Revista FAPESP | Rodrigo de Oliveira Andrade
Os Estados Unidos estão entre as nações que mais investem em ciência, criando pontes entre o trabalho acadêmico sem finalidade prática aparente e a busca por inovações tecnológicas – estima-se que quase 50% dos gastos públicos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) naquele país se dê no âmbito do Departamento de Defesa. Mas esses recursos não se restringem ao seu território. Há pelo menos 10 anos os Estados Unidos financiam projetos em instituições brasileiras por meio de escritórios de ciência e tecnologia (C&T) ligados às suas Forças Armadas.
Os investimentos se concentram principalmente nas áreas de inteligência artificial, robótica, biotecnologia, energia, materiais, nanotecnologia, optoeletrônica, entre outras, associadas às chamadas tecnologias transversais, com potencial de envolver e transformar diferentes setores produtivos nas próximas décadas (ver Pesquisa FAPESP nº 306). “O Brasil produz conhecimento científico de alta qualidade que pode complementar os esforços dos Estados Unidos em C&T”, diz Kyle Gustafson, representante no país do Escritório de Pesquisa Naval Global (ONR-G). “As colaborações, nesse sentido, podem ser mutuamente benéficas.”
O ONR-G e o Centro Internacional de Tecnologia do Comando de Desenvolvimento de Capacidades de Combate do Exército dos Estados Unidos (Devcom) já investiram pouco mais de US$ 5,3 milhões em projetos no país desde 2014. Em fevereiro de 2022, o Brasil também passou a contar com a presença do Escritório Sul de Pesquisa e Desenvolvimento Aeroespacial (Soard), braço do Laboratório Internacional de Pesquisa da Força Aérea (AFOSR), tornando-se uma das poucas nações a sediar escritórios das três Forças Armadas – o AFOSR financia trabalhos no Brasil há algum tempo, mas, até este ano, o fazia de sua filial em Santiago, no Chile.
O investimento em ciência básica é uma tradição antiga nos Estados Unidos. Segundo dados da National Science Foundation divulgados em junho, somente em 2019, o país aplicou US$ 102,9 bilhões em estudos que buscam expandir o conhecimento sem se preocupar em obter aplicações imediatas, dos quais US$ 33,7 bilhões (32,7%) vieram de empresas, sobretudo nas áreas farmacêutica e de medicamentos, e indústria da informação. Desde os anos 1940 eles também promovem a abertura de escritórios de C&T em nações parceiras, dando forma a uma espécie de força-tarefa científica internacional voltada a estudos em áreas de seu interesse.
No Brasil, os recursos concedidos ainda estão majoritariamente concentrados em universidades e instituições de São Paulo. Nos últimos 10 anos, dos US$ 4,5 milhões aportados apenas pelo ONR-G no país, US$ 1,7 milhão foi para instituições paulistas, sendo a Universidade de São Paulo (USP) a principal beneficiada. Um dos empreendimentos apoiados nesse período foi o de ventiladores pulmonares emergenciais de baixo custo, desenvolvidos pelos engenheiros Marcelo Zuffo e Raul Gonzalez Lima, da Escola Politécnica (Poli) da USP. Os US$ 200 mil do ONR-G, nesse caso, somaram-se a dotações de outros doadores, permitindo a produção de até 20 ventiladores por dia em um dos períodos mais críticos da pandemia.
Para os cientistas brasileiros, esse dinheiro tem ajudado a manter o andamento de pesquisas em um período de escassez de financiamento público. No caso do engenheiro Bojan Marinkovic, do Departamento de Engenharia Química e de Materiais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), esses valores hoje constituem a principal fonte de fomento de seus laboratórios. Desde 2014 ele utiliza recursos do Devcom para desenvolver projetos na área de materiais cerâmicos com expansão térmica negativa ou nula. “Queremos entender como eles funcionam para, no futuro, incorporá-los na concepção de peças resistentes a mudanças bruscas de temperatura, inovação de grande interesse da indústria civil e militar”, destaca. O mesmo se aplica à física Isabel Cristina Carvalho, do Laboratório de Optoeletrônica do Departamento de Física também da PUC-RJ, que desde 2015 recebe financiamento da ONR-G para empreender projetos sobre ressonância de plasmon de superfície localizado, fenômeno óptico que ocorre quando a luz interage com nanopartículas metálicas, induzindo a uma excitação coletiva de elétrons, permitindo que determinados comprimentos de onda (cores) possam ser absorvidos.
No caso de Pierre-Louis de Assis, do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), esses recursos têm sido empregados na compra de equipamentos e manutenção de bolsas de pós-doutorado. “Em fins de 2019, passamos a receber financiamento do Soard para estudar emissores de fótons únicos utilizando semicondutores bidimensionais, visando à sua integração em microchips de processamento de informação quântica”, esclarece.
