Texto: Carlos Fioravanti / Revista Pesquisa Fapesp
Em novembro de 2017, o geólogo Bernardo Freitas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e a bióloga Luana Morais, então em um estágio de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), voltaram de uma expedição a Bonito, em Mato Grosso do Sul, com as mochilas cheias de rochas coletadas em uma área de mineração. Meses depois, examinando ao microscópio lâminas cortadas a partir dessas rochas, formadas há 571 milhões de anos, esperavam encontrar sinais de organismos unicelulares, como as bactérias. O que viram – e confirmaram em amostras colhidas em outras sete viagens à serra da Bodoquena – foi algo melhor: fósseis milimétricos de organismos com carapaça semelhante à concha de organismos marinhos modernos. Detalhados em artigo publicado em junho na revista Scientific Reports, esses são possivelmente os registros mais antigos de animais com concha já encontrados no mundo.
As descobertas enriquecem um mapeamento dos primeiros organismos multicelulares identificados na América do Sul, todos no período geológico Ediacarano, iniciado há 635 milhões de anos e encerrado 538 milhões de anos atrás, quando o subcontinente estava conectado à África. Coordenado pelo geólogo Lucas Warren, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, e detalhado em um artigo publicado em novembro na Earth-Science Reviews, esse mapeamento indica três regiões no Brasil com registros bastante antigos – o vale do Itajaí, em Santa Catarina; a região de Corumbá, em Mato Grosso do Sul; e o norte de Minas Gerais –, além de áreas no Paraguai, na Argentina, no Uruguai e possivelmente na Bolívia.
Por décadas, os geólogos não achavam que a bacia do Itajaí, uma área de 1,7 mil quilômetros quadrados (km²) a nordeste de Santa Catarina, pudesse abrigar organismos da chamada biota ediacarana, formada por animais e algas marinhas. No entanto, um grupo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, anunciou no Congresso Brasileiro de Paleontologia de 1997 a descoberta de um exemplar de Chancelloriidae, uma família de animais fósseis extintos com o formato semelhante ao de esponjas com pelos. Esse fóssil foi depois reinterpretado como tendo sido formado pela ação de minerais, mas abriu o caminho para que outros pesquisadores buscassem por sinais de integrantes dessa biota na região.
Outras descobertas tornaram claro que, entre 565 milhões e 550 milhões de anos atrás, os terrenos ocupados hoje pelos municípios catarinenses de Blumenau, Indaial e Apiúna eram cobertos por um mar raso, de águas calmas e quentes. Ali viviam Palaeopascichnus, possivelmente um protozoário, em forma de argolas empilhadas com ramificações; e Aspidella, que parecem discos e serviriam de ancoragem para estruturas em forma de folha. Também foram encontrados por lá trilhas e rastros fossilizados (icnofósseis) em forma de fios compridos, indicadores da presença de seres estranhos.
Organismos multicelulares como esses – os metazoários, formados por grupos de células diferentes com funções especializadas – também devem ter povoado outros mares rasos e quentes que na época cobriam partes do que hoje são Canadá, Estados Unidos, Argentina, Paraguai, Bolívia, Espanha, Reino Unido, França, Itália, Rússia, China, Irã, Senegal, Guiné-Bissau, Omã e Austrália. Tinham o corpo mole sem carapaça e foram encontrados em rochas com idade estimada em até 575 milhões de anos. Achados recentes indicam que animais com conchas apareceram nesses ambientes uns 20 milhões de anos mais tarde.
Antes da descoberta anunciada em junho, as rochas do Grupo Corumbá, que ocorrem em Bonito, eram conhecidas por causa dos fósseis de Corumbella werneri, coletados em 1982 pela equipe do geólogo alemão Detlef Walde, da Universidade de Brasília (UnB), e depois encontrados em outros lugares. Eram cnidários, o grupo das águas-vivas e dos corais, com esqueleto em forma de pirâmides invertidas empilhadas e até 10 centímetros (cm) de comprimento, o dobro dos bichos do mesmo gênero desenterrados depois no norte do Paraguai.
