Texto: Ricardo Zorzetto | Revista Pesquisa FAPESP
Uma vez por mês, um óvulo maduro é liberado por um dos ovários das mulheres em idade fértil e gentilmente conduzido por diminutos cílios no interior da trompa até o útero. É um caminho curto, de uns 10 centímetros, atravessado em até 12 dias. Se no trajeto surge um espermatozoide saudável, o óvulo solitário pode se fundir com ele e gerar um embrião. Se o encontro não ocorre, a célula reprodutiva feminina é eliminada na próxima menstruação. Nos últimos anos, no entanto, uma quantidade importante de óvulos tem enfrentado um percurso bem mais longo – e, no caso do Brasil, tortuoso – antes de originar um potencial embrião, como identificou a socióloga Rosana Machin, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Em um artigo publicado em junho na revista Mobilities, ela e dois colaboradores da Espanha reconstituíram o percurso mutável dos gametas femininos vindos do exterior para atender a demanda crescente das clínicas brasileiras de reprodução assistida. Em um trabalho financiado pelo Ministério da Ciência e Inovação da Espanha, os pesquisadores analisaram documentos oficiais de importação e as regras que regulam a comercialização e o transporte de material biológico humano em diferentes países. Também entrevistaram 10 pessoas, entre médicos e embriologistas de clínicas de reprodução assistida nacionais e estrangeiras, advogados peritos na área, técnicos da agência sanitária brasileira e proprietários de empresas especializadas no transporte internacional de material biológico. Assim, conseguiram refazer passo a passo o percurso desses óvulos, que chegam ao país em números crescentes – de 2019 para cá foram importadas de 2 mil a 3 mil unidades por ano, o correspondente a algo entre 5% e 10% dos ciclos de fertilização (estímulo hormonal para liberação de óvulos, seguido de coleta) em clínicas brasileiras, segundo o Sistema Nacional de Produções de Embriões (SisEmbrio).
Dois anos de trabalho revelaram que o fluxo desse material biológico exige o acionamento de uma rede de agentes intermediários – entre eles especialistas em transporte e despachantes aduaneiros – para facilitar a saída dos óvulos da Europa e sua chegada ao Brasil, às vezes se aproveitando de brechas na legislação do país de origem que podem comprometer a rastreabilidade do material. “Nesse estudo, tornamos mais claro algo que a Anvisa já desconfiava”, afirma Machin, referindo-se à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, responsável por autorizar a importação do material.
A pesquisadora começou a se interessar pelo mercado nacional de reprodução assistida no final dos anos 1990, com o início da expansão das clínicas que ofereciam esse tipo de tratamento. Em trabalhos recentes, apoiados pela FAPESP e por instituições estrangeiras, ela mapeou o aumento desses serviços no país na década passada e o perfil da população por eles atendida, além do crescimento da importação de células reprodutivas masculinas e femininas, como apresentado em um artigo publicado em 2020 no JBRA Assisted Reproduction e outro em 2022 na revista Inter Disciplina. Neste último, ela identificou que a maior disponibilidade de tecnologias de reprodução assistida levou não apenas à vinda de estrangeiros buscando o serviço no país, mas também ao aumento da importação de óvulos e sêmen (ver Pesquisa FAPESP nº 269).
“Analisando as informações sobre a origem dos óvulos, notei algo curioso”, conta Machin. Embora os documentos indicassem que a origem do material era sempre o Ovobank, o maior banco de gametas femininos da Espanha, o terceiro país em que mais se doam óvulos no mundo, as células reprodutivas podiam ser adquiridas de clínicas menores. Além disso, a cada ano eles passaram a ser enviados para o Brasil a partir de um país europeu diferente.
