Acho linda a ideia de substituir um pedaço da poluição e caos causado pelos carros nas grandes cidades por bicicletas. Faz bem pro meio ambiente, pra saúde das pessoas e pode até fazer você chegar ao destino mais rápido e gastando menos. Mas pra fazer as pessoas abraçarem a ideia é necessário muito mais que bicicletadas, dias sem carro e campanhas ambientalistas. É preciso encarar a bicicleta como parte do sistema de transporte público, um vagão do metrô fora do trilho. Testei o razoavelmente recente sistema Bicing, de Barcelona, considerado o mais bem sucedido do mundo, e agora quero andar de bibicleta na minha cidade, sem precisar comprar uma ou me preocupar em ela ser roubada. Como um negócio assim funciona? Elegi cinco razões e uma adicional para que isso dê certo no Brasil.
Esses sistemas vêm sendo criados não porque (apenas) é uma solução ecologicamente correta e porque andar de bicicleta é legal e feliz. Mas porque as bicicletas ajudam a solucionar problemas do trânsito, que pode ser terrível nas grandes cidades européias. Nos cartões postais tudo parece calmo, mas passei por momentos bastante paulistanos em termos de engarragamentos em Barcelona.
Aí minha irmã, que mora na capital catalã há 7 anos, me emprestou o cartão do Bicing dela. Como usar? Bastava encostar o negócio em tótem de uma das centenas de estações da cidade, que aparecia na telinha qual bicicleta eu deveria pegar – ela seria "destrancada" da parte de descanso, onde cabem umas 30. Depois de pedalar, bastava devolver em uma estação semelhante, em um espaço livre, e pronto. Achei genial. E, é claro, comecei a me perguntar: por que um lance tão simples dá certo e não é pensado no Brasil? O que precisa para isso funcionar?
1. Elas devem estar por toda parte
Cada estação consiste de uma barra de metal com furos (onde se encaixa a bicicleta, que fica bastante segura), com espaço para umas 20-40 bicicletas, e um tótem com uma interface eletrônica e um mapa das estações próximas. Basta aproximar o seu cartão ali que aparecerá na tela qual bicicleta você deve retirar – ela então ficará destravada por alguns segundos.
A idéia de tantas estações, tão próximas, é que você não apenas possa alugar uma bicicleta em basicamente qualquer lugar, mas principalmente devolvê-la em vários pontos diferentes. Isso porque no Bicing, como no Vélib, tenta-se deixar as estações a não mais que 300 ou 400 metros de outra. Se não há espaço no estacionamento, ele te dá mais 10 minutos de prazo e indica onde você precisa devolver – devolver, no caso, é engatar a bike em uma estação com vaga.
A bicicleta então é um sistema complementar: se você mora longe ou numa região mais montanhosa, pega um metrô ou ônibus, e na saída da estação, encontrará bicicletas. Você faz o quilômetro que faltaria até o destino pedalando – portanto nem fica suado com o exercício. Não vale muito a pena fazer longos trajetos, a não ser que você vá trocando de bicicletas no caminho, por causa de uma regra de ouro:
2. Você precisa devolver a bicicleta em meia hora
E isso é uma vantagem. No Bicing, como em outros sistemas, você só pode ficar com a bicicleta por 30 minutos. Se não você pagará multa (50 centavos de Euro). Se ficar mais de duas horas com a bike, a multa é mais pesada (4 Euros) e você ganha uma advertência, tudo descontado já no cartão de crédito cadastrado. Três delas e o seu cartão da Bicing é bloqueado, precisando fazer um novo cadastro (e pagar a anuidade) para recuperar o direito. Se você demorar mais de um dia para devolver a bicicleta, a multa já é de 150 Euros (R$ 364).
A ideia é que você não use a bicicleta para turismo ou uma trilha. Na parte central há uma concentração maior delas, próximas as estações de metrô ou paradas de ônibus especialmente. Na prática, é incentivado o uso da magrela para viagens curtas. E isso faz com que não sejam necessárias tantas bicicletas para atender todo mundo: estima-se que cada uma seja usada por até 10 pessoas diferentes no dia, rodando 25 km em diferentes mãos.
