O cemitério a céu aberto da “Zona da Morte” no Monte Everest
Aviso: as imagens do vídeo acima podem ser consideradas fortes
Em 2006, um alpinista solitário tentando conquistar o Monte Everest pela terceira vez foi capturado, puramente por acaso, em uma foto amadora da bela paisagem à frente, batida por um outro alpinista. O alpinista que aparecia na foto passava pelo trecho conhecido como “Esforço Final” (“Final Push”) do lado Nordeste, entre o Acampamento VI, a 8230m, e o cume. Era fim de tarde, um horário tolo e irresponsável para enfrentar o longo e perigoso trajeto.
Ainda se passariam muitas horas até que o fotógrafo e a sua equipe de escalada vissem o homem fotografado de novo. Saindo do acampamento no horário recomendado – logo antes da meia-noite, para chegar ao cume ao nascer do sol – eles eram os primeiros da fila de cerca de 40 pessoas que tentariam o Esforço Final naquele dia. Um longo trem de homens, todos ligados às cordas permanentemente afixadas durante toda a extensão do trajeto para manter os alpinistas na direção certa.
Por décadas, esta corda levou alpinistas até alguns metros do que ficou conhecido como Caverna das Botas Verdes. Uma pequena beirada de pedra calcária a 8500m, que já era famosa entre os alpinistas pela mesma razão de ter ganhado este nome. Pelos últimos dez anos, o corpo de um alpinista que morreu em 1996 tem sido um macabro ponto de referência para todo alpinista da rota Nordeste, caído e encolhido em posição fetal, calçando suas botas de montanhismo de cor verde fluorescente.
Esta manhã, porém, o Botas Verdes estava acompanhado. Sentado a não mais do que meio metro à esquerda do cadáver estava um homem que à primeira vista parecia morto. Suas mãos, protegidas por luvas, estavam aos seus joelhos. Seu capuz e chapéu projetavam seu rosto nas sombras. A única parte do corpo visível era o seu nariz, já severamente ulcerado pelo frio – uma condição conhecida como “frostbite” –, em um tom de verde bem escuro. Olhando mais de perto, dava para ver um pouco de vapor subindo da boca do homem, um sinal de respiração.
O que aconteceu a seguir entrou para o folclore da montanha mais alta da Terra. Cada homem entrevistado conta uma versão diferente da história. A única certeza é que cada um dos cerca de 40 alpinistas que passaram por ali naquele dia deixou o homem, cujo nome era David Sharp, ali na caverna, seja por opção, por ignorância ou por confundi-lo com um cadáver já sem vida, algo esperado naquela infame caverna.
Apesar de arrepiante por si só, o incidente nem chama atenção em meio ao grande contexto mortífero do Monte Everest. Para cada dez montanhistas que chegaram ao cume, a montanha resolveu tomar um deles para si. Nos 56 anos desde a histórica chegada do primeiro homem ao topo, 216 pessoas morreram, e a triste realidade das horríveis condições do Esforço Final fez com que 150 corpos jamais tenham sido recuperados – e provavelmente jamais serão. Eles ainda estão lá, quase todos na Zona da Morte.
Ambiente assustador
Acima de uma certa altitude, não é humanamente possível adaptar-se. Conhecida como Zona da Morte, ela só existe em 14 montanhas no mundo, as que passam da marca de 8000 metros. Nem todo o treinamento e condicionamento físico do mundo faz com que uma pessoa resista mais do que 48 horas lá. O nível de oxigênio na Zona da Morte é apenas um terço do encontrado ao nível do mar, o que em termos simples significa que o corpo usa as suas reservas de oxigênio mais rápido do que a respiração consegue recarregá-las.
Em tais condições, coisas estranhas acontecem com os estados físico e mental de um ser humano. Um alpinista da National Geographic, originalmente no Everest para documentar a tentativa (mal-sucedida) de Brian Blessed de chegar ao topo, descreveu os perturbadores efeitos alucinógenos da falta de oxigênio na Zona da Morte. O interior da sua barraca parecia subir acima dele, adquirindo a altura de uma catedral, roubando-o de todas as suas forças e prejudicando seu julgamento. Qualquer tempo de permanência na Zona da Morte sem uma reserva suplementar de oxigênio é comparável a ser lentamente sufocado. Enquanto tenta realizar um dos mais difíceis feitos de força física imagináveis.
