Você e eu, nós somos matéria. Todo mundo que você conhece é matéria. Tudo na Terra, exceto por algumas partículas, é matéria. Maior parte das coisas no espaço é matéria. Mas nós não temos razões convincentes para afirmar por que deveria haver tão mais matéria do que antimatéria. Então, onde está toda a antimatéria?
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Uma equipe de cientistas europeus deu um enorme passo para entender esse enigma, usando um detector do tamanho de uma casa chamado “Germanium Detector Array”, ou GERDA, enterrado dentro de uma montanha em Grand Sasso, na Itália. Os cientistas do GERDA estão procurando por um comportamento estranho em átomos radioativos, chamado de “duplo decaimento beta sem neutrinos” (já volto nisso). Algumas versões das regras da física de partículas dizem que esse comportamento poderia ajudar a explicar para onde foi toda a antimatéria. Mas, por enquanto, o experimento está relatando alguns resultados importantes: ele funciona.
“Uma descoberta de duplo decaimento beta sem neutrinos teria consequências de longo alcance para nossa compreensão sobre física de partículas e cosmologia”, escreveram os pesquisadores no estudo, publicado nesta quarta-feira, na Nature. É importante entendermos por que existe mais matéria do que antimatéria hoje. O Big Bang provavelmente deveria ter criado quantidades iguais… mas não criou.
Se você entende bem o que é o duplo decaimento beta sem neutrinos, você pode pular os próximos três parágrafos. Caso contrário, é hora de uma pausa na nossa programação normal.
Matéria são coisas e ela é feita de partículas. Antimatéria também são coisas, feita de contrapartes antipartículas das partículas. Já a criamos em laboratórios, e alguns elementos radioativos também a produzem. Cada partícula tem uma antipartícula, como elétrons e pósitrons, que têm a mesma massa, mas cargas elétricas opostas. Se elas se encontram, aniquilam uma a outra em uma explosão de energia. Não existe muita antimatéria no universo. Capisce?
Os neutrinos são estranhos. Cientistas não sabem quanto eles pesam, mas, mesmo no limite superior do que chutamos que seja sua massa, eles são muitas vezes mais leves que os elétrons. Eles também são muito comuns — por exemplo, o Sol está enviando quase uma centena de bilhões deles por centímetro quadrado do seu corpo a cada segundo. No entanto, eles não interagem via eletromagnetismo, então eles não nos fazem mal de maneira alguma. Se eles fossem sua própria antipartícula, o que cientistas chamam de “partículas majoranas”, eles deveriam aniquilar um ao outro. Maioria das extensões de nossa teoria principal da física de partículas, chamada de Modelo Padrão, diz que isso é verdade.
Portanto, a chave é construir um experimento que possa testar se os neutrinos estão aniquilando uns aos outros e buscar um processo que deveria normalmente criar neutrinos, mas não cria. Neste caso, esse processo é o decaimento beta radioativo, em que nêutrons neutros se transformam em um próton positivo, um elétron negativo e um antineutrino. Algumas formas de alguns átomos, como o germânio, deveriam passar por duplos decaimentos betas, em que dois nêutrons decaem simultaneamente. Se os cientistas observarem duplo decaimento beta sem neutrino algum (ou sem antineutrinos), então eles podem dizer que encontraram um duplo decaimento beta sem neutrinos. Isso demonstraria que neutrinos e antineutrinos são essencialmente a mesma coisa e também nos convenceria de que nossas teorias de física podem explicar por que existe mais matéria do que antimatéria.
Imagem: J. Suvorov, GERDA collaboration
É isso que o GERDA está buscando. Eles estão observando 35,6 quilos que de uma forma especial de germânio, o metal semicondutor brilhante, dentro de uma cuba de árgon líquido que fica dentro de uma cuba ainda maior de água, esperando o tempo necessário para que ele passe por um duplo decaimento beta sem neutrinos. Não, eles ainda não chegaram a qualquer evidência do processo. Mas seu experimento funciona muito, muito bem — não ha ruído no ambiente, o que é um feito incrível. De outra forma, poderíamos acabar vendo um sinal falso. E tem a radiação que poderia disparar o detector em qualquer lugar, do Sol ao ar que respiramos.
“Imagine executar um detector de radiação por um ano e não ver nada! É uma experiência e tanto”, disse o físico da Duke Phillip Barbeau, que não está envolvido na colaboração do GERDA, em entrevista ao Gizmodo. “Precisamos de detectores mais exigentes, que evitam fontes desses ambientes indo fundo no subsolo, evitando poeira, sendo construídos em salas limpas, evitando a ativação cósmica desses materiais. Afinal, esses materiais podem virar radioativos simplesmente por ficar acima do solo.”
Os cientistas têm ao menos certeza de que o experimento está funcionando, e não apenas desligado, aliás. “As pessoas lhes dariam o benefício da dúvida”, disse Barbeau. Mas “é um experimento difícil de se fazer, porque você não vê nada no detector”.
Mas há vários outros fatores de complicação nesse processo, além de se livrar de todo o ruído externo. Maioria dos processos que observamos no universo conserva uma propriedade chamada “número leptônico”. Em teoria, o número de léptons (neutrinos e elétrons são exemplos de léptons) menos o número de antiléptons deveria permanecer o mesmo antes e depois de alguma reação física. O decaimento beta comum começa com um número leptônico zero e termina com zero (um elétron menos um antineutrino). O duplo decaimento beta sem neutrinos começa com zero e termina com dois. Queremos observar essa violação acontecendo. Estou apenas apontando que esse decaimento está quebrando uma regra não tão defendida.
E o duplo decaimento beta sem neutrinos é muito, muito raro — sua meia vida, a quantidade de tempo que leva para que metade dos eventos possíveis aconteça, é várias vezes maior que a idade do universo. Então, os cientistas talvez precisem esperar e observar essa cuba por muito, muito tempo. Mas, ei, é por isso que eles têm tanto germânio.
O GERDA não é o único experimento procurando por esse decaimento — temos também o MAJORANA, o CUORE-o, o COBRA, entre outros. Se não encontrarmos esse decaimento, talvez precisemos seguir buscando outras evidências de neutrinos sendo suas próprias antipartículas. E há tanta coisa que não sabemos sobre os neutrinos — não conseguimos sequer medir sua massa, por exemplo.
De qualquer forma, agora que temos o detector da GERDA funcionando, é hora de observar e esperar.
[Nature]
Imagem do topo: V. Wagner, GERDA collaboration