Em 2004, o exército dos EUA cometeu um erro gigantesco: passou a usar uma nova camuflagem digital chamada UCP (sigla para Padrão Universal de Camuflagem em inglês), um padrão único projetado para funcionar em qualquer ambiente. Mas alguns meses depois, conforme a guerra no Iraque se intensificava a cada dia, os soldados foram descobrindo a verdade: o UCP deveria se adaptar a todas as situações, mas não funcionava em nenhuma delas.
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Infelizmente, a corrida para encontrar um padrão que realmente funcione — uma corrida conhecida oficialmente como Esforços de Aperfeiçoamento da Camuflagem do Exército — vem sendo um desastre. Centenas de designers criaram novos padrões de camuflagem para a competição, e foram “peneirados” até restarem apenas quatro finalistas. Após quatro anos (e bilhões de dólares), o exército parecia pronto para escolher um vencedor.
Ainda assim os atrasos continuavam. O último rumor era que todo o projeto para Aprimoramento de Camuflagem estava prestes a ser cancelado. Diziam que o exército poderia simplesmente adotar a MultiCam, uma camuflagem digital feita pela empresa Crye Precision, usada provisoriamente desde a revelação que o UCP não funciona.
Mas isso ainda não aconteceu — e a história foi ficando cada vez mais estranha. Em dezembro, o congresso americano apresentou um projeto que impediria totalmente o exército de apresentar um novo padrão este ano. Até 2018, entretanto, a proposta exigiria que todo o Departamento de Defesa adotasse o mesmo padrão. Políticos, ao que parece, cansaram de gastar dinheiro em um problema sem fim. Em resposta ao meu pedido por um comentário do exército, o porta-voz William Layer pôde me dizer apenas o seguinte: “o exército está considerando diversas opções e levando em conta as recentes restrições legislativas”.
Entre acusações de incompetência e excesso de burocracia, também há o fato que a tecnologia de guerra está evoluindo rapidamente, e ninguém consegue prever muito bem como a camuflagem precisará se adaptar a longo prazo. O campo da ciência militar que gira em torno de como nossos olhos interpretam (ou deixam de interpretar) informações visuais ainda é bem novo. E jogar bilhões de dólares na cara do problema não teve o efeito desejado.
A história da invisibilidade
A camuflagem atual tem uma história relativamente recente. No nascimento das guerras modernas, no século XVIII – quando surgiram os rifles de longo alcance – o conceito de camuflagem incluía se vestir de verde-floresta ou cinza-campo. Na Primeira Guerra Mundial, as tropas experimentavam a “camuflagem dazzle“, que tornava difícil medir com instrumentos a proximidade de uma embarcação à distância. Logo a técnica passou a ser usada em humanos.
No início da Segunda Guerra Mundial, surgiram as reconhecíveis manchas em forma de rins das camuflagens mais modernas — e dali as coisas evoluíram rapidamente. No final da guerra, pintores modernos ajudaram a desenvolver padrões ópticos para enganar os olhos, pegando ideias emprestadas do cubismo e da op art (arte óptica).
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No final da década de 1970, contudo, o exército americano passou a usar um novo tipo de padrão, pouco popular, chamado de “textura dupla”, uma versão primitiva da camuflagem “digital” que conhecemos hoje. A textura dupla usava quadrados perfeitos de cor para imitar dois padrões de uma vez só: um menor e um maior, efetivos a várias distâncias.
Era um precursor da camuflagem digital, mas só na década de 90 nasceu a versão desenvolvida em computadores – e ressurgiu o estudo científico dessa área. Um oficial do exército chamado Timothy O’Neill, “o avô da camuflagem moderna“, foi um pioneiro com seus pequenos quadrados de cor, capazes de enganar os olhos para que vissem um soldado ou caminhão apenas como parte do plano de fundo.
Por que pixels fazem um trabalho melhor que as tradicionais manchas? Porque pixels são melhores em imitar padrões fractais, que nossos olhos interpretam como ruído. Sem se parecer com a “natureza”, a camuflagem digital não nos dá nenhum ponto para fixar a visão.