3. A cidade precisa ser adaptada
Não é em toda cidade que é possível instalar quilômetros de ciclovias. Barcelona era um desses casos: uma cidade que tinha calçadas e pistas. E, a bem da verdade, não foram instaladas ciclovias de fato. Na maior parte da cidade, a ciclovia é na verdade um pedaço da calçada pintado com uma faixa. E só. Por lá não há nada dessa obrigação praticamente impossível de se concretizar do Brasil, onde a bicicleta tem de andar na pista com os carros em alta velocidade.
A bem da verdade, imaginava-se que a convivência entre ciclistas e carros seria tranquila nas ruas de Barcelona quando o Bicing foi lançado. Mas, pelo relato das pessoas com quem conversei lá, o início do projeto foi marcado por muitos acidentes e discussões entre ciclistas e motoristas, especialmente porque Barcelona não tinha muito a cultura de bicicletas e muita gente que nunca havia arriscado pedaladas passou a andar pelas ruas. Rapidamente, a prefeitura se mobilizou: a lei foi modificada também para proteger o ciclista dos carros em caso de acidentes (eles têm preferência), assim como os pedestres dos ciclistas.
Simultaneamente, a cidade foi adaptada, pegando um pedaço da calçada e deixando faixas de travessia mais nítidas. Os estacionamentos das bicicletas que foram instalados não ocupam tanto espaço, e podem ser instalados em qualquer lugar. Onde não há calçada para o Bicing, pega-se um pedaço do estacionamento da rua, como nessa foto:
4. Tem de ser barato – para o governo e o cidadão
O Bicing, ao contrário dos sistemas franceses, só funciona para moradores de Barcelona. Você compra um cartão (magnético, com RFID), paga uma anuidade de 30 Euros (R$ 72), associa a conta a um cartão de crédito e tem o direito a pegar quantas bicicletas quiser, desde que devolva no tempo certo. No início, para popularizar o sistema, a assinatura anual custava módicos 6 Euros.
É claro que, pelo custo de funcionamento, vê-se que o sistema não foi feito para dar lucro. Quem administra o sistema é uma gigante da publicidade outdoor na Europa, a ClearChannel, que criou o primeiro dos sistemas de aluguel de bicicleta em Rennes, na França, em 2001. O governo paga 2,13 milhões de Euros (R$ 5,14 milhões) por ano ao Clear Channel, e o dinheiro vem todo do Detran/CET local: os carros pagam multas por estacionar em lugar proibido, a grana vai para bicicletas.E R$ 5,14 milhões é pouco mais de 1% do que a CET arrecada em multas na cidade de São Paulo.
Há uma opção ainda de não pagar coisa alguma à empresa que administra o sistema das bicicletas: atualmente Barcelona considera liberar as estações e bicicletas para publicidade, podendo, ao invés de gastar dinheiro, ganhar com as bicicletas ao custo de alguma poluição visual.
5. A bicicleta precisa ser bacana
Ela não parece a minha estimada Caloi 12 que tinha quando adolescente, mas não é tão pesada (tem 13 kg). Ela é funcional, com um câmbio Shimano de 3 marchas bem definidas, cesta aberta na frente e quadro rebaixado para que você possa levar coisas maiores no meio. A altura do selim é bastante regulável, então dá para pessoas das mais variadas alturas usarem.
Há buzina, faróis dianteiro e traseiro, de LED, que ligam automaticamente quando está escuro. No geral, ela dá a impressão de ser uma bicicleta boa, não vagabunda. Cada bicicleta custa (à empresa que administra) cerca de 300 Euros (R$ 738). As mais novas têm selins com acolchoamento melhor e freios que não fazem barulho. As versões mais recentes são especialmente reforçadas e montadas para que não haja roubos ou vandalismo, um problema bem grave.
Curiosidades tecnológicas: o sistema das estações de aluguel rodam Windows CE e há programinhas para Android e iPhone que permitem você se conectar ao servidor do Bicing e ver onde é a estação mais próxima ou se há espaço para estacionar a bicicleta (ou disponíveis para alugar).
