Cultivando Nemo: como a aquicultura quer alimentar bilhões de pessoas famintas
Camarões não nascem em árvores, como você deve saber. Nem eles, nem sardinhas, nem empanados de peixe do McFish, nem lulas à dorê. Mas nada disso impediu que a demanda humana por frutos do mar crescesse ano após ano. Como resultado, estima-se que 85% dos estoques de peixe oceânicos estão completamente explorados ou sendo sobrepescados. Mas uma antiga forma de cultivo aquático, que atualmente movimenta US$ 60 bilhões por ano, pode ter a chave para proteger tanto as populações de peixes quanto seu restaurante japonês favorito.
A pesca convencional está enfrentando uma crise de abastecimento, como vários programas do History ou do Discovery Channel podem contar melhor para você. Não apenas os pescadores estão tirando menos peixes do mar, mas também os pescados estão muito menores do que os que se costumava pegar há algumas décadas. Além disso, métodos de pesca em grandes áreas para capturar os peixes desejados — palangre e redes de arrasto, por exemplo — frequentemente enredam e matam outros peixes e mamíferos, conhecidos como capturas acessórias, ou causam danos a habitats delicados. Mesmo com muitos países tendo regulamentado de maneira estrita a quantidade, a época e as espécies que podem ser retiradas por temporada, grande parte da pesca ainda é tratada essencialmente com um recurso não-renovável.
Mas isto está mudando graças à aquicultura. Esta prática é a revolução agrícola para os métodos caçadores-coletores da indústria da pesca. Ao invés de mandar frotas de barcos oceano afora em busca de presas selvagens, os peixes são criados em ambientes fechados e controlados (ou ao menos monitorados).
De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a aquicultura “é entendida como o cultivo de organismos aquáticos, incluindo peixes, moluscos, crustáceos e plantas aquáticas. Cultivo implica em algumas formas de intervenção no processo de criação para aumentar a produção, como estocagem, alimentação, proteção dos predadores etc.” Estamos domesticando peixes e fazendo um ótimo trabalho, como mostram os dados: a produção anual de peixes cultivados está quase ultrapassando os pescados selvagens. A indústria norte-americana da aquicultura produz sozinha mais de um bilhão de dólares de frutos do mar por ano. Mas, ao contrário do que você pode pensar, não foram os americanos que inventamos isso.
No passado
A aquicultura apareceu no mínimo no ano 6000 a.C., quando os povos indígenas Gunditjmara que viviam próximos ao que é hoje Victoria, na Austrália, começaram a criar enguias num pedaço de várzeas vulcânicas de 101 km² controlado por canais e barragens. Os chineses criavam carpas para fins alimentares em lagos formados por inundações desde 2500 a.C. (e, graças a seus esforços, inventaram os peixinhos dourados). Os romanos criavam peixes em grandes lagoas, desde os primeiros monastérios cristãos até a Idade Média.
A queda nos custos de transporte e o aumento das velocidades tornaram possível trazer peixes frescos para terra e reduziram a demanda por aquicultura em meados do século XIX. Mesmo assim, a pesquisa continuou. incu, tanto comerciais quanto experimentais, foram abertas por toda a extensão dos EUA e Canadá durante aquela época, incluindo a Woods Hole, que funcionou de 1885 até a década de 1950, e a Dildo Island, em Newfoundland, que era a mais avançada quando foi aberta, em 1889, produzindo e liberando no Atlântico Norte 200 milhões de bacalhaus por ano. Mesmo plantas aquáticas, como diversos tipos de alga, foram intencionalmente cultivados para colheita. Californianos colheram e gerenciaram o abastecimento de algas durante a Primeira Guerra Mundial assim como fizeram com outros recursos durante o conflito.
Estes esforços foram modestos, no melhor dos julgamentos, sendo mais frequentemente apenas um jeito de manter peixes normalmente pescados na vida selvagem prontos para comer do que um sistema de agricultura totalmente doméstico, como os desenvolvidos para galinhas ou gado. Na verdade, apenas 3% das 443 espécies marítimas cultivadas em 2007 foram domesticadas antes do século XX, e 106 delas passaram a ser controladas apenas na década passada.
