Diversos veículos de imprensa no ano passado se atrapalharam completamente ao reportar a pesquisa verdadeiramente interessante da NASA que buscava descobrir o que acontece com nosso corpo se vivermos no espaço por longos períodos de tempo. O estudo foi uma comparação meticulosa entre o astronauta Scott Kelly, então com 50 anos, que passou um ano a bordo da Estação Espacial Internacional em 2015, e seu irmão gêmeo idêntico Mark Kelly, que permaneceu na Terra.
Nesta quinta-feira (11), as descobertas finais do estudo dos gêmeos da NASA foram publicadas na Science, e elas são bem legais, mesmo que um pouco desapontantes em comparação com o hype feito pela mídia no ano passado em torno do trabalho.
A NASA descobriu que Scott Kelly se manteve tão saudável mental, genética e fisicamente quanto seu irmão durante a viagem no espaço; e que a grande maioria das pequenas mudanças observadas em Scott (em comparação com ele mesmo antes da missão) voltou ao normal dentro de seis meses após seu retorno à Terra. Mas as diferenças vistas em Scott enquanto estava no espaço e depois de sua volta para casa podem fornecer à NASA importantes pistas sobre como manter os astronautas seguros durante missões mais longas, como para Marte e além.
“Acho que é reconfortante saber que, quando você volta, as coisas vão, em sua maioria, voltar ao normal”, disse Michael Synder, um dos dez investigadores principais do estudo e diretor dob Centro Stanford de Genômica e Medicina Personalizada, em entrevista coletiva na terça-feira (9), discutindo os resultados.
Resultados preliminares do estudo foram lançados em 2017, mas foi só a segunda rodada de descobertas, divulgada em janeiro de 2018, que realmente chamou a atenção da imprensa, com parte dos veículos reportando erroneamente o que havia sido descoberto. Particularmente, jornais como o Newsweek noticiaram que impressionantes “7% dos genes de Scott Kelly não voltaram ao normal depois que ele pousou”. Outros indicaram que Scott Kelly havia se tornado uma pessoa diferente de seu irmão gêmeo.
Mas os pesquisadores nunca falaram sobre uma diferença de 7% entre os genes dos gêmeos. Eles estavam dizendo que alguns dos genes de Scott Kelly haviam mudado sua expressão — o transporte de instruções no genoma de uma célula — durante seu tempo lá no espaço. E que aproximadamente 7% dessa mudança geral na expressão genética ainda podia ser vista seis meses depois de ele retornar para casa.
Essa mudança restante na expressão genética seis meses depois foi na verdade mais próxima de 10%, envolvendo centenas de genes individuais relacionados ao sistema imune e outros fatores, segundo o artigo final na Science.
Porém, como a NASA esclareceu durante o quiproquó no ano passado, essa era, ainda assim, uma mudança relativamente minúscula em sua expressão genética, ou “epigenética”, como também é conhecida. Essas mudanças epigenéticas, entre outras, em seu metabolismo ou sistema imune também estavam dentro do alcance que se esperaria de alguém lidando com uma quantidade de um estresse assim, como exercícios intensos.
“Considerando que a maioria das variáveis biológicas e de saúde permaneceu estável ou voltou à linha de base, esses dados sugerem que a saúde humana pode, em sua maioria, se manter ao longo da duração do voo espacial”, afirmou a NASA em um comunicado.
Aliás, Mark Kelly também teve mudanças epigenéticas durante o período do estudo, mesmo que em um grau levemente maior que seu irmão que foi para o espaço. Isso não é tão surpreendente, porque literalmente tudo em nosso ambiente pode moldar nossa expressão genética. E, embora o espaço seja uma experiência estressante que pode desgastar o corpo e o sistema imune, Scott Kelly não estava fazendo outras coisas notoriamente negativas para o corpo que seu irmão estava fazendo na Terra, como beber álcool.
