Fordlândia, a utopia que Henry Ford tentou criar na Amazônia brasileira

O legado de Henry Ford – que faria 150 anos ontem (se fosse vivo e tivesse uma saúde incrível) – gira em torno de algumas ideias conhecidas, como a linha de montagem e a jornada de trabalho de US$ 5. Mas poucos comentam o maior fracasso de Ford: a Fordlândia, uma cidade na Amazônia que […]

O legado de Henry Ford – que faria 150 anos ontem (se fosse vivo e tivesse uma saúde incrível) – gira em torno de algumas ideias conhecidas, como a linha de montagem e a jornada de trabalho de US$ 5. Mas poucos comentam o maior fracasso de Ford: a Fordlândia, uma cidade na Amazônia que foi abandonada quase tão rápido quanto foi construída.

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Com suas ideias, Ford acabou definindo o capitalismo do século XX. Mas nem tudo é bem-sucedido em sua história, indo de seu antissemitismo virulento às suas tentativas de projetar comunidades inteiras – incluindo a que ele criou na floresta tropical brasileira – em torno de suas ideias sobre práticas de trabalho.

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Como surgiu a Fordlândia? A comunidade foi criada para resolver um problema causado pelo incrível sucesso do império de Ford. Até o início dos anos 1900, os EUA devoravam mais de 70% da borracha do mundo, e a maior parte ia para Detroit – centro automobilístico do país. Nessa época, a borracha ainda vinha de plantas, então boa parte dela precisava ser enviada do Sudeste Asiático.

Ford, sempre pensando em eficiência, não queria continuar dependendo da Ásia, onde as plantações britânicas de seringueiras – árvores de onde se extrai o látex – produziam a maior parte da oferta global de borracha. Então ele resolveu criar a sua própria fazenda para tanto. Em um ataque de criatividade, ele a chamou de Fordlândia.

Vale notar que, quando a Fordlândia nasceu, o ciclo da borracha já havia acabado no Brasil. Ele viveu seu auge entre 1879 e 1912, e acabou justamente porque os britânicos passaram a produzir látex com maior eficiência e produtividade no Sudeste Asiático, usando sementes vindas da própria Amazônia.

O início da Fordlândia

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Em 1927, a Ford adquiriu um terreno de 14.568 km² na Amazônia: ele fica localizado no município de Aveiro (PA), às margens do Rio Tapajós. Sabendo que a Ford estava interessada em adquirir terras na Amazônia, o cafeicultor Jorge Dumont Villares lhes ofereceu uma área que ele recebeu gratuitamente do governo do Pará. A Ford também poderia ter conseguido terras de graça; sem saber disso, Henry Ford pagou US$ 125 mil ao cafeicultor. Pior: o terreno era impróprio para o cultivo de seringueiras.

No ano seguinte, Ford enviou suprimentos e funcionários à Amazônia. A missão era criar um subúrbio americano no coração da floresta. Dentro de um período relativamente curto de tempo, já havia casas, água encanada, eletricidade, um hospital de primeira linha – onde foi feito o primeiro transplante de pele no Brasil – além de alguns extras como piscinas e até um cinema, que condiziam com uma forte crença de Ford: o lazer é uma parte essencial da economia.

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Os funcionários também precisavam adotar um estilo de vida característico de subúrbios dos EUA, junto a uma forte dose dos princípios morais de Ford: ou seja, bebidas alcoólicas e jogos de azar eram proibidas dentro da cidade. De acordo com um podcast fantástico do How Things Work, a cidade transplantou até mesmo as típicas danças de quadrilha dos EUA (foto acima). Hambúrgueres e outros pratos da culinária americana eram destaque no refeitório. Mas isso não agradava aos brasileiros:

Em 1930, explodiu no refeitório da Companhia Ford Industrial do Brasil uma rebelião, conhecida como “quebra-panelas”. Os caboclos se revoltaram contra a obrigatoriedade de comer espinafre quase que diariamente – queriam peixe, feijão e farinha. Em meio a gritos de “abaixo o espinafre”, colocaram os americanos para correr e prometeram fazer greve.

Esse tipo de imposição cultural talvez até fosse aceito, caso a produção de borracha tivesse decolado. Mas descobriu-se que as seringueiras eram cultivadas no Sudeste da Ásia por um bom motivo: lá não havia predadores como o fungo do mal-das-folhas, que mata as seringueiras. E na Fordlândia, elas eram plantadas muito próximas entre si, o que as tornava um alvo fácil para pragas agrícolas. Pior: a terra era infértil e pedregosa. A produção no país era lenta, e os gestores de Michigan tinham zero conhecimento prático de botânica.

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Além disso, os funcionários brasileiros começaram a se rebelar contra as regras estritas no estilo de vida. Em pouco tempo, criou-se a chamada “Ilha da Inocência” no meio do Rio Tapajós, onde os trabalhadores podiam relaxar com uma bebida e um acompanhante do sexo feminino. Motins eclodiram alguns anos mais tarde. Em 1933, Ford contratou um profissional para descobrir por que suas plantas não estavam crescendo (era a má qualidade do solo). Ele tentou de novo e de novo, mudando a Fordlândia para uma área melhor de terra a jusante. A cidade ainda produzia pouco.

O fracasso do sonho americano

A sentença de morte para a Fordlândia veio alguns anos mais tarde, em 1945, quando a invenção da borracha sintética tornou a cidade irrelevante. No mesmo ano, Henry Ford II – neto do empresário – tornou-se presidente da Ford e decidiu encerrar as operações na cidade. A empresa vendeu a terra de volta para o Brasil com um prejuízo de US$ 20 milhões (ou US$ 200 milhões hoje), deixando o pequeno subúrbio de Fordlândia na decadência. Hoje, a cidade é uma coleção de prédios em ruínas.

O fracasso do sonho americano na floresta virou tema do documentário Fordlândia, de Marinho Andrade e Daniel Augusto. Para resgatar a história do local, foram consultados o biografista de Henry Ford, o filho de um alto executivo da empresa na época – criado por uma babá brasileira chamada América – e um casal que vendeu tudo e resolveu tentar a vida nas antigas terras de Ford.

O diretor Emerson Muzeli prepara um filme de ficção, também chamado Fordlândia. Em seu site, você pode conferir inúmeras fotos da cidade na época áurea e nos dias atuais.

Esta é uma história fascinante de um transplante cultural arrogante que deu errado, mas também há algo estranhamente triste nas fotos de Fordlândia hoje (como estas tiradas por Dan Dubowitz), especialmente à luz das outras cidades que Ford criou nos EUA. Em seu livro sobre a comunidade, Fordlândia – Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva, o autor Greg Grandin escreve:

Há de fato uma estranha semelhança entre a enferrujada torre d’água de Fordlândia, a serraria de vidros quebrados e a usina vazia, e as cascas das mesmas estruturas em Iron Mountain, uma abatida cidade industrial na península superior de Michigan, que também costumava ser uma cidade de Ford.

Elas não fracassaram pelos mesmos motivos, mas de certa forma, a rigidez moral e de costumes exigida por Ford contribuiu para a decadência de ambas. Para mais sobre o assunto, confira o livro de Grandin (físico, Amazon, Google Play) e os links a seguir: [Aventuras na História, Wikipédia, Época]

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Imagens via Sometimes Interesting e Méduse. Imagem inicial por Amit Evron.

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