Peixe fora d’água
Hoje, entretanto, os EUA são o segundo maior importador de frutos do mar no mundo e um dos maiores exportadores. A aquicultura norte-americana cria peixes de espécies como salmão, tilápia, robalo listrado, esturjão, walleye, bagre e perca amarela, assim como peixes de pesca esportiva, como a truta-arco-íris, e outros usados como isca, como o lambari. Os bagres formam o maior setor da aquicultura dos EUA, chegando a 40% de todas as vendas. Eles são criados tipicamente em grandes reservatórios de água doce ao longo da Costa do Golfo, assim como a maioria das espécies, exceto os salmões, que crescem em tanques de água doce e então são transferidos para água salgada para atingirem a maturidade. Caranguejos, abalones, ostras, amêijoas, mexilhões e até mesmo jacarés e tartarugas são produzidos em grandes sistemas de aquicultura ao longo do país. Plantas aquáticas destinadas a restauração de pântanos e algas como a spirulina, que é usada em suplementos nutricionais e comida para peixes, também são regularmente cultivadas.
Mundialmente, as quatro espécies mais criadas são, em ordem: carpa, salmão, tilápia e bagre. O atum não está nesta lista devido ao tamanho massivo da espécie, aos requisitos alimentares e ao fato de que ninguém conseguia fazê-los reproduzir em cativeiro até 2009 — pescarias no Mediterrâneo costumavam capturá-los ainda jovens no mar e trazê-los para a costa para maturarem. Mesmo sendo mais eficiente que a pesca convencional, este método tem seus inconvenientes. Pegue o salmão do Alasca, por exemplo. Como parte do programa de incubadoras do estado, as ovas de salmões artificialmente fertilizados são cultivadas e alimentadas com comida de peixe em pó até que os salmões jovens estejam grandes o suficiente para passar para gaiolas no mar, que mantém o salmão dentro e os predadores fora. Estes tanques enormes podem ter até 30 metros de largura e conter até 10 milhões de litros d’água, o suficiente para comportar 90 mil peixes. Assim que eles estão grandes o suficiente para competir com os salmões selvagens, são liberados no oceano, retornando para desovar na incubadora depois de dois até seis anos, dependendo do tipo.
Isto é ruim para você?
Muitas dessas incubadores de água doce são do tipo “fluxo-completo”, que precisa de um abastecimento intensivo de água corrente para retirar dejetos — até 100 toneladas para cada quilo de salmões jovens. Os peixes precisam também de uma grande quantidade de alimento — esta comida consiste tipicamente em peixes selvagens e resíduos. Em média, são necessários três quilos de peixes selvagens para produzir um quilo de salmão (o que é totalmente o oposto do que desejamos). Além disso, os currais de água salgada fazem muito pouco para evitar que lixo, doenças e parasitas se espalhem da população de salmões para o ambiente ao redor. E se o cercado fica numa área com fluxo de água insuficiente, metais pesados tóxicos irão se acumular no fundo do mar e destruir o ambiente local.
Estas toxinas também se acumulam nos salmões em concentrações muito mais altas que nos peixes selvagens. Um estudo de 2004 encontrou quantias consideráveis de contaminantes organoclorados em salmões cultivados que, se ingeridos durante longos períodos, poderiam se acumular em níveis perigosos para humanos. Por outro lado, os mesmos peixes crescidos em aquicultura também tinham entre duas e três vezes mais ácidos de ômega-3, então temos um trade-off aqui. Como explica Steven Schwager, professor associado de estatísticas biológicas e biologia computacional da Universidade Cornell,
Para um sujeito de meia idade que teve um problema na coronária e não quer ter outro, os riscos dos poluentes são os menores, e os benefícios do ômega-3 são muito maiores, ultrapassando de longe os riscos. Mas para pessoas jovens — e elas têm risos de acumular durante a vida estas substâncias cancerígenas — ou mulheres grávidas — com riscos de deficiências de nascimento ou redução de QI e outros tipos de dano ao feto —, os riscos são grandes o bastante para superar os benefícios.
