Ciência

Especialista no mosquito da dengue, ela saiu de casa aos 15 anos para realizar o sonho de se tornar cientista

Rafaella Ioshino cresceu no interior da Bahia e percorreu diferentes estados para poder estudar; na maternidade, encontra uma motivação a mais para contribuir para a saúde pública
Fotos: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan

Reportagem: Aline Tavares/Instituto Butantan

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Diferente da maioria das pessoas, que corre para pegar a raquete elétrica quando vê um mosquito perturbando seu lar, a bióloga e pós-doutoranda do Instituto Butantan Rafaella Sayuri Ioshino, 40, tem um carinho especial por esses insetos. Foi o desejo de estudá-los e combater as doenças que eles transmitem que moldou sua carreira de pesquisa, sempre pautada em contribuir para a saúde da população brasileira. O sonho de ser cientista a motivou a sair de casa aos 15 anos e mudar-se sozinha de Barreiras, uma pequena cidade do interior da Bahia, para Goiânia, a capital de Goiás, em busca de um ensino melhor.

Após peregrinar por diferentes estados, com o apoio e esforço dos pais, Rafaella se instalou em São Paulo, formou uma família e, há 14 anos, se dedica diariamente a pesquisar mosquitos. O resultado da experiência é claro para quem passa alguns minutos conversando com ela: com olhar treinado, a cientista consegue identificar, facilmente, se um inseto que está voando ao redor é um mosquito ou não, e qual é a espécie.

Ficar longe da família não foi simples, mas desistir não estava nos planos. Seu pai dizia que, se era aquilo que ela desejava, iria valer a pena. “Eu saí de casa muito jovem e tive que aprender a lidar com a saudade, a me virar sozinha em uma cidade grande… Foi muito difícil. Mas eu sempre quis fazer uma faculdade pública e sabia que, se voltasse, não teria todas as ferramentas necessárias para alcançar esse objetivo”, conta.

Rafaella fez Ensino Médio em Goiânia e graduação em Biologia na Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, onde conseguiu uma bolsa de iniciação científica na parasitologia para estudar o Trypanosoma cruzi, protozoário que causa a doença de Chagas. No final da faculdade, procurou no site da Universidade de São Paulo (USP) uma oportunidade de mestrado na mesma área, mas algo diferente fez seus olhos brilharem: o Laboratório de Mosquitos Geneticamente Modificados.

Foi lá que a cientista finalizou o mestrado e doutorado, entre 2010 e 2019. Orientada pela pesquisadora Margareth Capurro, ela estudou os impactos da infecção por diferentes patógenos na capacidade reprodutiva das fêmeas do Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue. Os resultados mostraram que uma fêmea infectada produz cerca de 15% menos ovos do que uma fêmea saudável.
“O que me chamou atenção é que os mosquitos têm uma importância muito grande na saúde do nosso país. Encontrei nesse caminho uma forma de retribuir todo o meu estudo, que foi público, para ajudar a população”

Ao longo de sua trajetória, a bióloga desenvolveu estudos sobre as infecções e realizou diversas coletas de mosquitos de campo durante importantes epidemias no Brasil. Entre elas, a de Zika, que entre 2015 e 2016 provocou 4,5 mil casos de microcefalia em recém-nascidos; e a de febre amarela, que somou 1.376 casos e 483 mortes entre 2017 e 2018. Hoje, no Butantan, contribui para um projeto de pesquisa sobre a dengue, que tem causado uma das maiores epidemias da história no país, com mais de 6 milhões de casos prováveis só de janeiro a julho de 2024.

Ser mãe, ser cientista: funções que se complementam

Rafaella defendeu o doutorado em fevereiro de 2019. Logo em seguida, em abril, nasceu seu filho Vitor. O desejo de ficar perto da família e as dificuldades e pressões que envolviam a carreira acadêmica – em que uma pessoa é vista pela sociedade como estudante, não como profissional – quase a fizeram mudar de rota.
“Depois do doutorado, pensei: ‘não vou mais fazer pesquisa’. Mas quando meu filho completou seis meses, comecei a sentir muita falta da bancada. Lembro de ter pensado: ‘se eu fizesse só um PCR eu já ficaria feliz’”

A cientista havia passado pela mesma vontade de desistir após o mestrado, mas a saudade dos laboratórios a chamou de volta. Dessa vez, não foi diferente: no final de 2019, começou a buscar oportunidades de pós-doutorado. Conseguiu uma vaga no departamento de Microbiologia da USP para estudar arbovírus e encontrou uma escolinha para Vitor – tudo parecia se encaixar.

Pouco tempo depois, veio a pandemia de Covid-19 e o lockdown. A escola fechou, o marido, Darlan, começou a trabalhar em casa, e o laboratório, que não poderia funcionar em regime de home office, passou a operar em horários reduzidos. Foi preciso se revezar em turnos: Rafaella trabalhava das 7h às 13h e passava as tardes com Vitor, enquanto Darlan ficava com o filho durante as manhãs e fazia as reuniões de trabalho à tarde.

