Texto: José Tadeu Arantes | Agência FAPESP
O resgate das línguas, mitos e tradições indígenas tornou-se um componente muito ativo da reconfiguração multicultural do país. Acolhidos pelas gerações mais novas e integrados com as tecnologias da contemporaneidade, esses conhecimentos ancestrais ampliam horizontes cognitivos e propõem novas formas de ser e estar no mundo.
O Laboratório de Pesquisa Linguagens em Tradução (Leetra) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) tem contribuído para o processo. Liderado pela pesquisadora Maria Silvia Cintra Martins, professora sênior do Departamento de Letras da UFSCar, e apoiado pela FAPESP, o Leetra tem entre suas linhas de pesquisa o estudo de línguas e literaturas indígenas e o letramento e comunicação interculturais. Mais do que tudo, o grupo vem trabalhando na recriação de lendas indígenas no formato de jogos digitais.
Depois de Jeriguigui e o Jaguar na terra dos bororos, o Leetra acaba de lançar Kawã na terra dos indígenas maraguá. Com o objetivo de subsidiar práticas de alfabetização e letramento interdisciplinares, o jogo destina-se a alunos e professores de escolas de Educação Infantil e Ensino Fundamental I.
“Ao jogar, estudantes e professores encontrarão elementos culturais típicos da cultura tradicional Maraguá – e também elementos das histórias de assombração cultivadas por esse povo indígena amazonense. Encontrarão, ainda, elementos que hoje fazem parte da luta política dos Maraguá em defesa de suas terras, bem como de nossa luta global pela sustentabilidade do planeta e a preservação dos animais”, conta Martins à Agência FAPESP.
O verbete sobre os Maraguá ainda não existe no excelente catálogo “Povos Indígenas no Brasil”, do Instituto Socioambiental (ISA). Porém, Martins informa que vivem no Baixo Amazonas, nas margens do rio Abacaxis (afluente da margem direita do Amazonas, entre o Madeira e o Tapajós), divididos em três aldeias no município de Nova Olinda do Norte (AM). As populações ribeirinhas e os povos tradicionais que habitam a região (Munduruku e outros) foram, recentemente, vítimas de grandes violências, comandadas por indivíduos implicados na pesca ilegal.
“Os Maraguá falam um idioma que combina o nheengatu [derivação do tupi antigo que se tornou a língua geral ou língua franca do país durante o período colonial] com o aruak. E também se comunicam em português. Estão organizados em seis clãs, cujas famílias possuem um mesmo ancestral comum: clã do gavião, clã da vespa, clã do boto, clã da onça-pintada, clã da sucuri e clã do peixe-elétrico. Kawã, o herói do jogo digital, pertence ao clã do Gavião”, afirma Martins.
A pesquisadora fala que os Maraguá se orgulham de ser grandes guerreiros, caçadores destemidos e pescadores habilidosos. Como acontece com outros povos indígenas, suas tradições culturais incluem a arte de fabricar vasilhas de cerâmica, pinturas corporais e ritos de passagem para a idade adulta. Esses ritos, que exigem provas de coragem e autossuperação, ecoam o padrão arquetípico da “jornada do herói”, que foi explorado por ela na roteirização dos jogos.
“Kawã passa primeiro pelo ritual do Wakaripé, ao qual as crianças se submetem com cerca de 10 anos, e que marca a transição da infância para a vida adulta. Depois, aos 15 anos, enfrenta o ritual bem mais desafiador do Gualipãg, que credencia o indivíduo a se tornar caçador-guerreiro-chefe”, conta.
Aos seres típicos desses rituais – a onça-pintada, o gavião-real e a sucuri com mais de seis metros –, Martins tomou a liberdade de acrescentar outros personagens, que não fazem parte das iniciações, mas povoam o imaginário dos Maraguá, que se deleitam com histórias de assombração. É o caso dos Zorak, homens-morcegos que, segundo a tradição, habitavam no passado o território Maraguá. Criaturas de Anhãga, o Senhor do Mal, a quem obedecem e prestam serviços malignos, os Zorak possuem dentes pontiagudos e não têm mãos, mas asas no meio das costas. Moram ao redor do lago perdido Waruã, de onde ninguém volta.
“Os Zorak entraram no fabulário Maraguá a partir do ataque a jovens caçadores da aldeia, que, desobedecendo o que os velhos ensinam, resolveram caçar à noite. Hoje, essa história possui relação com as discussões sobre a preservação da Amazônia, o cuidado com a floresta e seus recursos e a resistência às invasões ilegais de garimpeiros, madeireiros e pescadores predatórios na região do rio Abacaxis. Tudo isso contextualizado pela luta global pela sustentabilidade do planeta”, enfatiza Martins.
Além das descrições dos rituais, a pesquisadora utilizou como referência a literatura Maraguá, na qual se destacam os escritores e escritoras indígenas Elias Yaguakãg, Lia Minapoty, Roni Wasiry Guará, Uziel Guaynê e Yaguarê Yamã, sobre os quais é possível encontrar com facilidade referências biográficas e indicações de obras na internet.
O próximo e ambicioso passo de Martins e demais colaboradores do Leetra é a adaptação para o formato de jogo digital do já grande livro clássico da etnografia A Queda do Céu, do xamã e líder político yanomami Davi Kopenawa em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert.
O jogo digital Kawã na terra dos indígenas maraguá pode ser acessado em: www.leetra.ufscar.br/pages/game_kawa.