Os representantes dos escritórios costumam se oferecer para visitar universidades e instituições científicas espalhadas pelo país e divulgar as oportunidades de fomento. Nesses encontros, os brasileiros têm alguns minutos para apresentar seus projetos e destacar sua relevância.
“Também participamos de conferências e realizamos estudos independentes por meio de ferramentas de busca, como Web of Science, para identificar cientistas trabalhando em áreas de interesse”, esclarece Rosa Santoni, representante do Devcom no Brasil. “Quando algo nos chama a atenção, entramos em contato com o responsável e pedimos a ele que nos envie um resumo de sua proposta para que possamos avaliar seu potencial inovativo e verificar se ela se encaixa nas prioridades das Forças Armadas.” Se houver interesse, o pesquisador é autorizado a enviar a proposta completa, na qual especifica o quanto precisará para levar o trabalho adiante e quais os resultados esperados.
Os projetos aprovados, em geral, recebem de US$ 25 mil a US$ 140 mil por ano, mas esse valor pode ser maior, dependendo do interesse dos escritórios. Os brasileiros recebem ainda um adicional, que pode ser usado para custear sua participação em conferências nacionais e internacionais, promover seminários e workshops, visitar universidades e instituições dos Estados Unidos ou mesmo instalações científicas das Forças Armadas. Os proponentes têm liberdade para estudar o que quiserem e direcionar a aplicação dos recursos. O sucesso dos empreendimentos é medido pelos artigos publicados. “Incentivamos a divulgação dos resultados em acesso aberto em periódicos de alto impacto”, diz Santoni. Ela destaca que os cientistas e suas universidades ficam com os direitos de propriedade intelectual de inovações geradas no âmbito dos projetos apoiados. “Mas o contrato com o governo norte-americano autoriza os Estados Unidos a usá-las ou modificá-las sem restrições no futuro, de acordo com seus interesses”, afirma.
Esse esforço de investimento em pesquisas brasileiras em áreas consideradas estratégicas pode expandir o portfólio de inovações dos Estados Unidos – as quais, um dia, podem ser incorporadas às suas estratégias de segurança. “Essa também é uma forma de ele estreitar laços de cooperação e reforçar sua influência geopolítica na região, fazendo frente às investidas da China e de outras nações”, comenta Amâncio Jorge de Oliveira, coordenador-executivo da Escola de Diplomacia Científica e da Inovação e professor do Centro de Estudos das Negociações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da USP.
Oliveira lembra que os norte-americanos têm um histórico antigo de uso da ciência como braço da política externa. Nos anos 1970, lançaram mão da diplomacia científica para se aproximar da China. Mais recentemente, valeram-se dessa mesma estratégia para promover parcerias com cientistas cubanos em trabalhos sobre o câncer e a previsão de furacões. “Os Estados Unidos reconhecem a importância da colaboração internacional com parceiros confiáveis para resolver problemas futuros, explorar novas tecnologias e construir relacionamentos duradouros com cientistas estrangeiros”, destaca Gustafson. “Para isso, julgamos ser importante combinar recursos, difundir a disciplina de investigação científica e promover experiências e oportunidades.”
Para além da manutenção das atividades de pesquisa, uma das vantagens da parceria é a possibilidade de intercâmbio – em alguns casos, é possível ter acesso a instalações científicas militares nos Estados Unidos. “Enviamos recentemente uma estudante de mestrado para um laboratório do Exército em Maryland”, conta Marinkovic, da PUC-RJ. Também é comum as Forças Armadas daquele país promoverem eventos e convidarem brasileiros a falarem sobre seus estudos. “Nos próximos dias darei uma palestra no Laboratório Internacional de Pesquisa da Força Aérea dos Estados Unidos”, comenta Luís Gustavo Marcassa, professor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, que desenvolve trabalhos sobre átomos de Rydberg – com elétrons afastados do núcleo a distâncias até 10 mil vezes maiores que o normal –, com potencial de aplicação em computação quântica e sensores de micro-ondas mais precisos.
Segundo ele, os recursos oferecidos são bem-vindos, mas não são suficientes para manter todas as atividades. “Para nós, em São Paulo, o apoio da FAPESP continua fundamental, ainda que os valores concedidos pelos escritórios de C&T dos Estados Unidos representem um bom complemento ao orçamento do laboratório, sobretudo quando se trata de bolsas de mestrado, doutorado e estágio de pós-doutorado”, destaca. Amâncio Oliveira vai além. Na sua avaliação, o acesso a essas verbas permite que os cientistas produzam conhecimento de alto nível em temas globais. “Isso pode ser algo estratégico no sentido de favorecer a inserção do Brasil em redes internacionais de conhecimento e elevar sua posição na dinâmica global de produção científica.”