Como o Google quer mudar o mundo: Larry Page no Google I/O 2013

Após quase três horas de apresentação, Larry Page, co-fundador do Google, subiu ao palco do Google I/O para falar de otimismo e coisas positivas. Ele não largou o mouse para virar palestrante de autoajuda (assim achamos e esperamos), mas o tom zen permeou toda a sua fala. E o discurso é realmente atraente e bonito, […]

Após quase três horas de apresentação, Larry Page, co-fundador do Google, subiu ao palco do Google I/O para falar de otimismo e coisas positivas. Ele não largou o mouse para virar palestrante de autoajuda (assim achamos e esperamos), mas o tom zen permeou toda a sua fala. E o discurso é realmente atraente e bonito, mas nem sempre condiz com a realidade.

O susto inicial com a voz de Larry, fruto de uma rara paralisia das duas cordas vocais, praticamente passou batido ao final dos mais de quarenta minutos de palco. Em tom sereno, emanando boas vibrações e contagiando a plateia com um discurso alto astral, a mensagem passada foi a de que as oportunidades estão aí e, além de deixá-lo rico com um app bacana, de quebra elas podem mudar o mundo, acabar com a fome e revolucionar os tratamentos médicos. E não são hipérboles, ou licenças poéticas no meu texto. No decorrer do seu discurso e na sessão de perguntas e respostas, ele tocou mesmo nesses dois pontos.

E foi além. Pediu mais foco em ciência e matemática nas escolas, mais gente se dedicando às engenharias, mais pessoas envolvidas com problemas específicos em diversas áreas. Mais gente respirando tecnologia para que, no futuro, olhemos para hoje como hoje olhamos para nossos antepassados que tinham como maiores desafios de suas vidas colher alimentos e caçar. O futuro de Page é livre da fome, com menos acidentes automotivos e muito ócio criativo, tudo graças à tecnologia. “O americano médio gasta cerca de 50 minutos indo e voltando do trabalho. Imagine se recuperássemos esse tempo para fazer outras coisas.” (Para efeito de comparação, um paulistano médio gasta 1h30 no trânsito diariamente.)

Além de falar do futuro, ele também cobrou mais foco em coisas que importam no presente. Menos atualizações incrementais, mais coisas realmente novas, revolucionárias. Citou, nominalmente, algumas trocas de farpas com Microsoft e Oracle e ergueu a bandeira do “dinheiro é menos importante que o progresso” ao comentar o processo que a Oracle moveu contra o Google em torno do Java, um dos pilares do Android.

Foi um discurso bonito. Muitos olhos brilharam do início ao fim, muitos deram vivas a um Google que se importa, que faz o que faz pensando em melhorar a vida das pessoas. A certa altura um adolescente pegou o microfone para perguntar, inspirado pelo clima quase tecnohippie, como ele poderia mudar o mundo! Larry teve um momento de hesitação, como se, ao som das palmas da plateia, ele tivesse conseguido. Tudo muito lindo, mas… na prática, é isso mesmo o que vemos em Mountain View?

Precisamos conversar sobre o Google

O Google é legal. Nós usamos um monte de coisas dele e, de verdade, adoramos uma infinidade de produtos. Android, pesquisa, Gmail, Mapas, Gtal… digo, Hangouts. E ainda há aquelas coisas malucas, como Glass e carro autômato. Mas, sejamos sinceros: o lance do Google é fazer dinheiro.

E não há nada de ruim nisso. O Google é uma empresa. Poderosíssima, do tipo que anuncia, em uma grande apresentação como a de ontem, que está constantemente conversando com líderes mundiais para viabilizar suas engenhocas em prol das pessoas — e, embora não tenha dito, dos negócios também. Agradar seus clientes é parte do jogo, não há do que se envergonhar ou o que esconder aqui.

Larry Page Sincero.

Por tudo isso ficou uma sensação estranha na fala de Larry. Ou, pelo menos, um distanciamento da realidade em que o Google existe hoje e o mundo quase utópico que seu cofundador imagina a empresa inserida. É a eterna busca por humanizar o Google.

O discurso derrapa até mesmo pensando no Google I/O. Larry incentivou mudanças agressivas, que os desenvolvedores ignorem atualizações incrementais. Ontem, no evento mais importante do ano para a sua empresa, ela só trouxe… melhorias em produtos já existentes. Melhorias fantásticas, que podem melhorar a vida de muita gente, mas nada exatamente novo, apenas incrementais.

