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O que faz a análise tática ser realmente relevante?

No Brasil, cultura tática não existe. Nenhum clube tem um estilo consistente de jogo ao longo da história. Leia na coluna de Cassiano Gobbet
Imagem: Efraimstochter/Pixabay

Com a largada da única pré-temporada que pode derrubar técnicos no mundo – os estaduais – um elemento parece meio fora de lugar, com menção extra para os especialistas em tática que hoje estão em qualquer lugar. Não me leve a mal: a tática é um assunto fundamental e muito rico e precisa ter seu espaço. Mas quando você vê alguém tentando explicar a tática no primeiro jogo da temporada, de um treinador novo contra um time que é montado e desmontado todo ano, não vale a reflexão sobre se aquilo é tática mesmo ou o quê.

No Brasil, cultura tática não existe. Nenhum clube tem um estilo consistente de jogo ao longo da história. Em média, um treinador não passa seis meses num clube antes de ser demitido (às vezes menos que isso). Para os jogadores, a tática é uma sequência de instruções, não uma partida de xadrez. Apesar dessa simplicidade, o assunto frequentemente ganha uma solenidade de posse presidencial.

Numa entrevista quando ainda era o técnico tricampeão brasileiro pelo São Paulo, ao perceber que o assunto ia virar “tatiquês”, Muricy Ramalho interrompeu e disse: “Eu fico em casa ouvindo esse monte de análise, mas não tem nada disso. É muito mais simples do que vocês pensam”. Muricy não estava menosprezando ninguém. Ele estava só indo direto ao ponto. Num país que tem técnicos “semestrais”, clubes que trocam 20 jogadores por ano e zero educação formal no assunto, as discussões sem fim sobre a matéria são quixotescas – na melhor das hipóteses.

O assunto “tática” se divide em dois planos: estratégia e tática. O primeiro é a filosofia na qual o técnico ou clube se baseiam para os objetivos de longo prazo. Essa é imutável e somente uns poucos “ideólogos” têm posições bem claras. Por exemplo: o Barcelona tem no seu DNA, graças a Rinus Michels e Cruyff, a compreensão do jogo como o controle do espaço e em função do ataque. O princípio holandês da ocupação de espaço é o ponto de partida do raciocínio e isso se explica. Um quarto do país é de espaço “conquistado” onde antes era mar ou água, usando diques e canais. Na Holanda, a ocupação do espaço é uma questão de vida ou morte. No Brasil, não existe nada parecido. A estratégia acaba na vitória (ou derrota) do próximo jogo.

A tática em si, ou “o que você vai fazer nesse jogo”, é o que está na pauta no Brasil, mas mesmo os melhores comentaristas do assunto cometem dois erros quase sempre: o primeiro é achar que todo jogo é um duelo tático (e jogos dos estaduais nunca chegam nesse requinte), e o segundo é ignorar que o individualismo do jogador brasileiro é o que realmente define o que rola “entre as quatro linhas” (para usar um clichê tosco). Não por acaso, ninguém dá a menor bola para a contratação do melhor recuperador de bolas do país e um clube como o Flamengo possa ficar refém de um jogador que acha que é Zico (que, qualquer que seja ele, não é…). No imaginário brasileiro, é o jogador que decide o jogo, não o time.

Achar que leitura tática é dizer que o lateral-direito está na posição “x” e por isso, vai acontecer “y” é como só ver as figuras em um livro. Você até não erra, mas ignora o que importa. Há vários jornalistas brasileiros que têm o talento para fazer uma análise mais profunda, mas param no básico. Como o Oráculo diz a Neo em “The Matrix”: “você tem o talento, mas parece estar esperando alguma coisa”. Que coisa é essa, eu não sei. Até lá, aguardemos com os chavões habituais…

Point Blank

Estratégia Ainda falando de planejamento e conceitos: nos últimos cinco anos, a média de contratações e cessões dos quatro maiores clubes de São Paulo é de 16 contratações e 18 cessões. Não estão inclusos os empréstimos ou promoções das divisões inferiores.

Mais estratégia Vendendo e comprando 70% do elenco todos os anos impede, quem quer que seja o técnico, de ter um time minimamente montado, faz a alegria dos agentes pq seus clientes raramente passam duas temporadas no mesmo clube (e lhes rende uma comissão a cada transferência) e questiona o trabalho das diretorias de futebol.

Rebeldia O futebol holandês teve mais um elemento muito vivo no tempo de Cruyff, igualmente cultural. Cruyff e sua postura desafiadora contra o establishment têm muito a ver com o Provo, um movimento rebelde e experimental contra a rigidez da sociedade conservadora holandesa da época.

Mais rebeldia Cruyff brigava com árbitros, dirigentes, jornalistas e até patrocinadores (ele se recusou a usar o material esportivo da Adidas, patrocinadora da Holanda de 1974, e fez com que sua camisa fosse a única com duas listras nos braços, ao invés das icônicas três listras da marca.

…e mais rebeldia Os outros jogadores da selecão também não eram soldadinhos. Procure as fotos do time de 74 e você vai ver o impensável para a época: jogadores cabeludos, com barba por fazer, meias abaixadas e uma preocupação inexistente com o que os outros poderiam achar.

Sacchi O italiano tinha uma obsessão tal com o coletivo que era capaz de preferir um jogador mais fraco a um craque se este fosse folgado. Sua frase básica: “se você não é o Maradona, vai me obedecer” (”Si non sei Maradona, allora dammi retta”).

Mais que um estilo, um jeito de pensar Michels, Cruyff e seu herdeiro Guardiola “enxergavam” o espaço; para Helenio Herrera e sua Inter campeã europeia, o jogo era limitar possibilidades e nunca correr riscos; Arrigo Sacchi não admitia individualismos (a ponto de pedir a venda de van Basten depois de vencer um título). Mourinho, a nêmese de Guardiola, acha que a posse de bola é um problema que deve estar sempre com o adversário. Para Klopp, a bola deve ser o ponto de pressão máxima o tempo todo, e uma vez recuperada, o contra-ataque tem de contar com a maior vantagem numérica possível.

Cassiano Gobbet

Cassiano Gobbet

Jornalista, vive na trilogia futebol, tecnologia e (anti) desinformação. Criador da Trivela, ex-BBC, Yahoo e freelancer em três continentes. Você o encontra no Twitter, Bluesky ou por aí.

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