Mas o olho tem uma anatomia complexa, e é quase impossível recriar o mesmo truque óptico para milhões e milhões de soldados em um número infinito de ambientes. Por isso, surgiu uma indústria de empreiteiros e engenheiros independentes, cada um trabalhando em sua própria variante da camuflagem digital — incluindo os quatro finalistas dos Esforços de Aperfeiçoamento da Camuflagem.
Algumas dessas empresas não quiseram comentar o assunto quando entrei em contato com elas, aparentemente porque o Exército ainda vai anunciar o vencedor do concurso. Mas uma empresa em particular — a Hyperstealth Biotechnology Corp, designer da camuflagem para as forças armadas da Jordânia e do Afeganistão e uma das quatro finalistas dos Esforços de Aperfeiçoamento da Camuflagem — foi gentil o bastante para responder muitas das minhas perguntas sobre o design de camuflagem, e as tentativas do exército de aprimorá-la.
Enganando os olhos
Guy Cramer é CEO da Hyperstealth Biotechnology Corp. Ele me explicou que a camuflagem digital tenta usar ilusões de óptica avançadas para confundir o cérebro e fazê-lo não notar o alvo, em vez de simplesmente “se misturar” à paisagem ao redor. “Você não pode simplesmente passar tinta em um muro e chamar isso de camuflagem”, ele diz. “Nós não necessariamente tentamos criar padrões aleatórios. Nós queremos que o cérebro interprete padrões como parte do plano de fundo”.
Alcançar esse tipo de ilusão de óptica é difícil. Isso envolve ideias sobre a ciência das cores, a anatomia do olho humano e até mesmo a logística da criação de padrões – e ainda assim não é algo perfeito. Vamos pegar uma das maiores deficiências do UCP, o padrão digital fracassado do exército: a escala dos padrões pixelados.
Toda camuflagem digital tem duas camadas: o micropadrão (os pixels) e o macropadrão (as formas criadas pelos pixels). Se as manchas macro forem muito pequenas, como são no UCP, isso ativa um fenômeno óptico chamado isoluminância, interpretando um padrão de camuflagem cuidadosamente construído como uma superfície de cor clara.
Em outras palavras, isso torna mais fácil vê-lo à distância, exatamente o oposto do que se espera da camuflagem. Era um dos maiores problemas no UCP, como você pode ver:
E quanto à cor? Em 2004, quando o exército apresentou o UCP, foi revelado que não havia mais a cor preta na camuflagem – ela não ocorre na natureza, explicavam os oficiais. Mas Cramer discorda completamente: preto e marrom são essenciais para imitar sombras. O padrão finalista de Cramer para os Esforços de Aperfeiçoamento inclui algo chamado “luminância limite”, uma fina linha preta ao longo dos macro e micropadrões, que enganam os olhos a verem formas 3D:
“Se você não tiver pelo menos uma porcentagem disso na sua camuflagem, você vai se destacar e parecer bem 2D, porque não terá o efeito de profundidade”, ele explica. “Essa foi uma lição que aprendemos da forma difícil”.
Economias de escala
Há mais de meio milhão de soldados no exército americano, então fabricar uniformes para todos eles (pelo custo mais baixo!) também é um problema. É importante que a camuflagem “quebre” os contornos do corpo do soldado em pontos cruciais, como o pulso, o joelho e o tornozelo.
Tal qual as listras de um tigre, que correm perpendiculares a seus membros, essas “quebras” visuais ajudam a disfarçar a anatomia de um alvo humano. Mas quando um rolo de tecido camuflado é cortado em milhões de uniformes, pode ser difícil prever onde essas quebras irão terminar.
Da mesma forma, nossos cérebros são muito bons em reconhecer padrões — se nós vemos a mesma forma duas vezes, nós ficamos instantaneamente alertas de que algo está acontecendo. Então é muito importante para um uniforme que os lados direito e esquerdo nunca combinem. “Muitos padrões têm esse problema”, diz Cramer. “O cérebro vai ver uma anomalia no lado direito do peito e, caso veja um padrão muito similar no lado esquerdo do peito, ele liga os pontos imediatamente e entende: estou vendo a parte de cima de um corpo humano“.
