O destino dos painéis solares ao fim da vida útil
Texto: Frances Jones/Revista Pesquisa Fapesp
Um galpão de 2 mil metros quadrados em Valinhos, no interior paulista, vem armazenando centenas de painéis solares todos os meses. Apenas em maio, o material recebido, basicamente módulos inutilizados para a produção de energia fotovoltaica, chegou a 80 toneladas (t). Não se trata de uma nova usina de fonte renovável, mas de uma empresa aberta há pouco mais de três anos que decidiu apostar em um mercado ainda incipiente, porém em expansão, que deve explodir nos próximos anos: o da reciclagem de painéis solares descartados.
“No ano passado, crescemos mais de 700% em volume de material recebido e estamos projetando bem mais para este ano”, afirma o empresário Leonardo Duarte, de 27 anos, fundador da SunR, uma das poucas empresas no país a se dedicar integralmente à reciclagem dos módulos fotovoltaicos que perderam sua eficiência. “Desde que abrimos, recebemos mais de 25 mil painéis, o equivalente a 730 toneladas de material”, conta.
A questão sobre o que fazer com as placas solares inutilizadas vem se impondo ao redor do mundo, principalmente em países da Europa, como a Alemanha, que começou a adotar a energia solar ainda nos anos 1990. A estimativa de vida útil dos painéis é de 25 a 30 anos, e uma grande quantidade de módulos em solo europeu e em outros lugares já virou sucata.
Um relatório feito pela Agência Internacional de Energia Renovável (Irena) em 2016 sobre o gerenciamento dos painéis solares fotovoltaicos ao fim de sua vida útil alerta que a quantidade de lixo anual no começo dos anos 2030 atingirá algo entre 1,7 milhão e 8 milhões de t. Em 2050, esse tipo de resíduo poderá chegar a 78 milhões de t no planeta.
Por outro lado, a agência estimava em 2016 que o valor dos materiais capazes de ser recuperados nesses equipamentos poderia chegar a US$ 450 milhões em 2030, quantia suficiente para a produção de 60 milhões de painéis solares. Vinte anos depois, o valor da reciclagem superaria US$ 15 bilhões, o bastante para produzir 2 bilhões de placas, segundo projeções da Irena.
Vidro e alumínio compõem quase 90% dos módulos, mas eles contêm também uma pequena parcela de metais valiosos, como prata e cobre, além de substâncias mais poluentes, como chumbo e polímeros (ver infográfico na página XX). No Brasil, onde a tecnologia fotovoltaica foi mais amplamente adotada a partir dos anos 2010, a questão deverá ganhar volume em alguns anos, mas também já começa a causar preocupações.
“O maior equívoco é achar que os resíduos só vão surgir a partir de 30 anos. Muito pelo contrário”, diz Duarte, que trabalha diretamente com usinas, montadoras e importadoras de módulos solares no Brasil inteiro. “Estimamos que mais de 7% dos painéis são descartados antes de 15 anos de vida útil.”
Perda precoce
Acidentes no transporte, no carregamento e descarregamento, erros na instalação e manutenção, eventos externos como vendavais e incêndios, além de refugo na produção das montadoras de painéis, são alguns dos motivos apontados pelo empresário para a aposentadoria ou perda precoce dos módulos de silício cristalino. Esse material é o elemento semicondutor empregado na maioria dos painéis solares comercializados no mundo e no Brasil.
As camadas de polímero adesivo que protegem o produto da exposição às intempéries dificultam a desmontagem e a reciclagem. A parte mais simples de recuperar no processo é a estrutura de alumínio e os fios de cobre externos. Em seguida, vem o vidro, que compõe grande parte do painel (70% a 95%) e já tem uma indústria de reciclagem bem estabelecida. Outros materiais encontrados nas células solares apresentam um desafio maior. Prata, estanho, cobre e o próprio silício são elementos valiosos, embora haja uma quantidade ínfima nos módulos em comparação com o vidro. Especialistas calculam, no entanto, que eles respondem por mais de 40% do valor do painel.
“Fazer a separação dos materiais nobres não é simples. É preciso ainda muita pesquisa e desenvolvimento para avançar nesse sentido”, diz o físico Carlos Frederico de Oliveira Graeff, da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Bauru, que trabalha no desenvolvimento de células solares. Um de seus projetos mais recentes, apoiado pela FAPESP, tem como foco investigar a estabilidade das células solares de perovskita, um elemento semicondutor com eficiência superior ao silício, mas ainda pouco durável (ver Pesquisa FAPESP no 260).
Além de reduzir o resíduo e as emissões de carbono relacionadas ao lixo, a reciclagem dos módulos fotovoltaicos também tem o potencial de diminuir o uso de energia necessária à exploração e à produção do material original, como prata e silício, bem como poder diminuir os impactos ambientais associados à mineração desses metais. “Há potencial para se aproveitar mais de 95% do material dos painéis”, diz. “Esse é um mercado que está se abrindo agora.”