E sobre o “nós contra outras empresas”:

“Toda matéria que leio sobre o Google é ‘nós contra alguma outra empresa’ ou algo estúpido do tipo, e não acho que isso seja muito interessante. Deveríamos estar criando grandes coisas que ainda não existem. Ser negativo não é a forma com que faremos progressos. As coisas mais importantes não são perda de tempo, existe muitas oportunidades por aí.”

Se ficarmos só no que foi abordado no Google I/O, o discurso se perde em meio a produtos que o Google criou em resposta à concorrência. All Access para ir atrás do Spotify, Google+ para o Facebook, Hangouts para o Facebook/WhatsApp. A própria busca, o primeiro e mais importante produto do Google, não foi novidade. Foi (e ainda é) melhor que a concorrência, mas não algo inédito.

Ele também discursou que uma postura negativa é ruim para a tecnologia e que padrões abertos são o caminho. Se ações dizem alguma coisa, neste caso as do Google gritam que essas ideias liberais só valem quando não prejudicam a si mesmo e/ou todo mundo embarca no mesmo navio.

Larry falou sobre bate-papos e citou a inclusão do Gtalk no Outlook como um exemplo de via de mão única na interoperabilidade de dados, alfinetando a Microsoft — com alguma razão. A saída encontrada pelo Google parece ter sido limar o protocolo XMPP, aberto, em prol de um proprietário, que serve de base para a nova plataforma (Hangouts) e, segundo um email disparado a desenvolvedores do App Engine, não é totalmente compatível com apps que usam o XMPP.

A questão de contatos é antiga; em 2010 houve uma guerra fria com o Facebook em torno do mesmo assunto. As ações de contenção do Google não se limitam a esse ponto. Quase em paralelo à sua apresentação o Google exigiu que a Microsoft removesse e desativasse o app do YouTube para Windows Phone, lançado semana passada, por permitir o download de vídeos, não exibir anúncios e furar restrições de conteúdo (vídeos que não foram autorizados a serem exibidos em dispositivos móveis).

São abordagens negativas e, claro, do Google, não da pessoa Larry Page (e muito menos de seus ideais). Temos aqui duas entidades intrinsecamente ligadas, mas ainda assim distintas, o que gera essa dissonância entre discurso e ação e, em última instância, certo desconforto.

A cidade experimental do Google

A cidade sem lei do Google.

As ambições do Google são enormes. “Organizar toda a informação do mundo” é algo que eles parecem levar a sério e iniciativas como a do carro autômato indicam que a busca por esse estado utópico onde a tecnologia chega a seus limites é a meta final da empresa.

Mas dá para revolucionar tanto assim em um mundo cheio de regulações, leis e interesses? O lance do carro que dispensa condutor é um belo exemplo de como isso é complicado em tantos níveis que só por tentar o Google já é digno de crédito.

A lei da califórnia teve que ser alterada para permitir que os carros transitassem sem infringi-la e a indústria automotiva ainda explora, com sucesso, o status que um automóvel confere — e o “poder” que dá ao motorista. É o mesmo problema de inserção que os carros elétricos enfrentam, no caso contra a resistência da indústria do petróleo.

No palco, Larry citou outro ponto caótico nos Estados Unidos que clama por revolução: planos de saúde. Com o sistema público falido, esse é um grande filão por lá. Como mexer com isso sem irritar quem lucra bastante nesse setor? A ideia do Google é ousada: um beta test com seres humanos. Uma cidade com voluntários que experimentariam as próximas grandes revoluções. O 1% não mais rico, mas que verá o futuro antes do resto. A Google City.

“Tem sido difícil. Tínhamos o Google Health e não fizemos qualquer progresso. Os problemas eram regulatórios… Descobrimos que o tipo de coisa em que estávamos trabalhando não podia ser feito. (…) Talvez tenhamos um lugar seguro onde as pessoas possam viver em um mundo como esse e ver se ele funciona.”

Ok, ele não disse “Google City”, nem apresentou planos concretos para um projeto de dimensões tão colossais, mas disse, sim, que esse tipo de experimentação, onde a lei dos homens e suas burocracias não têm vez, é o caminho para desencadear revoluções que tornarão, daqui a 50 anos, a fome e outras mazelas em capítulos de livros de história. Larry ainda citou o sequenciamento do DNA humano como outra coisa cujo enorme potencial é barrado pela lei. Dá para imaginar uma maluquice dessas, ou até onde ela pode ir? E será que teria Google Fiber para todo mundo nessa cidade?

Entre um smartphone e outro, picuinhas com outros players da indústria e projetos quase utópicos, quase ingênuos dentro da forma como a sociedade está organizada hoje, o Google insinua que quer ser mais do que uma empresa de tecnologia, ou de publicidade, ou que uma empresa mesmo. O Google quer mudar o mundo.

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