“Claro que é um potencial sinal de alerta. Quer dizer, se enviarmos um grupo de astronautas para Marte, a jornada lá provavelmente levará cerca de um ano… Este estudo, com uma pessoa, sugere que talvez eles não consigam fazer isso.”
No entanto, as mudanças detectadas em Scott comparadas com ele mesmo na Terra e com seu irmão são importantes, pois nos ajudam a ter uma noção de como as viagens espaciais de longo prazo afetarão o corpo humano. Os olhos de Scott, por exemplo, desenvolveram um nervo retiniano mais espesso após alguns meses, o que já foi notado por alguns astronautas em missões mais longas, mas não por todos. A mudança é provavelmente causada principalmente pela microgravidade do espaço.
Mas os cientistas suspeitam que a genética desempenha um papel importante para tornar os astronautas mais vulneráveis a ela. Como evidência para esse palpite, ambos os gêmeos tinham variações genéticas ligadas à alteração ocular, embora apenas Scott a tenha desenvolvido.
Também houve mudanças inesperadas nos telômeros de Scott Kelly, as extremidades de cromossomos que, acredita-se, preveem nossa idade celular, já que eles ficam mais curtos ao longo da vida. Alguns deles ficaram mais longos enquanto Kelly esteve no espaço, mas, então, rapidamente se encurtaram logo que ele voltou à Terra, com alguns deles, seis meses depois, ficando ainda menores que antes.
É cedo demais para dizer o que tudo isso significa. Mas uma das autoras do estudo, Susan Bailey, bióloga de radiação da Universidade Estadual do Colorado, advertiu durante a coletiva de imprensa qualquer um que pense que fazer uma viagem espacial deve “ser visto como uma fonte de juventude” e que “as pessoas podem esperar viver por mais tempo por estarem no espaço”.
O interessante foi que, embora maior parte da saúde de Scott Kelly tenha permanecido intacta ou voltado ao normal depois de ele retornar, sua capacidade intelectual — medida por quão preciso e veloz ele foi em testes cognitivos — sofreu uma queda significativa quando ele voltou, o que ainda estava aparente seis meses depois de sua volta.
No entanto, não está claro o quanto esse esgotamento mental pode ser atribuído aos perigos do espaço em si, de acordo com o investigador principal Mathias Basner, professor associado de sono e cronobiologia em psiquiatria na Escola Perelman de Medicina da Universidade da Pensilvânia.
“Podem ser os efeitos de ser reexposto e de se reajustar à gravidade na Terra”, disse Basner ao Gizmodo, apontando que o próprio Kelly reclamou sobre aprender a andar normalmente de novo. “Mas, também, sua programação pós-missão foi muito frenética, com diversos eventos de mídia.”
Dito isso, também existe a possibilidade de que as condições da viagem em si, incluindo sua duração, contribuíram para a queda de perspicácia de Kelly. E isso é um risco importante a se ter em vista quando as pessoas começarem a participar de missões ainda mais longas e isoladas.
“Claro que é um potencial sinal de alerta. Quer dizer, se enviarmos um grupo de astronautas para Marte, a jornada lá provavelmente levará cerca de um ano. E então eles têm que atravessar essa fase crítica da missão na superfície de Marte em que queremos que eles tenham seu melhor desempenho”, afirmou Basner. “Esse estudo, com um número de um (participante), sugere que talvez eles não consigam fazer isso.”
Por mais importante que o estudo dos gêmeos da NASA seja, é apenas o começo dos estudos sobre a saúde humana no espaço. Viver na Estação Espacial Internacional não é nada fácil, por exemplo, mas astronautas lá ainda estão bastante protegidos da radiação cósmica que bombardearia qualquer visitante em seu caminho até Marte (a exposição total a radiação seria pelo menos cinco vezes maior). E os gêmeos Kelly são o epítome de um pequeno tamanho de amostra.
Portanto, precisamos de muito mais pesquisa, com mais astronautas. Para esse fim, a NASA está planejando mais missões de durações variadas, chegando a até um ano, que devem fornecer mais dados sobre os efeitos do espaço sobre o nosso corpo.