Existem várias pessoas que são excepcionais, de um jeito ou de outro. Mas uma nova análise publicada nesta semana sugere que mesmo o cocô que fazemos pode ser extraordinário. O documento argumenta que alguns de nós somos superdoadores de transplante fecal, com fezes que são exclusivamente adequadas para tratar problemas digestivos e intestinais.
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Os nossos excrementos estão cheios de inúmeras espécies de bactérias. Elas vêm do intestino através do qual o cocô passa, um mundo vivo que chamamos de microbioma intestinal. Por mais nojento que possa ser imaginar, este microbioma realmente ajuda nosso corpo a digerir os alimentos e a permanecer saudável. Mas ele pode, às vezes, ficar fora de controle, levando a uma série de problemas digestivos ou neurológicos. Um desses problemas é a diarreia crônica causada por infecções da bactéria Clostridium difficile.
Nos últimos anos, o transplante de microbiota fecal (FMT, na sigla em inglês) foi reconhecido como uma maneira de restaurar o microbioma desequilibrado de uma pessoa (geralmente, o cocô do doador é entregue via enema). Quando se trata de infecção recorrente por Clostridium difficile, as taxas de cura relatadas de FMT têm sido de 90% ou mais, um feito surpreendente dado o pouco sucesso que outros tratamentos tiveram. Isso levou os médicos a esperar que o FMT pudesse ser uma panaceia para todos os tipos de condições ligadas ao microbioma intestinal, como a doença inflamatória intestinal (IBD, na sigla em inglês) ou mesmo o diabetes tipo 2. Mas a realidade não tem sido tão animadora; as taxas de tratamento relatadas para outras condições que usam FMT não são tão altas quanto são para a infecção recorrente por Clostridium difficile.
No entanto, estudos sobre transplante de microbiota fecal para tratar infecções por Clostridium difficile e essas outras condições identificaram um padrão peculiar. Alguns doadores parecem ter fezes especialmente ótimas, com as taxas de tratamento bem-sucedido desses doadores sendo muito mais altas do que a média. Isso levou os médicos a levantarem teorias sobre a existência de superdoadores. A nova análise, publicada nesta semana na Frontiers in Cellular and Infection Microbiology, deu uma olhada nesses estudos e tentou descobrir o que poderia fazer desses doadores especiais.
“Vemos transplantes de superdoadores alcançarem taxas de remissão clínica de talvez o dobro da média restante”, disse o autor sênior Justin O’Sullivan, biólogo da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, em um comunicado. “Nossa esperança é que, se pudermos descobrir como isso acontece, então possamos melhorar o sucesso do transplante fecal e até mesmo testá-lo para novas condições associadas a microbiomas, como Alzheimer, esclerose múltipla e asma.”
Alguns fatores se destacaram entre esses doadores. Comparado a outros, o cocô deles tinha uma mistura robusta e diversificada de bactérias, incluindo espécies “essenciais” que ajudam o corpo a produzir proteínas ou substâncias químicas importantes.
“Na doença inflamatória intestinal e no diabetes, por exemplo, as espécies essenciais que estão associadas à remissão clínica prolongada produzem butirato — uma substância química com funções especializadas na regulação do sistema imunológico e do metabolismo energético”, disse O’Sullivan. Sua equipe também encontrou um pequeno estudo no qual um cocô especialmente selecionado, rico em bactérias chamadas Lachnospiraceae e Ruminococcaceae, foi usado para tratar com sucesso casos de encefalopatia hepática recorrente — uma condição cerebral causada por toxinas que não são filtradas pelo fígado — em todos os dez pacientes.
Mas provavelmente não se trata apenas das bactérias. As entranhas das pessoas que recebem transplantes desses superdoadores muitas vezes não parecem exatamente iguais, sugerindo que há outros fatores que influenciam o quão bem o transplante será feito. A genética, o sistema imunológico inato e a dieta do receptor podem afetar esse sucesso, afirmam O’Sullivan e sua equipe. Mesmo os vírus que vivem em nossas bactérias intestinais podem estar desempenhando um papel.
“Esses vírus podem afetar a sobrevivência e a função metabólica de bactérias transplantadas e outros micróbios”, avaliou O’Sullivan.
Até agora, a pesquisa de FMT em pessoas tem sido limitada a pequenos estudos e testes, tornando difícil ter certeza de qualquer coisa, inclusive se os superdoadores são reais. Mas as coisas estão mudando. Ainda na semana passada, os National Institutes of Health anunciaram um estudo randomizado e controlado de FMT para a infecção recorrente por Clostridium difficile que envolverá mais de 150 voluntários. Outros estudos recentes mostraram que mais opções de transplante palatáveis, como uma cápsula tomada por via oral, podem funcionar tão bem quanto o enema típico e mais invasivo usado para um transplante.
Essa opção, aliada a um registro mais detalhado das pessoas envolvidas nesses estudos (doadores e receptores), deve facilitar muito a realização das pesquisas de que precisamos para melhor compreender e refinar o transplante fecal, afirmam os autores.
[Frontiers in Cellular and Infection Microbiology via Frontiers]