O físico Francisco das Chagas Marques, do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador de área da energia fotovoltaica, afirma que o principal desafio é obter uma tecnologia de reciclagem rentável, uma vez que os atuais processos são dispendiosos e, por enquanto, não repõem os custos de operação. “Tem sido mais comum a recuperação apenas do cobre dos fios, do alumínio da moldura e do vidro”, diz.
Segundo o pesquisador, a área está em desenvolvimento especialmente nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, não há fabricantes de células solares. Os módulos são importados ou apenas montados no país, com a utilização de células de silício que também vêm de fora, assim como o vidro, a pasta de prata, encapsulantes e outros itens, ressalta Marques. A China é o maior produtor mundial de painéis solares.
O processo de reciclagem
Na SunR, de Valinhos, após a retirada da estrutura de alumínio, dos eletrônicos e dos conectores, os painéis são submetidos a um processo mecânico de trituração. O material passa por separações densimétricas e glanulométricas, nas quais vidro e metais são apartados. “Na nossa saída de material da empresa tem alumínio, cabeamentos, caixa de junção, plástico, vidro e uma mistura metálica – composta por silício, prata, cobre, estanho e outros”, conta Duarte.
A mistura metálica, afirma, é vendida para indústrias interessadas em fazer a extração química. “Como o volume de metal é muito baixo dentro do painel, não justifica virarmos uma indústria química para isso; nosso processo é 100% mecânico”, diz. “Possuímos soluções viáveis, mas que não garantem o aproveitamento de todo o material. Estamos desenvolvendo novas parcerias e estudos para aproveitar ao máximo cada um deles.” Segundo Duarte, a porcentagem da reciclagem da mistura metálica depende do comprador, se vai querer explorar todos os materiais ou apenas a prata ou o silício.
Fora do país, algumas empresas prometem reciclar mais de 90% do material dos painéis solares, incluindo a prata e o cobre. A francesa Rosi, com sede em Grenoble, inaugurou em junho a sua primeira planta industrial, dizendo usar mecanismos físicos, térmicos e químicos no processo de separar adequadamente os materiais. Nos Estados Unidos, a SolarCycle foi fundada em 2022 como uma startup na Califórnia e construiu um centro de reciclagem no Texas, onde informa extrair 95% do valor do material dos painéis solares e reintroduzi-los na cadeia de suprimentos.
A empresa norte-americana desenvolveu máquinas especiais que removem o vidro inteiro do painel ‒ isso é feito depois da retirada da moldura, dos cabos e da caixa da passagem. A mistura que sobra é separada: de um lado plástico, de outro metais (silício, cobre, prata, chumbo e estanho, principalmente). Por enquanto, os metais são vendidos para terceiros, mas a empresa está prestes a inaugurar uma nova planta que fará o processo químico de recuperação dos metais, principalmente da prata e do silício.
Na Alemanha, pesquisadores do Instituto Fraunhofer para Sistemas de Energia Solar e do Centro Fraunhofer para Silício Fotovoltaico anunciaram em 2022 o desenvolvimento de uma solução em parceria com a maior empresa de reciclagem local, a Reiling GmBH & Co. KG ‒ o Instituto Fraunhofer é uma associação de pesquisa alemã com 76 unidades espalhadas pelo país com diferentes focos em ciência aplicada. O processo prevê a recuperação do silício dos módulos descartados e sua reutilização na produção de novas células solares com a tecnologia Perc (Passivated Emitter Rear Cell), empregada nas novas gerações de painéis, com células fotovoltaicas mais finas.
Após passar pelo processo mecânico de reciclagem e da separação de outros materiais, os fragmentos de célula solar com tamanhos entre 0,1 e 1 milímetro são submetidos a um ataque químico. A seguir, são processados em lingotes de silício monocristalino e darão origem aos wafers (bolachas ou lâminas que compõem os painéis).
Entre os cofundadores da norte-americana SolarCycle está o engenheiro brasileiro Pablo Ribeiro Dias, hoje diretor de Tecnologia da empresa. Ele cursou graduação, fez mestrado e doutorado em engenharia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Junto com Hugo Marcelo Veit, que o orientou na dissertação de mestrado na UFRGS, Dias inventou um método específico para a remoção e a recuperação da prata nos módulos fotovoltaicos, com uma eficiência entre 92% e 94%, utilizando operações mecânicas com moinhos e hidrometalúrgicas, com soluções ácidas e sais, para promover a lixiviação e a decantação do metal.
A patente da tecnologia foi concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) no ano passado. “O processo em escala industrial ainda não foi adotado por nenhuma empresa”, conta Veit, que não integra a equipe da SolarCycle e tem dedicação exclusiva à UFRGS. “Se alguma companhia quiser fazer o processo em escala industrial no Brasil, tem de obter o licenciamento.” Essa patente é protegida apenas no país.
Os dois pesquisadores ainda têm depositados mais dois pedidos de patente, um deles referente a um método desenvolvido na Austrália ‒ Dias fez doutorado na Universidade Macquarie e Veit cursou pós-doutorado na Universidade de Nova Gales do Sul, ambas em Sydney. “O segundo método é um processo mais químico do que mecânico, mas usa um solvente orgânico, enquanto o primeiro utiliza ácidos, para recuperar não somente a prata como outros componentes. É um método um pouco mais amplo”, diz o professor da UFRGS.
