OMS é acusada de conduzir testes de vacina sem o consentimento dos participantes em três países africanos
Um artigo de opinião mordaz no BMJ, uma das mais conceituadas publicações sobre medicina do mundo, está acusando a OMS (Organização Mundial de Saúde) de conduzir um programa piloto na África para uma vacina experimental contra a malária sem o consentimento informado dos participantes. Os especialistas dizem que essa é uma “grave violação” dos padrões bioéticos internacionais e potencialmente “um desastre para a confiança pública nas vacinas”.
O teste em questão está em curso no Malawi, Gana e Quênia e deverá envolver mais de 720.000 crianças, às quais será administrada a vacina experimental contra a malária, chamada Mosquirix, nos próximos dois anos, de acordo com o artigo de opinião do BMJ, de autoria de Peter Doshi, editor associado da revista. Doshi afirma que a Organização Mundial da Saúde, que lidera o teste, não possui o consentimento informado dos participantes.
“Os receptores da vacina contra a malária não estão sendo informados de que estão em um estudo”, declarou Doshi no artigo do BMJ. “E não está clara a quantidade de informações que os pais recebem sobre as preocupações de segurança conhecidas antes da vacinação.”
O bioeticista Charles Weijer da Western University em Londres, Ontário, no Canadá, foi citado no artigo de opinião dizendo que o não recebimento do consentimento informado é uma “séria violação dos padrões éticos internacionais”.
A Mosquirix, também conhecida como a vacina RTS,S, é a primeira vacina licenciada contra a malária no mundo. O medicamento já passou por ensaios clínicos iniciais, e os resultados preliminares têm sido na sua maioria positivos – porém, surgiram algumas preocupações sérias de segurança.
As taxas de meningite parecem ser 10 vezes mais elevadas nos participantes que receberam a Mosquirix em comparação com os indivíduos que não a receberam. Além disso, a Mosquirix tem sido ligada a taxas mais elevadas de malária cerebral (quando as células sanguíneas infectadas por parasitas bloqueiam pequenos vasos sanguíneos no cérebro) e, muito preocupantemente, a um risco duplo de mortalidade por todas as causas em meninas.
Para o teste, a OMS está atribuindo aleatoriamente áreas, ou clusters, nas quais a vacina será implementada. Após dois anos, a agência de saúde avaliará os dados e tomará uma decisão sobre a implantação ou não da Mosquirix em uma escala muito maior.
Mosquirix “foi analisada positivamente pela Agência Europeia de Medicamentos, mas seu uso está sendo limitado à implementação piloto, em parte para avaliar as preocupações de segurança pendentes que surgiram de estudos clínicos anteriores”, escreveu Doshi.
Dito isso, a OMS descreve o estudo como uma “introdução piloto” e não como uma “atividade de pesquisa”, de acordo com o artigo do BMJ, e diz que os participantes que recebem esta vacina experimental estão fazendo isso de acordo com o cronograma de vacinação de rotina de seu país. Por causa disso, o consentimento está implícito, de acordo com a OMS.
Weijer, um dos vários bioeticista citados no artigo da BMJ, disse que o teste piloto da OMS viola a Declaração de Ottawa sobre o Desenvolvimento Ético e a Conduta dos Testes Aleatórios de Cluster. Criada em 2012, a Declaração de Ottawa fornece as diretrizes éticas internacionais mais abrangentes para esses tipos de ensaios clínicos.
“Como com todas as outras diretrizes éticas internacionais de pesquisa, a Declaração de Ottawa articula uma forte presunção de consentimento informado dos participantes da pesquisa”, disse Weijer, que ajudou a desenvolver as diretrizes, ao Gizmodo. “Os participantes da pesquisa têm o direito de serem informados sobre o propósito da pesquisa, os benefícios e riscos das intervenções do estudo, alternativas à participação e seus direitos como participantes. Em circunstâncias especiais, a exigência de consentimento livre e esclarecido pode ser posta de lado com uma renúncia ao consentimento. Mas o uso de uma renúncia de consentimento nunca é apropriado para um ensaio em grupo envolvendo uma intervenção medicamentosa ou vacinal.”