O sucesso de Cramer vem, em parte, de sua habilidade de projetar padrões que cumprem todos esses critérios complexos. Ele é um pioneiro do design de camuflagem com algoritmos: em vez de confiar em seu próprio cérebro para criar padrões, ele escreve programas que geram fractais verdadeiramente geométricos. Fractais são padrões matemáticos que se repetem em qualquer escala.
Sem uma referência de escala, nossos olhos não conseguem diferenciar entre o fractal e o plano de fundo.
Esse é o motivo dos padrões de Cramer serem usados em tudo, de armas a helicópteros (sem mencionar os 2,5 milhões de uniformes): por não terem escala, eles escondem objetos pequenos (como humanos) ou grandes (como edifícios).
Testes e mais testes
A arte de testar esses padrões é quase mais importante do que o padrão em si, e é um processo que Cramer conhece bem, porque ele ajuda o exército americano nessa tarefa há quase uma década. O processo envolve questionar os melhores atiradores de elite do exército usando milhares de fotografias.
Na Academia Militar dos EUA, em West Point, as cobaias (que incluem atiradores de elite com visão mais-que-perfeita) vestem um equipamento de rastreamento ocular e são conduzidos a um anfiteatro imersivo, onde veem inúmeros slides de soldados camuflados em diferentes ambientes. Há uma grande variedade de imagens, de qualquer ambiente e clima concebíveis, de desertos a pântanos.
Além disso, eles também avaliam o uniforme em distâncias diferentes: todo padrão deve funcionar tão bem de perto quanto de longe. De acordo com a Soldier Systems, o projeto Esforços de Aperfeiçoamento da Camuflagem tinha 900 soldados testando cada padrão em 45 ambientes diferentes, resultando em 120 mil dados diferentes.
Parte crucial do teste é a rapidez em identificar uma anomalia visual, e a rapidez em descobrir onde está o corpo do soldado. Aquele milissegundo de decisão pode ter um grande impacto em campo, onde um atirador de elite pode identificar um alvo entre 12 e 30 segundos.
O futuro da camuflagem
Em agosto de 2013, uma equipe das Forças Especiais foi inesperadamente retirada de uma missão na Líbia, depois de grupos terroristas roubarem dezenas de armas e equipamentos dos caminhões do exército americano. O que isso tem a ver com camuflagem? Na verdade, tudo.
Os adversários levaram um dispositivo que poderia causar tanto dano quanto as metralhadoras e lasers que eles também roubaram: um tipo especial de óculos de visão noturna do exército americano, que detectam ondas curtas de luz infravermelha, o espectro SWIR. Esses óculos custam US$ 45 mil por unidade, e permitem que soldados vejam o comprimento de onda de 1 μm, onde as cores se misturam em uma massa branca.
Em outras palavras, eles tornam a camuflagem completamente inútil. Os únicos pares no mundo estavam nas mãos do exército americano, até serem roubados. “Isso nunca tinha sido um problema até agora”, explica Cramer. “Agora, você tem inimigos andando por aí com a mesma tecnologia”.
Isso ajuda a explicar o maior problema da camuflagem: à medida que os inimigos mudam, e conforme cresce o financiamento para tecnologias militares, o exército americano não pode mais ter certeza de que outras forças militares não os verão de longe.
Nós avançamos bastante desde a camuflagem cinza-pedra ou verde-campo do século XIX, e também desde os anos 1960 e 70, quando um único padrão durava por muitos anos e muitos conflitos. A guerra moderna está mudando a uma velocidade dramática e, mesmo que o Departamento de Defesa americano escolha um novo padrão este ano ou no próximo, não vai demorar até que sejam forçados a reavaliá-lo.
É quase como se o exército não estivesse olhando para um futuro distante o suficiente, quando a impressão 3D e materiais inteligentes poderão gerar novos padrões e texturas que variam junto às condições do ambiente.
A Hyperstealth, por exemplo, está trabalhando no Quantum Stealth, um projeto de camuflagem por meio da flexão da luz, que vem sendo chamado de “capa da invisibilidade”. Um projeto que, infelizmente, seus criadores ainda não comentam em detalhes publicamente.
Foto inicial: fuzileiros navais dos EUA patrulham parte remota da província de Helmand, Afeganistão. Scott Olson/AP.