Trânsito com escalas
No Brasil, não há bancos de óvulos, embora a doação seja permitida em três situações: a altruística, na qual uma mulher se submete aos procedimentos de extração dos gametas e, anonimamente, oferece-os a outra; a compartilhada, quando a receptora paga pelo seu tratamento e pelo da doadora, sem que a identidade de ambas seja revelada; e a feita por parentes de até quarto grau (primos). Em nenhuma delas, em princípio, pode haver pagamento direto ou compensação para a doadora. Na Espanha, uma mulher pode receber até € 1.200 como forma de compensação por ciclo de produção de óvulos, mais que o salário-mínimo do país (€ 1.080), e o lote vindo de lá sai mais barato do que o importado dos Estados Unidos, outro grande produtor. “As regras brasileiras criam uma situação ambígua. Proíbe pagar pelas doações feitas no país, mas permite comprar de quem paga por doações no exterior”, critica Machin.
Como a quantidade disponível parece ser insuficiente, mesmo com as possibilidades de doação, anos atrás a Anvisa autorizou a importação. Em 2017, ano em que a compra no exterior passou a ocorrer de modo mais consistente, entraram no país 51 lotes de gametas femininos, com um total de 321 óvulos. Desses lotes, 86% eram provenientes do Ovobank. A documentação sanitária que acompanhava o material biológico importado da empresa espanhola indicava, no entanto, que a maioria provinha de uma sucursal na Grécia.
No ano seguinte, segundo o estudo, o total de gametas femininos importados quase sextuplicou e chegou a 1.852 – o número informado pela Anvisa a Pesquisa FAPESP é menor, 1.233. Novamente comprados do banco da Espanha, esses óvulos tinham como local de envio uma sucursal na Itália, que não exporta as células reprodutoras de suas cidadãs. Em 2019, o padrão se repetiu. O número de exemplares cresceu outra vez, tendo o banco hispânico como principal fonte, agora despachados da Eslováquia – mais recentemente eles começaram a ser importados da Argentina.
Ao menos dois motivos explicam o malabarismo. O primeiro é que a legislação espanhola é bastante exigente, como verificaram os pesquisadores, o que torna o envio de óvulos para fora da União Europeia trabalhoso e demorado. Exigem-se documentos especificando o uso das amostras (para evitar seu emprego em algo proibido no país, a gestação por substituição, conhecida pelo termo pejorativo “barriga de aluguel”), além da solicitação da clínica de destino e de documentos garantindo a disponibilidade do material. “Em toda a minha experiência profissional (mais de 20 anos em reprodução assistida) só consegui extrair embriões uma vez, seguindo o protocolo, para transferência para os EUA e demorou um ano para obter as autorizações”, afirmou aos pesquisadores um embriologista espanhol entrevistado, cujo nome não foi revelado no artigo. O segundo possível motivo apresentado por esse mesmo embriologista é que o banco de óvulos pode ter lucro alto ao revender o material para uma subsidiária.
Apesar das restrições espanholas à exportação direta, essas empresas contornaram o problema. As regras da União Europeia permitem que o material circule fácil e rapidamente de um país para outro do bloco sem a exigência de que as transportadoras tenham licenças especiais nem de que o material biológico passe pela alfândega. “Como a exportação direta a partir da Espanha é difícil, os bancos encontraram brechas legais para fazer o envio”, conta Machin.
O sistema de gerenciamento espanhol de informações sobre reprodução assistida, em princípio, permitiria rastrear o percurso das amostras da coleta ao destino final. Ele atribui um código formado por letras e números que identifica o estabelecimento responsável por manipular o material, a data de extração e de congelamento e o tipo de material (óvulo, espermatozoide ou embrião), entre outras informações. Essa identificação tornou-se obrigatória em 2017, mas não vale para as amostras armazenadas antes de outubro de 2016, que puderam ser distribuídas sem o tal código pelos cinco anos seguintes. Além disso, segundo o depoimento de um embriologista espanhol, o sistema não estava completamente operante quando o estudo foi feito, entre setembro de 2021 e setembro de 2022.
Essas falhas no acompanhamento levantaram suspeitas de que o conteúdo exportado para o Brasil pudesse sofrer alterações no caminho, como a substituição por óvulos de outra origem, algo que não pôde ser comprovado nem refutado. “Os diretores de clínicas brasileiras entrevistados afirmam que esse problema não deve ocorrer, uma vez que é possível saber a origem do material porque os médicos têm acesso à nacionalidade das doadoras dos óvulos”, conta a socióloga da USP.
