Jerry Lee Lewis, o sobrevivente improvável

Com um terço de estômago a menos, muitos anos de drogas e álcool, vida conturbada e crença de que vai para o inferno, o último pioneiro do rock chega a 87 anos
Imagem: Reprodução/Trouble in Mind

O cantor e pianista Jerry Lee Lewis chegou aos 87 anos de vida neste 29 de setembro. Um dos roqueiros mais temperamentais, impulsivos e imprevisíveis de todos os tempos nem deveria mais estar por aqui, diria qualquer profissional de medicina. Mas está. Com menos um terço de estômago, anos de abuso de álcool e anfetaminas, manuseio de armas de fogo e incêndios do próprio piano em lugares fechados. Mesmo com tudo isso, ele segue na Terra enquanto os outros principais pioneiros do rock’n’roll dos anos 1950 já se foram.

Jerry, codinome “The Killer”, viu as mortes de seus contemporâneos Elvis Presley (42 anos em 1977), Roy Orbison (52 em 1988), Carl Perkins (65 em 1998), Johnny Cash (71 em 2003), Chuck Berry (90 em 2017) e Little Richard (87 em 2020). Há o caso de Buddy Holly, morto com apenas 22 anos em 1959, mas num acidente de avião.

Fui testemunha ocular de como os humores de Jerry Lee podiam mudar em questão de segundos no show dele em 1º de dezembro de 1993 no antigo Palace, em São Paulo. A apresentação boa e profissional teve uma reviravolta durante “Johnny B. Goode”, cover de Chuck Berry.

Irritado com uma microfonia, ele arrancou seu microfone do suporte no piano. No refrão, a cada vez que cantava “Go! Go, Johnny, go! Go!”, os “go!” eram seguidos por uma porrada que Jerry dava no piano com o microfone – um estrondo ruidoso amplificado para o público. Só isso já teria valido o preço do ingresso.

Condenado ao fogo do inferno

O pianista surgiu como um dos inexplicáveis talentos que abençoaram a pequena gravadora independente Sun Records, de Memphis, Tennessee, entre 1954 e 1956, junto com os acima citados Presley, Perkins, Cash e Orbison. Todos foram para grandes gravadoras em pouco tempo, mas os discos que gravaram na Sun fizeram história.

Nascido em Ferriday, Louisiana, em 1935, Jerry Lee era de uma pobre família evangélica típica do sul dos EUA. Caiu de amores pelo piano logo cedo e praticava junto com seu primo Jimmy Swaggart – que se tornaria um famoso pastor evangélico da TV (seus programas foram exibidos na TV Tupi aqui no Brasil) e caiu em desgraça nos anos 1980 por um escândalo sexual.

Pelo rádio e por escapadas noturnas para o lado negro de uma cidade racialmente segregada, o adolescente Jerry descobriu o ritmo mais excitante dos pianistas negros de boogie woogie e rhythm’n’blues. E absorveu o estilo com uma mão esquerda com muito balanço e uma mão direita agressiva que seria sua marca.

A mãe de Jerry chegou a mandá-lo para uma escola evangélica no Texas para que ele tocasse apenas músicas religiosas. Foi expulso logo de cara ao tocar uma versão boogie de um hino gospel durante uma cerimônia. Primeiro sinal de uma personalidade rebelde, imprevisível e incontrolável.

A criação religiosa e a paixão por uma música estimulante e sensual estabeleceram um conflito interno permanente em Jerry Lee. Nunca deixou de ser temente a Deus, mas acreditou que estava condenado ao inferno por seus pecados musicais.

O jovem músico deu seus primeiros passos tocando em clubes noturnos de sua região e até gravou uma demo em 1952 em Nova Orleans. Logo descobriu que o novo rock’n’roll era uma versão ainda mais bombástica do boogie. Em 1956, decidiu ir a Memphis fazer um teste na Sun Records, já famosa por revelar Elvis Presley dois anos antes. Passou e ficou por lá. Primeiro, como músico acompanhante. Pouco depois, como artista solo com seu primeiro single, “Crazy Arms”.

É dessa época a associação de Jerry Lee ao que historicamente ficou conhecido como The Million Dollar Quartet. No fim de 1956, o já rei Elvis visitou os velhos amigos nos estúdios da Sun e logo estava cantando e tocando piano numa jam improvisada com Jerry Lee e Carl Perkins – Johnny Cash aparece nas fotos daquele dia, mas não participou para valer da parte musical. Curiosamente, os rapazes cantaram mais músicas gospel e country que rock.

Auge e desgraça

O estouro de Jerry Lee veio em 1957 com “Whole Lotta Shakin’ Goin’ On” e “Great Balls of Fire”. Essa última, um rock sexualmente sugestivo e com letra certamente inspirada pela noção pessoal de danação no inferno do cantor. Um áudio dessa época gravado entre sessões traz Jerry dizendo para Sam Phillips, o dono da Sun: “Tenho o diabo dentro de mim!”.