Mas a falta de oxigênio e o terreno traiçoeiro não são os únicos desafios do Everest. As subidas raramente são sequer cogitadas fora de um período curto entre Maio e Junho, quando as condições estão no seu absoluto melhor ponto, com temperatura média de ?27 graus Celsius e ventos de 80km por hora. Mas o Monte Everest é tão alto que o topo chega a penetrar na estratosfera, onde os ventos podem soprar a até 320km por hora, derrubando a temperatura a 73 graus negativos.
Qualquer pedaço de pele exposta em grandes altitudes, mesmo na melhor das condições, está sujeita ao frostbite. Uma reação ao frio extremo, o frostbite começa quando os vasos sanguíneos na pele se contraem para preservar a temperatura do corpo, em condições em que um fluxo sanguíneo normal levaria a um resfriamento corpóreo perigosamente rápido.
Com o tempo, se as áreas expostas da pele não forem reaquecidas, a falta de fluxo sanguíneo causa morte dos tecidos e, mesmo se reaquecido neste ponto, gangrena. Neste estágio, amputações são comuns.
Os alpinistas conhecem muito bem estes fatos. Eles são reiterados em cada fonte de informações e em cada artigo publicado, mas de alguma forma contribuem para a perigosa atração que a montanha exerce.
Mas nas palavras de David Brashears, que já chegou ao topo do Everest cinco vezes, “não houve nada no meu treinamento que pudesse me preparar para passar pelo cemitério aberto que me esperava acima”.
O caso de Hannelore Schmatz
O caso de Hannelore Schmatz é infame. Em 2 de outubro de 1979, depois de uma chegada bem sucedida ao topo, e por razões desconhecidas, ela morreu de exaustão a 100 metros de distância do Acampamento IV. Por anos, todo alpinista que passasse pela rota Sul podia ver o corpo dela, sentado, recostado na mochila, com os olhos abertos e o cabelo castanho ao vento. Apesar de estar tão exposto e visível em uma rota de alpinismo tão percorrida, operações de resgate são virtualmente suicidas na Zona da Morte. Em 1984, um inspetor de polícia e um Xerpa tentaram recuperar o corpo de Hannelore, mas não voltaram vivos. Por fim, foram os fortes ventos que jogaram o cadáver encosta abaixo.
Uma área ao longo da rota nordeste recebeu o inocente apelido de “Vale do Arco-Íris”, simplesmente em alusão às diversas jaquetas multicoloridas usadas pelos corpos que se amontoam na encosta. Mesmo em condições e altitudes letais, os corpos podem permanecer por décadas, alguns aparentemente congelados no tempo, com seus equipamentos de alpinismo intactos.
Brashears explica: “Apesar da neve e do gelo, o Everest é tão seco quanto um deserto. O sol e o vento rapidamente mumificam corpos humanos.
Jamais foi feito nenhum estudo sobre as causas de morte no Everest, sobre o que faz com que pessoas sentem-se e desistam, algumas vezes à distância de um grito de um local seguro. Mas os alpinistas falam sobre um tipo de confronto com o medo que experimentam em um certo ponto na subida. A compreensão do fato de que você não apenas não será capaz de parar para ajudar ninguém em perigo, como também não poderá esperar que ninguém possa te ajudar no caso de você errar qualquer coisa, a qualquer momento.
A mídia chama isso de “febre do cume” (“summit fever”). A aparentemente insensibilidade que faz com que os montanhistas abandonem a ética e a humanidade durante a subida do Everest, às vezes literalmente escalando por cima de cadáveres para chegarem aos seus objetivos. Qualquer que seja a quantidade de preparação e o preço estranho a se pagar, talvez não seja simplesmente uma determinação de ferro o que faz com que alguém abandone seus colegas de escalada, mesmo ainda tendo energias para chegar ao topo. Em condições tão alienígenas, absolutamente hostis à vida humana, os alpinistas devem ser confrontados com a sua própria mortalidade. Sob a sombra do medo puro e primordial, eles devem perceber que estão além de qualquer possibilidade de auxílio, assim como além de qualquer possibilidade de auxiliar qualquer outro.
Se não, eles caem entre aqueles que nunca se vão, abandonados no Everest.
Publicado originalmente no blog A Sea of Lead, A Sky of Slate. Reproduzido com autorização.