Outra preocupação decorrente do trânsito ampliado do material na Europa era o comprometimento de sua qualidade. Diferentemente dos espermatozoides, produzidos continuamente e lançados aos milhões a cada ejaculação, os óvulos são células raras. As mulheres nascem com um estoque limitado e, em geral, liberam um a cada mês. Sua obtenção para a fertilização in vitro exige a administração de hormônios para induzir a liberação de um número alto de gametas (de 10 a 20), além de exames para avaliar o amadurecimento das estruturas (folículos) precursoras dos óvulos. A coleta é invasiva, realizada por meio de aspiração dos folículos maduros, com a paciente sedada. “É um procedimento que gera algum incômodo e costuma causar inchaço abdominal passageiro devido ao aumento temporário dos ovários”, conta o médico Nathan Ceschin, membro da Associação Brasileira de Reprodução Assistida, a SBRA, e vice-diretor de um instituto de fertilidade privado no Paraná, que não participou do estudo.
Uma vez extraído, o material tem de ser submetido a um processo especial de congelamento e mantido a cerca de 190 graus Celsius negativos. Também deve ser transportado de modo a evitar impactos. Especialistas entrevistados para a reportagem, todavia, afirmam que os deslocamentos extras na Europa não devem prejudicar o desempenho dos gametas. “Esse percurso é curioso, mas, se o transporte for adequado, é provável que não ocorra o comprometimento dos óvulos nem efeitos negativos sobre o tratamento”, comenta o ginecologista Luis Bahamondes, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor do Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp).
Inspeções feitas por especialistas na saída e na chegada também ajudariam a garantir a viabilidade do material. “Os óvulos passam por avaliação de embriologistas antes de sair do banco de origem e depois de chegar ao destino”, explica Ceschin.
Diante das dúvidas, por que manter a importação? O argumento mais óbvio é que é lucrativo para os centros de reprodução assistida. Outro, lembrado pelos pesquisadores e alguns especialistas, é que faltariam gametas femininos para abastecer o mercado nacional, em expansão com a queda do preço do tratamento (ainda caro, variando de R$ 20 mil a R$ 50 mil), o adiamento da maternidade e, desde 2013, a possibilidade de casais do mesmo sexo ou pessoas solteiras passarem por terapia de reprodução assistida. “No Brasil, leva de seis meses a um ano para conseguir os óvulos para um único procedimento. Com a importação, o tempo cai pela metade”, afirma Ceschin.
A crescente demanda levou a Anvisa a propor, em dezembro de 2022, alterações nas regras de importação de células reprodutivas masculinas e femininas e de embriões. A principal foi a criação das empresas importadoras, que devem ser habilitadas pela autoridade sanitária brasileira. Com a mudança, que entrou em vigor em agosto, a negociação, antes feita pelas clínicas e analisada caso a caso pela Anvisa, fica agora a cargo das importadoras, que se tornam responsáveis por garantir que o banco exportador esteja em conformidade com as normas sanitárias do país de origem, assim como por registrar as amostras, assegurar sua qualidade, supervisionar o transporte, encarregar-se da liberação alfandegária e da posterior distribuição no país.
“Com a experiência de avaliação de riscos e benefícios desse processo e o crescimento das demandas por importação, foi necessário implantar um mecanismo regulatório mais eficiente”, afirmou a Anvisa a Pesquisa FAPESP via assessoria de comunicação. “O processo foi se tornando complexo e foi necessário estabelecer responsabilidades claras entre as partes (bancos de origem internacional, empresas transportadoras nacionais e internacionais, clínicas brasileiras) de forma a garantir que a importação fosse realizada com segurança, qualidade e eficiência.” Até outubro, segundo a agência, algumas empresas tinham se candidatado à habilitação, mas nenhuma ainda havia sido aprovada.