Atuns criados em cativeiro frequentemente têm menores concentrações de mercúrio, graças a sua dieta. O atum selvagem como peixes que comem plâncton que absorvem mercúrio da atmosfera e rapidamente acumulam metal, o atum cultivado é alimentado com uma dieta de produtos plantados, como grãos e soja. Eles, portanto, acumulam alguma algum mercúrio, apesar da dieta, e frequentemente tem níveis de PCB e dioxina, devido aos cercados estarem situados no oceano.
O futuro é agora
Para resolver estas questões, os sistemas de aquicultura recirculantes (também conhecidos como RAS, do inglês recirculating aquaculture systems) foram inventados. Como o nome diz, cada criadouro limpa e reutiliza uma certa quantidade de água num cativeiro fechado (pense em peixes hidropônicos). Este sistema permite aos produtores um controle muito maior sobre o ambiente da incubadora, sem precisar de abastecimento de água doce. O RAS pode ficar em praticamente qualquer lugar, além de produzir peixes anualmente, em vez de a cada temporada. Outros peixes carnívoros, como bacalhau e atum, podem ser produzidos assim também, ao menos teoricamente.
Além disso, espécies maiores, como o kampachi, primo do atum-amarelo, pode ser em breve criado no oceano aberto, levado para tanques enormes usando vasos, de maneira que os resíduos sejam distribuídos numa área muito maior e causem danos menores ao ambiente. Kampachi Farm, a sucessora ideológica da Kona Blue Water Farms, que foi fundada em 2001 por uma dupla de biólogos marinhos, já está fazendo isso.
“O objetivo geral desses esforços é reduzir os danos causados pelo homem nos mares, por meio de um relacionamento melhor com nossos alimentos retirados do oceano”, diz Neil Sims, co-fundador e co-CEO da Kampachi Farms, numa declaração à imprensa. “A operação da Kona Blue realizou avanços tremendos na produção de peixes marinhos. Nós cultivamos quase 500 toneladas de kona kampachi por ano, sem impactos mensuráveis no ambiente além da área cercada.”
Me vê mais um espetinho de camarão! (Ou não)
O cultivo comercial de camarões, por outro lado, enfrenta uma barreira genética. Mais de 75% do camarão do mundo é produzido na Ásia, especificamente na Tailândia e na China. Os outros 25% vêm principalmente da América do Sul, tendo o Brasil como maior produtor. Apenas duas espécies, o camarão-de-patas-brancas e o camarão-tigre-gigante, constituem 80% do que é criado comercialmente. Duas monstruosas monoculturas de camarão são feitas em menos de meia dúzia de países podem ser facilmente devastadas por um surto de uma doença viral, bacteriana ou fúngica, assim como quase aconteceu com a banana Cavendish. Ops, deixa pra lá, já aconteceu isso. Mais de uma vez. E, considerando que os EUA importam 80% do camarão consumido anualmente, algo em torno de US$ 3,5 bilhões, a morte em massa dos camarões vietnamitas seria difícil de engolir (ou não).
Para prevenir que doenças se espalhem na aquicultura americana, a Agência de Proteção Ambiental (EPA), o Programa de Pesca da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA), o Departamento de Agricultura (USDA) o Serviço de Peixes e Vida Selvagem (USFWS), o Corpo de Engenheiros das Forças Armadas (ACOE) e as agências ambientais estaduais providenciam colaborativamente fiscalização e regulação no que diz respeito à qualidade da água e à proteção do ambiente. O Serviço de Inspeção da Saúde Animal e Vegetal (APHIS) do Departamento de Agricultura é encarregado especificamente de fiscalizar as condições de plantas e animas.
Então, enquanto a aquicultura não é a solução final ideal para nossa demanda por frutos do mar, é atualmente uma das melhores e únicas formas de fazermos isso. Porque não é tão fácil assim de voltarmos para as práticas de pesca industrial do século passado — simplesmente não há peixes suficientes no mar para isso.
[Phys Org – Wikipedia 1, 2 – FAO – USDA 1, 2, 3 – NOAA – Monterey Bay Aquarium – The NAA– Cornell – Seafood Source – Imagem do topo: NOAA, outras imagens: The Associated Press]