigualdade salarial entre homens e mulheres que não é um privilégio brasileiro, podendo ser vista no mundo inteiro — em alguns lugares mais, em outros lugares menos, mas sempre tendo as mulheres como piso e os homens como teto. E essa desigualdade continua perseguindo as mulheres ao longo da carreira, mesmo que elas consigam alçar altos patamares: a renda futura em potencial continua sendo maior para os homens e menor para as mulheres.
Os argumentos
A argumentação favorita para ser usada quando se fala da falta de profissionais mulheres no mercado de TI costuma ser “falta interesse da parte das mulheres”. Não é preciso estar sondando as fronteiras da genialidade para fazer um raciocínio rápido: se 79% das mulheres abandona o curso no primeiro ano, pode ser que o problema esteja no curso e não nas mulheres. E não no curso em si, enquanto metodologia, mas sim no ambiente encontrado pelas mulheres que se aventuram numa carreira preponderantemente masculina: é ridiculamente fácil dizer que as mulheres não se esforçam o suficiente ou não têm pendor para as ciências exatas quando se escolhe esquecer que por ser minoria em qualquer lugar é uma tarefa que pode variar do difícil até o debilitante. Acreditar que os 79% de mulheres desistem dos cursos de TI por desilusão, preguiça e incompetência e que tudo isso não tem relação nenhuma com o ambiente é de uma inocência quase que enternecedora.
O segundo argumento mais usado é tão antigo que poderia ser datado por carbono-14: “as inteligências dos homens e das mulheres são diferentes e é por isso que elas tendem a preferir as carreiras de humanas às de exatas”. Essa questão já foi e continua sendo discutida até a exaustão por leigos e cientistas e as opiniões costumam ser divididas: existe diferença entre as inteligências masculina e feminina? As pesquisas vêm sendo feitas e ainda não existe uma resposta razoável para a indagação, mas algumas descobertas podem fazer com que as pessoas que se valem desse argumento passem a usá-lo com mais parcimônia: os testes de QI — que vêm perdendo seus tronos à medida que as teorias das múltiplas inteligências avançam — foram um reino masculino por mais de um século, mas James Flynn, um pesquisador neozelandês considerado um dos maiores especialistas do mundo em testes de medição de quociente de inteligência, mostrou numa pesquisa que a supremacia intelectual masculina já não é mais a mesma quando se trata de lógica: depois de testar europeus, americanos, australianos, neozelandeses e estonianos e argentinos, ele concluiu que na maior parte das vezes as mulheres vencem os homens. Mas por que isso aconteceu só agora? Bom, porque não faz tanto tempo assim que um número maior de meninas vêm recebendo educação formal da mesma qualidade daquela que é dada aos meninos. Além disso, nossos cérebros e, por consequência, nossas inteligências são elementos extremamente plásticos e a estrutura do intelecto não é rígida: quando as mulheres recebem o mesmo incentivo e as mesmas oportunidades que os homens, elas podem ser tão boas quanto eles em qualquer área.
Especial de Dia da Mulher – Entrevistas
Fizemos cinco perguntas para duas profissionais de TI, sobre como é ser mulher no mercado de tecnologia da informação. Como foi a época de formação, quais são os desafios e o que poderíamos fazer para minar o preconceito contra as mulheres. Leia abaixo:
>>> [5 perguntas] Claudia Melo, da ThoughtWorks, conta como é ser mulher no mercado de tecnologia
Menos conversa, mais ação
Tudo isso dito, será que não chegou a hora do Dia Internacional da Mulher deixar de ser uma data em que recebemos flores e bombons e precisamos ouvir comentários elogiosos sobre mulheres que conseguem ser guerreiras sem deixar de lado a delicadeza? Mesmo porque não é incomum que as mulheres que seguem carreiras predominantemente masculinas precisem perpetrar um apagamento da imagem feminina para conseguirem impor respeito entre os funcionários homens. Já passou da hora disso mudar, mas o mercado e as pessoas que estão dentro dele ainda entendem vaidade como futilidade e apuro estético como ocupação de cabecinhas vãs.
Em sua tese de doutorado, Bárbara Castro, doutora em Ciências Sociais e professora do Departamento de Sociologia da UNICAMP, destaca que boa parte daquilo que imaginamos serem diferenças entre os gêneros são, na verdade, construções sociais:
“Quero argumentar, com isso, que uma série de processos e elementos confluem para explicarmos a grande diferença numérica existente entre homens e mulheres no setor. A associação da área tecnológica e de exatas como o universo masculino, processo historica e socialmente construído, é reproduzida e incorporada pelos indivíduos nos processos de socialização escolar e familiar. Além disso, o reconhecimento da TI como área dinamizadora da economia mundial conferiu a ela prestígio e poder, atraindo os antes desinteressados homens a um campo profissional de reconhecida relevância.”
Precisamos parar de enxergar as mulheres como anjos de candura dispostos a se desfazer em cuidados para com o próximo, delicadeza e servidão, enquanto os homens ficam com a primazia da parte técnica das profissões. Precisamos que mais mulheres tenham a oportunidade e as condições de se tornarem especialistas técnicas. E precisamos de mais homens aptos a ter cuidado e atenção com o próximo, homens que sejam delicados e sensíveis e homens que saibam servir quando é necessário — e quem acha que essas atitudes são coisa de mulherzinha e que se esforçar para adquiri-las pode fazer com que você pareça menos masculino está pelo menos uns 50 anos atrasado pro bonde da História.
E poderíamos aproveitar a deixa para parar com essa conversa mole de “eu nunca vi isso acontecer”, “essas notícias de violência contra a mulher são casos isolados”, “preconceito contra mulheres não existe mais, aqui onde eu trabalho, por exemplo…”. Se você vive num universo em que isso não acontece, parabéns, porque você deve ter se associado ao melhor grupo de pessoas do mundo. Mas é sempre bom lembrar de algo óbvio que nos esquecemos com frequência: a situação em que vivemos é um recorte e não a realidade de todos. Parece bobo lembrar disso? E é. Parece bobo desenvolver um argumento que utilize o particular para tecer um comentário sobre o geral? E é, mas as pessoas parecem não perceber isso e vivem fazendo.
A boa formação profissional é um direito de qualquer um que a deseje. E um bom profissional é aquele que desempenha bem tanto suas tarefas técnicas como as tarefas sociais, o relacionamento com os colegas de trabalho. Não precisamos deixar a primeira parte para os homens e a segunda para as mulheres — ambos devem coexistir dos dois lados. Mas perceber que o preconceito com as mulheres no mercado de trabalho ainda existe não é fácil para todos e não é do dia para a noite que as pessoas se deixam convencer disso. De modo que é necessário que as pessoas passem a observar as situações do dia a dia com mais atenção e apuro para entender como se dão as dinâmicas do preconceito, seja ele aberto e perceptível ou velado e disfarçado. A auto-conscientização é um processo demorado e complexo, mas é um dos mais efetivos. A questão é: de quantas epifanias pessoais você precisa para começar a acreditar que as mulheres sofrem preconceito e passar a ajudar para que isso deixe de acontecer?
A ideia é que chegue um momento em que atinjamos tal grau de igualdade que um dia para homenagear as mulheres soe antiquado e retrógrado. Tão antiquado e retrógrado quanto não estar se esforçando para deixar de lado os preconceitos de gênero em pleno século 21.
[Imagem de destaque por Niege Borges]
Para saber mais:
Afogados em contratos: o impacto da flexibilização do trabalho nas trajetórias dos profissionais de TI – A tese de Doutorado de Bárbara Geraldo de Castro.