O terceiro depósito foi feito na Austrália em 2021 e abrange outra tecnologia com um processo mecânico e químico para reciclar todos os componentes dos painéis solares. Nenhum dos três métodos patenteados pelos pesquisadores brasileiros é usado na SolarCycle, que emprega outra rota de reciclagem.
De acordo com Veit, vários grupos de pesquisa no mundo buscam desenvolver métodos mais eficientes de reciclagem dos módulos fotovoltaicos. “Não dá para desconsiderar que tem um custo para fazer o painel, pois ele consome muita matéria-prima. O interesse nessa área está aumentando porque o volume e a quantidade de painéis que estão sendo descartados começam a chamar a atenção”, comenta Veit.
Os estudos sobre reciclagem de painéis solares da equipe gaúcha tiveram seus resultados publicados nas revistas Resources, Conservation and Recycling, em 2021, e Renewable and Sustainable Energy Reviews, em 2022. O processo descrito em um desses artigos deu as diretrizes para a SolarCycle, mas foi modificado, conta Dias. Hoje, a empresa não adota as tecnologias previstas nas solicitações de patente brasileira ou australiana.
“Tivemos que evoluir aquele processo em algumas camadas. Hoje o que fazemos está mais avançado. Usando nossa tecnologia, podemos remover todo o vidro do painel antes de separar os metais e os plásticos. Essa é uma forma diferente e muito mais eficaz e eficiente de reciclar painéis”, conta Dias.
Arcabouço regulatório
Especialistas defendem que, além de tecnologia, são necessários mecanismos políticos e estruturas regulatórias para desenvolver e estimular um tratamento adequado ao resíduo industrial dos painéis. A atual Lei nº 12.305/2010, da Política Nacional de Resíduos Sólidos, não trata explícita e especificamente dos módulos solares.
“De quem é e de que maneira se dará a responsabilidade sobre os resíduos provenientes dos sistemas fotovoltaicos?”, questiona o engenheiro eletricista Clóvis Bôsco Mendonça Oliveira, professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), que publicou este ano um artigo de revisão sobre o tema na revista Social Sciences & Humanities Open, com o seu orientando de mestrado Nelson Monteiro de Sousa e com Darliane Cunha, professora do mestrado profissional em Energia e Ambiente na UFMA.
“Soluções tecnológicas mais eficientes e desenvolvimento de processos serão necessários para tratar adequadamente os problemas que surgem no final do ciclo de vida útil dos sistemas fotovoltaicos”, destacam os autores no artigo. “No entanto, é necessário mais. Mecanismos políticos e estruturas reguladoras também precisarão ser desenvolvidos e implementados no final do estágio do ciclo de vida para preparar, encorajar e desenvolver aplicações apropriadas de tratamento de resíduos industriais.”
Para Oliveira, discutir os aspectos regulatórios é algo premente. “Se apenas daqui a 20 anos tivermos uma lei específica para esse assunto, só teremos retorno efetivo em 40 anos, já que não se pode retroagir numa norma dessa, que envolve custo financeiro. Temos que agir já.” Países da União Europeia, Japão e Canadá, que estão mais avançados nessa área, já atualizaram suas legislações.
Sistema em expansão
Energia solar fotovoltaica responde por 14,3% da matriz elétrica brasileira
Dentro do cenário de transição energética global, na qual se busca reduzir cada vez mais o uso de fontes fósseis e aumentar o espaço das fontes limpas na geração de eletricidade, a energia solar fotovoltaica tem despontado. Em 2022, dos quase US$ 600 bilhões investidos no mundo nas energias renováveis, mais da metade foi para projetos de energia solar fotovoltaica, de acordo com um relatório publicado pela Agência Internacional de Energia (AIE) em maio deste ano.
À medida que a tecnologia avança e os preços dos painéis solares caem, os países ampliam a sua capacidade de geração de energia por essa fonte e a previsão é de que ela seja ampliada cada vez mais. No Brasil, a fonte solar voltaica tem batido recordes de geração de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional (SIN), segundo dados divulgados pela Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar). Essa fonte energética já responde por 14,3% da matriz elétrica nacional, segundo a Absolar, e às 11 horas no dia 16 de maio chegou a responder por 22,8% da demanda naquele instante.
Projeto
Otimização da estabilidade das células solares de perovskita (no 20/12356-8); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Carlos Frederico de Oliveira Graeff (Unesp); Investimento R$ 1.914.365,90.
Artigos científicos
DIAS, P. et al. Comprehensive recycling of silicon photovoltaic modules incorporating organic solvent delamination – technical, environmental and economic analyses. Resourcer, Conservation and Recycling. v. 165. fev. 2021.
DIAS, P.R. et al. High yield, low cost, environmentally friendly process to recycle silicon solar panels: Technical, economic and environmental feasibility assessment. Renewable and Sustainable Energy Reviews. v. 169. nov. 2022.
SOUSA, N. M. et al. Photovoltaic electronic waste in Brazil: Circular economy challenges, potential and obstacles. Social Sciences & Humanities Open. v. 7. 2023.