Por ali, entre 550 milhões e 538 milhões de anos atrás, viviam também organismos do gênero Cloudina. Provável membro dos anelídeos, o grupo do qual fazem parte as minhocas e os vermes marinhos chamados poliquetas, as cloudinas, identificadas em 1972 na Namíbia, na África, e depois em outros continentes, tinham esqueleto cônico e até 3 cm de comprimento (ver Pesquisa FAPESP nº 199).
Nessa mesma época, no mar raso que ocupava o norte de Minas e originou o chamado Grupo Bambuí, vivia uma biota pouco diversificada, com cloudinas e grupos de algas em formato de vesículas esféricas, antigamente chamadas Bambuites erichsenii, identificadas pelo geólogo de origem alemã Friedrich Wilhelm Sommer em 1971.
“A presença de fósseis de organismos multicelulares complexos em diferentes lugares com a mesma idade sugere uma possível conexão com o oceano”, comenta Freitas, da Unicamp. “Já ocorrências isoladas de alguns deles no tempo e no espaço apontam para ambientes restritos que funcionariam como oásis para a vida”, aventa Morais, que faz estágio de pós-doutorado na Unesp.
O que parece certo: os primeiros animais marinhos eram raros, frágeis e às vezes confundidos com sulcos deixados por um bloco de rocha ao deslizar sobre outro. “Os primeiros metazoários podem ter formado linhagens que evoluíram e persistiram, mas muitos se extinguiram, às vezes porque não eram viáveis”, comenta Warren, da Unesp. “Alguns eram estranhos, até mesmo sem simetria.” O mapeamento que ele coordenou inclui ainda icnofósseis, vestígios de antigos organismos, e microbialitos, rochas formadas pela atividade metabólica de comunidades microbianas (ver mapa).
“Só havia mapeamentos completos desse tipo para outras partes do mundo”, diz Warren. Em 2022, depois de concluir sua tese de livre-docência sobre a biota ediacarana, ele resolveu reunir e organizar no tempo e no espaço as descobertas de outros pesquisadores e dele próprio – como a de cloudinas no norte de Minas, em 2012, e vestígios de recifes marinhos no norte do Paraguai, em 2017 (ver Pesquisa FAPESP nº 256). Logo, ele descobriu que o biólogo Bruno Becker Kerber, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), de Campinas, também preparava um artigo de revisão sobre a fauna ediacarana, e resolveram trabalhar juntos. Aos poucos, outros especialistas do Brasil, incluindo Freitas e Morais, e da Argentina reforçaram o grupo. Entre os autores da reconstituição da vida complexa na América do Sul está o geólogo norte-americano Thomas Fairchild, da USP, um dos pioneiros no estudo sistemático dessas formas de vida antigas no continente sul-americano, que identificou microfósseis em Mato Grosso do Sul no final dos anos 1980.
“Essa proposta de ordenação é a melhor possível diante dos dados disponíveis”, observa o geólogo Claudio Riccomini, dos institutos de Geociências (IGc) e de Energia e Ambiente (IEE) da USP. O biólogo Antonio Carlos Marques, do Instituto de Biociências (IB) da USP, que também não participou do estudo, comenta: “Grande parte dos locais de ocorrência da fauna ediacarana não deixou fósseis, o que é normal em paleontologia”.
Outras descobertas recentes alimentam essa cronologia. Em agosto, na Geosystems and Geoenvironment, geólogos da Unisinos – entre eles Paulo Paim, que participou do achado dos primeiros fósseis no vale do Itajaí – descreveram microfósseis de organismos marinhos do final do Ediacarano na bacia do rio Camaquã, na região centro-sul do Rio Grande do Sul.
Ainda não se tem claro o que pode ter feito organismos unicelulares, que viveram nos primeiros 3,5 bilhões de anos da Terra, unirem-se em estruturas maiores e mais complexas, quase ao mesmo tempo, em várias partes do planeta, a partir de 575 milhões de anos atrás. “No Ediacarano ocorreram mudanças na química dos oceanos, a formação de um grande supercontinente, o Gondwana, e a elevação dos níveis de oxigênio na atmosfera”, relata Warren. No artigo da Earth-Science Reviews, ele e outros especialistas sugerem que os ambientes de águas rasas podem ter criado a temperatura e salinidade adequadas e fornecido os nutrientes necessários para o florescimento dessas formas de vida.