Em seu artigo no BMJ, Doshi disse que não está claro se um conselho de revisão ética assinou o processo de “consentimento implícito”. Quando perguntado por Doshi sobre isso, a OMS disse que “a implantação da vacina é liderada pelos países e é feita no contexto de vacinações de rotina, onde não há exigência de consentimento individual escrito.”
Como foi dito anteriormente, a OMS afirma que o estudo é uma “introdução piloto”, e não uma “atividade de pesquisa”, e é por isso que a organização está usando a lógica do consentimento implícito. Eis como um porta-voz da OMS o explicou ao Doshi, conforme citado no artigo do BMJ:
Um processo de consentimento implícito é aquele em que os pais são informados da vacinação iminente por meio da mobilização e comunicação social, por vezes incluindo cartas dirigidas diretamente aos pais. Posteriormente, considera-se que a presença física da criança ou adolescente, com ou sem um dos pais acompanhantes na sessão de vacinação, implica o consentimento.
Weijer não compra essa ideia.
“Um processo de consentimento implícito não substitui o consentimento informado. Na verdade, o consentimento implícito não é nenhum consentimento”, disse ele ao Gizmodo. “Nós não temos nenhuma garantia de que os pais de fato receberam informações sobre o estudo, muito menos de que eles o entenderam. Os pais que frequentam uma clínica para vacinação de rotina de seus filhos podem, portanto, não ter conhecimento do estudo e do fato de que eles podem recusar.”
A afirmação da OMS de que essa não é uma “atividade de pesquisa” certamente parece estranha, até mesmo desonesto. O seu próprio documento de perguntas e respostas sobre o ensaio afirma que o objetivo é fornecer “uma avaliação mais aprofundada [da nova vacina contra a malária] antes de considerar a implantação em larga escala”. A pesquisa, segundo Weijer, é uma “pesquisa sistemática concebida para produzir conhecimentos generalizáveis”. O piloto da vacina contra a malária da OMS “corresponde claramente a essa definição e é obviamente uma pesquisa”, disse ele ao Gizmodo.
Além disso, o piloto foi registrado no clinicaltrials.gov, o que “equivale a uma declaração aberta de que isso é pesquisa”, segundo o bioeticista Jonathan Kimmelman, da McGill, que foi citado no artigo do BMJ. Ao descrever o projeto como uma implementação piloto, a OMS foi capaz de evitar uma série de burocracias éticas.
Que a OMS optou por ignorar ou desconsiderar potenciais riscos à saúde é mais um aspecto alarmante dessa história. Estudos clínicos anteriores da Mosquirix mostraram que 2,3% (67 de 2.967) das meninas morreram no grupo da vacina, em comparação com 1,1% (17 de 1.503 meninas) do grupo de controle, que não tomaram a vacina.
Quando a BMJ perguntou porque este “sinal de mortalidade feminina” não foi considerado, a OMS disse que havia “provas insuficientes para classificar a mortalidade específica de gênero como um risco conhecido ou potencial.”
No artigo do BMJ, Christine Stabell Benn, da Universidade do Sul da Dinamarca, disse que os pais devem ser alertados para o duplo risco de mortalidade das meninas. Se isso se revelar um risco real para a saúde, “como será percebido pelos participantes – que os seus filhos estavam inconscientemente envolvidos numa enorme experiência das autoridades?”, questiona Benn, acrescentando que “pode ser um desastre para a confiança pública nas vacinas e nas autoridades de saúde”.
Sem dúvida, essa controvérsia chega num momento terrível, já que provavelmente vai fornecer combustível para o movimento anti-vacina. Além disso, a natureza aparentemente irresponsável desse experimento de campo dá uma imagem do colonialismo, do racismo e até da misoginia. Infelizmente, é mais um exemplo de experimentos médicos feita às custas de pessoas africanas.
O fato de a OMS querer lançar uma vacina o mais rapidamente possível é compreensível, já que a malária mata aproximadamente 435.000 pessoas em todo o mundo a cada ano. Mas isso não é desculpa para violar as diretrizes éticas estabelecidas e colocar vidas humanas em potencial perigo no processo.
O Gizmodo procurou a OMS para comentar, mas não recebeu resposta até o momento da publicação.