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Nossos hackers precisam de uma dose de jornalismo

Há mais ou menos 8 anos, quando trabalhava em um jornal de Brasília, recebi a informação de que a Secretaria de Cultura do governo do DF estava dando dinheiro demais para apoiar eventos religiosos, e de menos para, por exemplo, festivais importantes de rock ou teatro. A fonte disse que a coisa poderia ser a […]

Há mais ou menos 8 anos, quando trabalhava em um jornal de Brasília, recebi a informação de que a Secretaria de Cultura do governo do DF estava dando dinheiro demais para apoiar eventos religiosos, e de menos para, por exemplo, festivais importantes de rock ou teatro. A fonte disse que a coisa poderia ser a ponta de um iceberg. Conversei por telefone com algumas pessoas e fui à Câmara Distrital encontrar com um deputado que frequentemente era fonte quando o assunto era bater no governo. Neste dia especificamente, ele abriu a tela do Sistema de Acompanhamento Orçamentário (o nome é muito maior, a sigla é a mesma em quase todos os lugares: SIAFI), digitou a senha que então pouca gente tinha e falou pra eu me divertir. O sistema era meio tosco e lento, mas com algumas buscas descobri quanto de dinheiro já havia sido pago a cada evento e, mais importante, quem recebia. Não tinha muito tempo e imprimi algumas páginas. Checando melhor, na redação, descobri que quem recebia o dinheiro era o assessor de um deputado, na agência da própria Câmara, tudo na cara dura. Mais alguns telefones e estava pronta a reportagem com chamada de capa no jornal de domingo. Bastou uma senha, menos de 10 minutos, e um pequeno escândalo (comparativamente) foi revelado. Ser jornalista, muitas vezes, é ser “hacker de resultado”.

Perdão pela auto-referência/elogio. Mas você consegue ver alguma semelhança dessa experiência com o que aconteceu nos últimos dias? Eu também não. Mas eu quero que isso mude.

Na teoria, jornalistas honestos e a chamada nova geração de hackers “idealistas” fazem basicamente a mesma coisa: lutam por uma maior transparência do governo e publicam informações à revelia de quem está fazendo coisa errada, para que a sociedade sempre deixe os donos do poder em xeque. Antigamente, para se conseguir acesso às informações era preciso um trabalho enorme de apuração, conhecer as pessoas certas e fontes confiáveis. Hoje, quando há cada vez mais informações guardadas em redes de computador – abertas ou não – as pessoas que têm habilidade de peneirar tantos bytes e conseguir acesso a áreas ocultas podem desempenhar a mesma função ideal dos jornalistas. E isso é ótimo para a democracia.

O problema é que, ao menos nos incidentes recentes, na prática tem havido uma grande diferença no modo de atuação dos dois grupos, que tem desmoralizado bastante este novo “movimento” hacker, ao menos no Brasil: há um bocado de baderna pela baderna, excesso de vaidade e pressa em divulgar os “feitos”. Não vou me alongar no demérito da tal “onda de ataque do LulzSec” no Brasil, mas entenda que ela mal apareceu no Giz porque, bem, não só não foi importante como trouxe alguns possíveis efeitos colaterais indesejados: há indícios de que uma certa lei abominada pelos tais ativistas hackers volte apressadamente à pauta e o governo deve gastar um bocado para proteger algumas coisas específicas que talvez nem devessem ser tão protegidas em primeiro lugar – a não ser que você ache ok gastar o nosso dinheiro colocando a polícia ao lado de orelhões, para que eles não sejam pichados. Mas bem, já me alongo. Há uma boa retrospectiva e análise dos ocorridos no G1, cortesia do ótimo Altieres Rohr.

Mas deixemos a bagunça do fim de semana para trás. Volte um pouco mais no tempo e pense no caso do Wikileaks. O propósito era o mesmo: escavar dados que os governos queriam esconder. Os dados foram conseguidos de diversas formas e depois de meses liberados para o mundo, para que todos pudessem consultar. A estratégia de revelar alguns dados sensíveis (talvez sensíveis demais) dos governos deu certo porque ela foi bem coordenada. Ninguém apareceu no Twitter para falar “TANGO DOWN” durante o processo ou divulgar senhas de um servidor que não tinha qualquer informação relevante, alertando ainda mais o “inimigo”. Os “vazadores” trabalharam em adquirir e organizar as informações em dossiês e entregaram para alguns dos maiores e mais respeitados jornais do mundo (como o New York Times, The Guardian e Der Spiegel). O trabalho de reorganização, escrita e rechecagem é quase tão  importante quanto a divulgação em si, e se não fosse a bomba jogada simultaneamente pela tal “velha mídia”, dificilmente o impacto seria tão grande. Depois da primeira investida, tudo estava aberto para quem quisesse consultar e descobrir mais coisas importantes.

Não quero dizer que os jornalistas devem ser os únicos responsáveis pelo processo, ou que o vazamento tenha de passar pelos jornais, longe disso (sou um apaizonado defensor da não-obrigatoriedade do diploma, por exemplo). Mas deve haver mais preocupação jornalística para que tudo dê certo – checar, entender o que é mais importante, ter responsabilidade na divulgação. Se feito direitinho, no fim das contas, com o mar de informações que temos, hackers, “number crunchers” ou pessoas viciadas em informação/transparência podem desempenhar um trabalho tão importante quanto os melhores jornalistas.

E, de verdade, não é tão difícil.

Compare o patrimônio declarado de políticos em diferentes estágios de sua carreira (exemplo), veja os financiadores de campanha e cruze com alguns de seus projetos ou emendas orçamentárias aprovadas na câmara, por exemplo. De novo, não é tão difícil. Antigamente (antigamente, há pouco mais de 5 anos) quase nenhuma dessas informações era aberta. Hoje, ao contrário, uma enorme parte do que o governo faz está aberto para consulta pública. Pode estar em PDFs assustadores como no Diário Oficial, no SIAFI, com dados acessíveis a qualquer cidadão pela web ou, de maneira um pouco melhor organizada, no Portal da Transparência. Mas há um monte de corrupção, contratos nebulosos e todo tipo de irregularidade abaixo dos nossos narizes, no meio de todas as páginas pouco úteis da rede.

A minha rápida ego-trip lá de cima não foi por pura vaidade de “bons tempos aqueles”. Foi pra mostrar que essas coisas que qualquer cidadão de bem deseja não são terrivelmente difíceis de se conseguir, e hoje estão, na verdade, muito mais fáceis. Honestamente, os jornalistas não são tão bons de Google e páginas governamentais cheias de pop-up, não tem tanto tempo e sempre podem cair nas armadilhas de fontes ou ideologias. Os movimentos hackers recentes mostraram que está mais do que na hora de dividir essa tarefa para mais gente, para o bem de todos. O governo está aí para ser hackeado – por janelas abertas ou portas destrancadas -, mas de maneira mais inteligente e voltada a resultados concretos. Há um bocado de trabalho a fazer. Você anima?

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