“A existência dos metazoários depende do ambiente marinho e do incremento da oxigenação no período Neoproterozoico, do qual o Ediacarano é a parte final, somado ao fornecimento crescente de nutrientes, provavelmente relacionado à erosão de cadeias de montanhas de grande porte”, comenta Riccomini. “O problema é provar que essas montanhas existiram no intervalo de tempo adequado. Se existiram, não foi em regiões próximas às ocorrências dos fósseis.”
Kerber reitera a importância do aumento da oxigenação no Ediacarano para promover a formação e a multiplicação de organismos multicelulares. Mas ressalva: “Na bacia de Corumbá, a maior parte dos microfósseis está em ambiente anóxico [sem oxigênio]”.
Marques aumenta a incerteza: “Não sabemos se outros ou os mesmos grupos já existiam antes e não fossilizaram. Algumas datações por relógio molecular jogam a origem dos metazoários algumas centenas de milhões de anos para trás do que nos dizem os fósseis”.
Segundo o pesquisador, muitos dos grupos considerados como as primeiras linhagens dos metazoários não existem mais: “Alguns poucos ainda têm representantes viventes, mas distintos das linhagens primitivas”. Como exemplos mais conhecidos, ele cita o grupo Porifera, formado pelas esponjas, e Cnidaria. De todo modo, a vida multicelular permaneceu restrita ao mar por uns 100 milhões de anos. As primeiras plantas terrestres apareceram há cerca de 450 milhões de anos e os primeiros vertebrados com pernas, os tetrápodes, 397 milhões de anos atrás.
A reportagem acima foi publicada com o título “Os primeiros animais da América do Sul” na edição impressa nº 345, de novembro de 2024.
Projetos
1. Mecanismos de biomineralização e paleobiologia de microfósseis eucariontes neoproterozoicos da Faixa Paraguai Sul (n° 17/22099-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Ricardo Ivan Ferreira da Trindade (USP); Bolsista Luana Pereira Costa de Morais; Investimento R$ 599.962,91.
2. 10 milhões de anos que transformaram o planeta: Contexto paleoambiental da evolução dos primeiros animais com esqueleto no Período Ediacarano Terminal (nº 18/26230-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Lucas Verissimo Warren (Unesp); Investimento R$ 93.760,65.
3. Origem dos substratos marinhos Fanerozoicos e controles paleoambientais da revolução agronômica na transição Ediacarano-Cambriano (n° 23/14578-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Lucas Verissimo Warren (Unesp); Investimento R$ 236.073,70.
4. Revelando o oculto: Investigando os primeiros animais através de síncrotron MicroCT e aprendizado de máquina profundo (n° 20/11320-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Miguel Angelo Stipp Basei (USP); Bolsista Bruno Becker Kerber; Investimento R$ 522.290,22.
5. Tomografia por difração de raios X e tomografia por função de distribuição de pares: Novas ferramentas para investigações paleontológicas (n° 22/06133-1); Modalidade Bolsas no exterior de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Miguel Angelo Stipp Basei (USP); Bolsista Bruno Becker Kerber; Investimento R$ 304.195,85.
Artigos científicos
DENEZINE, M. et al. Organic-walled microfossils from the Ediacaran Sete Lagoas Formation, Bambuí Group, Southeast Brazil: Taxonomic and biostratigraphic analyses. Journal of Paleontology. p. 1-25. 18 mar. 2024.
LEHN, I. et al. From the sea to the land: How microbial mats dominated marine and continental environments in the Ediacaran Camaquã Basin, Brazil. Geosystems and Geoenvironment. v. 3, n. 3, 100283. ago. 2024.
MORAIS, L. et al. Dawn of diverse shelled and carbonaceous animal microfossils at ~ 571 Ma. Scientific Reports. v. 14, 14916. 28 jun. 2024.
PAIM, P. S. G. et al. Preliminary report on the occurrence of Chancelloria sp. in the Itajaí basin, Southern Brazil. Revista Brasileira de Geociências. v. 27, n. 3, p. 303-8. set. 1997.
WARREN, L. V. et al. The Ediacaran paleontological record in South America. Earth-Science Reviews. v. 258, 104915. nov. 2024.