Embora desafiador, o período trouxe muitos ensinamentos. Para a bióloga, o amor pelo que faz foi o que a manteve firme e a ajudou a “fazer acontecer”. Como mãe e cientista, Rafaella se sente motivada em contribuir para um futuro melhor para o filho. Reconhece, também, a sorte de sempre ter tido apoio e empatia de seus supervisores, e espera que cada vez mais mulheres que querem ter filhos possam ter esse suporte – que é um direito.

“O fato de querer ser mãe não significa abrir mão do meio acadêmico. Acredito que as mulheres podem ser o que elas quiserem, inclusive mães e pesquisadoras ao mesmo tempo”

Arboviroses, Covid-19 e o caminho até o Butantan

Foi com essa confiança e determinação que Rafaella seguiu na pesquisa e fez dois pós-doutorados no Departamento de Microbiologia da USP entre 2020 e 2022. No primeiro, testou uma proteína com potencial para combater a infecção por Zika; no segundo, trabalhou com triagem de compostos químicos para identificar possíveis tratamentos contra o SARS-CoV-2, vírus causador da pandemia de Covid-19, além de auxiliar na replicação e titulação de diferentes arbovírus como dengue e Zika.

Apesar de gostar de fazer pesquisas na área de virologia e triagem de fármacos, a bióloga ainda sentia falta de trabalhar com os vetores das doenças. “Meus próprios colegas diziam que, quando eu falava sobre mosquitos, meus olhos brilhavam de uma forma diferente. Então, decidi voltar para a minha linha de pesquisa”, afirma.

A procura não foi fácil e levou mais tempo do que o esperado. Ao longo do ano passado, enquanto buscava uma oportunidade na área que desejava, Rafaella escreveu artigos, fez cursos, participou de eventos e chegou a analisar possibilidades no exterior. “Fiz tudo o que podia para aprimorar meu conhecimento. Eu poderia ter desistido, ter buscado algo em outra área, mas acho que quando gostamos de algo, aquela chaminha sempre fica acesa dentro de nós.”

Um dia, o pesquisador do Butantan Lincoln Suesdek, com quem já havia colaborado em projetos passados, a indicou para uma vaga de pós-doutorado no Instituto. Rafaella trabalharia exatamente com o que buscava, analisando os mosquitos Aedes aegypti infectados por diferentes vírus. Ela fez uma entrevista e foi selecionada em dezembro, para trabalhar sob supervisão da pesquisadora Maria Carolina Sabbaga.

“Quando eu fui chamada para o Butantan fiquei muito feliz, pois sabia que meu projeto poderia ajudar milhões de brasileiros que sofrem com as arboviroses, como a dengue, que é um grave problema de saúde pública”

“O maior legado que podemos deixar para os filhos é o estudo”

Rafaella Sayuri nasceu em Apucarana, no Paraná, mas cresceu em Barreiras – inclusive, se considera mais baiana do que paranaense. Filha mais velha e com dois irmãos, visita os pais pelo menos uma vez por ano e aproveita para comer o delicioso acarajé e outras comidas típicas da região. Até hoje, quando chega a hora de ir embora, o sentimento de falta é inevitável. “Mesmo depois de 25 anos, eu ainda sinto como se quisesse ficar. Voltar para casa é muito bom”, diz.

Como mãe, a bióloga reconhece a força que os pais tiveram ao incentivá-la a trilhar seu caminho longe de casa – e, posteriormente, fazer o mesmo com os outros filhos. Os três eram tão unidos que, quando Rafaella se mudou, os irmãos seguiram seus passos até Goiânia e, depois, Maringá. Hoje, o caçula, que chegou a ser seu calouro na faculdade, é médico e continua no Paraná; o do meio é administrador e trabalha na autoelétrica do pai, em Barreiras. Para amenizar a distância, a família faz videochamada quase todos os dias.

“Meus pais investiram muito em mim e nos meus irmãos. Acho que o maior legado, o maior presente que podemos deixar para os nossos filhos é o estudo”

A lembrança da alegria do pai em sua banca de mestrado ficou registrada na memória de Rafaella. Quando a filha apareceu recentemente em uma entrevista no Jornal Nacional, ele saiu contando para todas as pessoas da cidade, orgulhoso. “Acho que o meu pai está feliz com a pessoa que me tornei”, diz.

Além de fazer ciência dentro dos laboratórios, a cientista tem um perfil no Instagram onde busca levar informação e conscientizar o público sobre doenças transmitidas por mosquitos. Recentemente, também ministrou um curso sobre o tema para professores de escola pública de todo o país.

“Meu objetivo é ajudar de alguma forma o Brasil, o país que acolheu os meus descendentes, onde minha família cresceu e prosperou”

Rafaella se vê como uma mulher forte e corajosa. Diz que ainda tem muitos planos e muitas contribuições científicas que deseja fazer, e motivação não falta. Para ela, seguir a carreira acadêmica nunca foi uma questão de status, e sim um meio para poder contribuir para a sociedade.

“Me sinto realizada diante de todos os obstáculos que tive que enfrentar – suportar tantas dores de saudade da família, conciliar maternidade e vida acadêmica. Posso dizer que estou realizando o meu sonho”

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