Bônus: Não basta educação
Já imagino as pessoas pensando "isso nunca daria certo no Brasil", ou que os europeus são mais educados, etc etc. De fato, um projeto bem semelhante (em termos de funcionamento, não de alcance) foi tentado no Rio de Janeiro no fim de 2008 e a princípio falhou: devido ao elevado número de roubos de bicicleta, o serviço está suspenso.
Antes de começar o bairrismo (ou aquele patriotismo às avessas), vale lembrar que o contra-exemplo do Vélib’, o sistema de aluguel de bicicletas de Paris, que está praticamente sendo desativado. O motivo? Vandalismo. As pessoas simplesmente destroem as bicicletas, ou levam para passear no fundo do rio. Das 20.000 bicicletas iniciais, todas foram roubadas ou tiveram de ser substituídas por causa do vandalismo. Ao ponto que a empresa que administra o sistema disse que era insustentável continuar. [UPDATE: Como avisaram nos comentários, o problema foi que era fácil de tirar as bikes dos descansos. Isso foi corrigido e o serviço voltou este mês]
Em Barcelona, o índice de furto de bicicletas comuns ainda é alto e o vandalismo também. Ver bicicletas pela metade nos lugares onde elas são trancadas é uma cena bem comum:
No primeiro ano, quase um terço das bicicletas de Barcelona foi vandalizada. O governo então começou a agir. Seguindo o princípio que é importante coibir fortemente as contravenções simples para manter a segurança (a doutrina Tolerância Zero), a guarda municipal subiu para 750 Euros a multa para quem vandalizar uma bicicleta. Em dezembro, em uma grande ação da polícia, 600 pessoas foram presas por roubarem bicicletas.
Aos poucos a concessionária do serviço tem trocado o equipamento que prende as bicicletas para dificultar o roubo e câmeras próximas às estações têm sido usadas para monitorar os gatunos. Além disso, uma grande campanha de publicidade está em andamento para lembrar às pessoas que o Bicing é importante e roubar ou quebrar bicicletas é feio. A coisa parece ter funcionado.
E aqui? É possível?
Sim. Basicamente todas as grandes cidades do Brasil hoje têm problemas de trânsito e precisam de soluções. Construir metrô ou melhorar os ônibus e adotar bilhete único são iniciativas necessárias, mas não resolvem tudo. Um sistema de bicicletas como transporte público deve ajudar na solução, que é a troca gradual do transporte individual para o público nas partes mais congestionadas.
Como vimos, o aluguel de bicicletas é ridiculamente barato em relação às outras soluções. Mas ela precisa ser grande e abrangente. Não adianta fazer algo minúsculo, como em Blumenau ou no Rio: é preciso começar grande, mostrar às pessoas que é possível chegar mais rápido e mais confortavelmente pedalando. O sistema precisa ser totalmente automatizado também, para que a bicicleta seja uma opção de fato melhor. Eu gostei tanto do exemplo de Barcelona (poderia usar ene outros) porque a cidade não era um lugar de bicicletas e em pouco tempo se transformou em um. E outra: os catalães e espanhóis não são muito diferentes dos brasileiros – uma coisa é a educação e zelo pela coisa pública dos suecos, outra é dos moradores de Barcelona. Somos todos latinos.
E quanto aos roubos e vandalismo? É preciso mão forte da polícia, como aconteceu por lá, mas principalmente educação. E isso é menos impossível do que se pensa. Sou de Brasília, e lá os motoristas param na faixa de pedestres. Não porque os brasilienses são mais educados que o resto do Brasil, mas porque o Governo do DF entre 1995 e 98 achou que esse pequeno gesto de civilidade era importante, fez campanhas na TV, os veículos de comunicação encamparam a ideia, os guardas iam nas escolas explicar como funciona. Em resumo, a sociedade se mobilizou, e em um ano foi adquirido um comportamento que não se perdeu mais.
E quem aprende a andar de bicicleta não se esquece – e quer continuar andando.