A primeira vez de Jerry Lee na TV americana é um clássico. No programa The Steve Allen Show, ele começa “Whole Lotta Shakin’ Goin’ On” sentadinho num banquinho, vai se empolgando com o crescimento da música, dá um coice em seu assento e segue em pé até o fim. Nos últimos instantes, o já referido banquinho é visto voando pelo estúdio em direção ao apresentador.

É uma versão compacta da anarquia que Jerry promovia em shows, tocando com uma perna estendida sobre o teclado ou botando fogo no piano – sob risco de matar todo mundo numa casa de shows fechada.

O auge de sucesso de Jerry Lee durou menos de dois anos. Em 1958, numa turnê pelo Reino Unido, um repórter deu o furo mundial de que ele era casado (pela terceira vez aos 22 anos!) com uma prima de 13 anos de idade, Myra Gale Brown. Escândalo mundial que imediatamente jogou o cantor no ostracismo.

Na lata de lixo precoce da indústria do entretenimento, o comportamento já intempestivo piorou. Jerry mergulhou em anfetaminas, álcool e brincadeiras sem graça com armas carregadas. Acertou um tiro no baixista de sua banda, que sobreviveu, processou e ganhou indenização. Tudo só piorou quando, em 1962, seu filho de 3 anos com a esposa-prima morreu afogado na piscina da casa comprada nos dias de vacas gordas.

(Não foi o único filho a morrer precocemente. Em 1973, Jerry Lee Lewis Jr., de um casamento anterior, faleceu aos 19 anos num acidente de carro)

De decadente a lenda

Para se manter, Jerry Lee apelou para uma carreira supostamente bem comportada (em público, pelo menos) como cantor country. Mas a ressurreição do rock graças aos Beatles, Rolling Stones e outras bandas inglesas reacenderam a chama. O cantor lançou um LP fantástico gravado no Star-Club de Hamburgo, Alemanha, que pode não ter sido bombástico nas paradas, mas é cultuado ainda hoje.

A carreira seguiu nesse revezamento de country e rock de acordo com o ânimo. Em 1969, Jerry Lee participou do Toronto Peace Festival (cuja atração principal era a estreia mundial de John Lennon e sua Plastic Ono Band, antes mesmo do anúncio oficial do fim dos Beatles).

Com uma camiseta de gola rulê preta completamente fora da moda vigente, Jerry confrontou seguidamente com ironias e sarcasmo o público quase todo hippie. Fez um bom show, musicalmente falando. E até tocou guitarra numa cover de “Mystery Train”, célebre com Elvis Presley.

Virar lenda do rock não tirou Jerry do ostracismo na gravação de novos discos. Nem brecou seu comportamento cada vez mais tresloucado na vida pessoal. Em novembro de 1976, muito doido, foi até o portão de Graceland, a mansão de Elvis Presley em Memphis, e deu uns tiros enquanto alegava ser o verdadeiro rei do rock. Foi preso e fichado.

Há também um caso obscuro: a morte de sua quarta esposa (de sete, no total) Jaren Elizabeth Gunn Pate em 1982, afogada na piscina da casa de um amigo na qual ela se refugiou após se separar de Jerry Lee. Dois anos depois, a revista americana Rolling Stone publicou reportagem que especulava se o músico poderia ter envolvimento criminoso nesse caso.

Fisicamente, os excessos pegaram na entrada dos anos 1980. Em 1981, já foi parar no hospital em situação grave por úlceras. Em 1985, passou por uma arriscada cirurgia na qual teve um terço do estômago ulcerado extraído. Suas chances de sobrevivência eram de 50%.

Novo documentário

Como artista criativo, Jerry Lee não fez nada realmente significativo nas últimas décadas. O que não quer dizer que não tenha feito álbuns simpáticos de velha lenda do rock com participações especiais.

A melhor biografia segue sendo “Hellfire”, publicada originalmente em 1982 pelo ótimo jornalista Nick Tosches (1949-2019), que adorava figuras fora da curva.

Jerry Lee também teve sua biopic, A Fera do Rock (“Great Balls of Fire”), de 1988, com Dennis Quaid em seu papel e Winona Ryder como sua esposa-prima. O artista participou da regravação da trilha sonora.

E, em maio último, o diretor Ethan Coen (de “Fargo”, “O Grande Lebowski” e “Onde os Fracos Não Têm Vez”), lançou no Festival de Cannes o documentário “Jerry Lee Lewis: Trouble in Mind”. Grande fã, Ethan diz que fazer essa obra sobre Jerry foi sua salvação da ideia de nunca mais fazer filmes que ele vinha nutrindo.

Ethan Coen pode ter sido salvo. Jerry Lee, não se sabe. Mas ainda não chegou a hora de ele saber se vai passar a eternidade junto a grandes bolas de fogo como sempre acreditou.

Marcelo Orozco

Marcelo Orozco

Jornalista que adora música, cultura pop, livros e futebol. Passou por Notícias Populares, TV Globo, Conrad Editora, UOL e revista VIP. Colaborou com outros veículos impressos e da web. Publicou o livro "Kurt Cobain: Fragmentos de uma Autobiografia" (Conrad, 2002).

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